A crónica de Mariana Mortágua "O nosso direito ao «não»" que o JN publicou no dia 23.05 começa com o seguinte diálogo (imaginado):
"- Olá, como é que te chamas?
- Desculpa, não te conheço. Estou com os meus amigos.
- Vá lá, diz-me só como te chamas.
- Não quero mesmo falar, desculpa.
- Não? Porquê?
- Não quero...
- Anda lá, eu sei que queres!
- Não, não quero, estou ocupada.
- Achas que és boa, é?"
Não li o resto da crónica. Parei logo aqui, porque isto começa logo mal. Para se livrar do incómodo de quem tenta meter conversa, Mortágua põe na boca de uma jovem/mulher a palavra "desculpa" nas duas primeiras frases. Pedir desculpa de quê e para quê? Acaso não pretender dar conversa é motivo de culpa, para dizer "não" e imediatamente pedir ao interlocutor que nos perdoe?
O problema de muita gente não respeitar o espaço do outro reside muito nesta cultura do pedir desculpa por tudo e por nada, o que tem duas péssimas consequências: por um lado, torna a expressão banal e esvazia-a de conteúdo (hoje em dia, pedir desculpa não significa que se esteja consciente de que se praticou algo com culpa e se pretende que o outro nos releve a falta, para alívio da alminha ou de outra coisa qualquer, senão, basta pensar nos agressores de violência doméstica que imediatamente após a agressão pedem desculpa à vítima, para no mesmo dia ou no seguinte voltarem a socá-la); por outro lado, faz da pessoa que pede desculpa sem ter motivo para tal (porque nada que mereça reparo fez) faça figura de subserviente e a subserviência é, como se sabe, perversa, principalmente se é o próprio que sob ela se coloca.
E depois aquele "Não quero...". Ative-me nas reticência, esse sinal de pontuação tão mal usado, tão exageradamente usado. As reticências servem para dizer que quem fala teria algo mais a dizer, mas não diz, deixa apenas a impressão de que, talvez noutra circunstância o dissesse mas que, naquela, prefere deixar a frase a meio. Se a pessoa não quer, como parece ser o caso no diálogo transcrito, visto que já é a terceira vez que o diz (ainda que nas duas primeiras o faça por outras palavras), para que raio estão ali aquelas reticências? Não dava para dar um tom assertivo à resposta da jovem/mulher? É que o que se pretende, nessas situações, e mesmo assertividade, não deixar margem para dúvidas, pôr termo à conversa que está a desagradar e é contrária à vontade.
Podem parecer pormenores sem importância, mas não são. As palavras e a pontuação escolhidas para este diálogo são reflexo do que está gravado a ferros na grande maioria das pessoas: o "Desculpe lá!", o "Obrigadinha, mas não...", o "Por favor, não me incomode, se não der muito transtorno a V. Exa.". Esta subserviência parva e injustificada que apequena quem quer dizer "Não.", essa palavra tão essencial à sobrevivência porque demarca o limite do consentimento.
A propósito disto, costumo perguntar às pessoas se sabem como se distingue um português de qualquer outra pessoa de qualquer outra nacionalidade num pub em Londres. A resposta é simples: é o único tipo que chama o garçon dizendo "Sorry.". As pessoas, geralmente, riem, mas talvez não fosse má ideia que parassem um pouco e pensassem sobre isto.
© [m.m.b.]