Nem de propósito. Há quem lhe chame ironia do destino, há quem lhe chame acaso, eu chamo-lhe a ponta do icebergue. Apenas uma ponta de um gigantesco icebergue que ainda ninguém sabe muito bem que dimensões terá, mas que todos imaginamos sejam enormes. Perante o vídeo publicitado esta semana no You Tube, no qual uma aluna da Escola Carolina Michaëlis, no Porto, agride uma professora que tentava privá-la do telemóvel – certamente não porque a aluna estivesse a fazer dele um bom uso, se é que há algum bom uso que possa fazer-se de um telemóvel numa sala de aula – um país inteiro fica de boca aberta. Como se fosse de espantar que, no actual estado das coisas, episódios daquela natureza aconteçam.
Já todos percebemos que existe um problema de ausências nas escolas portuguesas, mas também já todos percebemos que essas ausências não nascem nas escolas: são trazidas para as escolas. Onde nascem, então? Em casa, obviamente. Em casa, na família – quando a há –, no carácter de pais e filhos que se deseducam mutuamente.
Portugal é, cada vez mais, um país «sem rei, nem roque», e isto quer nos aspectos estruturantes da nossa sociedade, quer nos mais insignificantes. Na Assembleia da República, por exemplo, o nível do debate parlamentar roça o da estrebaria, com deputados a insultarem-se a torto e a direito, isto quando não é o próprio Primeiro-Ministro que os manda calar. Nas estradas, por tudo e por nada se invoca a pretensa actividade lucrativa de ocupação de tempos livres da progenitora do condutor do carro da frente. Nas repartições públicas, «bom dia» e «obrigada» são expressões que há muito caíram em desuso. Em casa, os pais tratam os filhos como se tivessem a idade deles, a maturidade deles, as responsabilidades deles. Não é de estranhar, portanto, que depois, nas escolas, os alunos revelem todo o esplendor da sua impertinência perante os professores e os funcionários.
Confesso que o que me incomoda sobremaneira no sucedido na escola Carolina Michaëlis é o tom de voz da aluna quando se dirige à professora. Ela já não fala, ela grita estridentemente. Abre a goela e exige da professora que lhe devolva o telemóvel. Ou seja, demonstra, sem margem para dúvidas, que não pretende acatar a indicação da professora e que se acha no direito de a confrontar aos berros. Depois, perturba-me a passividade dos colegas de turma. Todos eles parecem achar o cenário relativamente "normal" e, por isso, não reagem, a não ser quando a situação começa a atingir contornos mais sérios. Até lá, apenas se ouvem gargalhadas e o pedido do "operador de câmara" para que não lhe estraguem o "filme". Por último, atordoa-me a calma – temperada, todavia, com evidente determinação e firmeza – da professora para lidar com aquela criatura que a agarra, a ensurdece e a impede de sair da sala. Tudo isto, reafirmo, me deixa atónita, mesmo a mim, que tenho plena consciência de que a única diferença entre este acontecimento e o dia-a-dia em muitas escolas portuguesas é que este foi filmado e veio aterrar na internet.
Já não dou por mim a perguntar onde é que isto vai parar, mas sim se isto irá mesmo, algum dia, parar. De que é apenas a ponta do icebergue, ninguém duvida. Mas o que faremos quando o icebergue estiver totalmente à vista e formos absolutamente incapazes de lidar com ele? Que faremos quando o icebergue afundar todos os nossos navios, derrubar toda a nossa tripulação e nos impedir de chegar a qualquer destino? Então, parece-me, estaremos definitivamente comprometidos com o fracasso, definitivamente náufragos da inércia de um país inteiro boquiaberto perante o seu próprio espectáculo de horror.
[Também publicado em PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho
Já todos percebemos que existe um problema de ausências nas escolas portuguesas, mas também já todos percebemos que essas ausências não nascem nas escolas: são trazidas para as escolas. Onde nascem, então? Em casa, obviamente. Em casa, na família – quando a há –, no carácter de pais e filhos que se deseducam mutuamente.
Portugal é, cada vez mais, um país «sem rei, nem roque», e isto quer nos aspectos estruturantes da nossa sociedade, quer nos mais insignificantes. Na Assembleia da República, por exemplo, o nível do debate parlamentar roça o da estrebaria, com deputados a insultarem-se a torto e a direito, isto quando não é o próprio Primeiro-Ministro que os manda calar. Nas estradas, por tudo e por nada se invoca a pretensa actividade lucrativa de ocupação de tempos livres da progenitora do condutor do carro da frente. Nas repartições públicas, «bom dia» e «obrigada» são expressões que há muito caíram em desuso. Em casa, os pais tratam os filhos como se tivessem a idade deles, a maturidade deles, as responsabilidades deles. Não é de estranhar, portanto, que depois, nas escolas, os alunos revelem todo o esplendor da sua impertinência perante os professores e os funcionários.
Confesso que o que me incomoda sobremaneira no sucedido na escola Carolina Michaëlis é o tom de voz da aluna quando se dirige à professora. Ela já não fala, ela grita estridentemente. Abre a goela e exige da professora que lhe devolva o telemóvel. Ou seja, demonstra, sem margem para dúvidas, que não pretende acatar a indicação da professora e que se acha no direito de a confrontar aos berros. Depois, perturba-me a passividade dos colegas de turma. Todos eles parecem achar o cenário relativamente "normal" e, por isso, não reagem, a não ser quando a situação começa a atingir contornos mais sérios. Até lá, apenas se ouvem gargalhadas e o pedido do "operador de câmara" para que não lhe estraguem o "filme". Por último, atordoa-me a calma – temperada, todavia, com evidente determinação e firmeza – da professora para lidar com aquela criatura que a agarra, a ensurdece e a impede de sair da sala. Tudo isto, reafirmo, me deixa atónita, mesmo a mim, que tenho plena consciência de que a única diferença entre este acontecimento e o dia-a-dia em muitas escolas portuguesas é que este foi filmado e veio aterrar na internet.
Já não dou por mim a perguntar onde é que isto vai parar, mas sim se isto irá mesmo, algum dia, parar. De que é apenas a ponta do icebergue, ninguém duvida. Mas o que faremos quando o icebergue estiver totalmente à vista e formos absolutamente incapazes de lidar com ele? Que faremos quando o icebergue afundar todos os nossos navios, derrubar toda a nossa tripulação e nos impedir de chegar a qualquer destino? Então, parece-me, estaremos definitivamente comprometidos com o fracasso, definitivamente náufragos da inércia de um país inteiro boquiaberto perante o seu próprio espectáculo de horror.
[Também publicado em PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho