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23.3.08

a ponta do icebergue

Nem de propósito. Há quem lhe chame ironia do destino, há quem lhe chame acaso, eu chamo-lhe a ponta do icebergue. Apenas uma ponta de um gigantesco icebergue que ainda ninguém sabe muito bem que dimensões terá, mas que todos imaginamos sejam enormes. Perante o vídeo publicitado esta semana no You Tube, no qual uma aluna da Escola Carolina Michaëlis, no Porto, agride uma professora que tentava privá-la do telemóvel – certamente não porque a aluna estivesse a fazer dele um bom uso, se é que há algum bom uso que possa fazer-se de um telemóvel numa sala de aula – um país inteiro fica de boca aberta. Como se fosse de espantar que, no actual estado das coisas, episódios daquela natureza aconteçam.

Já todos percebemos que existe um problema de ausências nas escolas portuguesas, mas também já todos percebemos que essas ausências não nascem nas escolas: são trazidas para as escolas. Onde nascem, então? Em casa, obviamente. Em casa, na família – quando a há –, no carácter de pais e filhos que se deseducam mutuamente.

Portugal é, cada vez mais, um país «sem rei, nem roque», e isto quer nos aspectos estruturantes da nossa sociedade, quer nos mais insignificantes. Na Assembleia da República, por exemplo, o nível do debate parlamentar roça o da estrebaria, com deputados a insultarem-se a torto e a direito, isto quando não é o próprio Primeiro-Ministro que os manda calar. Nas estradas, por tudo e por nada se invoca a pretensa actividade lucrativa de ocupação de tempos livres da progenitora do condutor do carro da frente. Nas repartições públicas, «bom dia» e «obrigada» são expressões que há muito caíram em desuso. Em casa, os pais tratam os filhos como se tivessem a idade deles, a maturidade deles, as responsabilidades deles. Não é de estranhar, portanto, que depois, nas escolas, os alunos revelem todo o esplendor da sua impertinência perante os professores e os funcionários.

Confesso que o que me incomoda sobremaneira no sucedido na escola Carolina Michaëlis é o tom de voz da aluna quando se dirige à professora. Ela já não fala, ela grita estridentemente. Abre a goela e exige da professora que lhe devolva o telemóvel. Ou seja, demonstra, sem margem para dúvidas, que não pretende acatar a indicação da professora e que se acha no direito de a confrontar aos berros. Depois, perturba-me a passividade dos colegas de turma. Todos eles parecem achar o cenário relativamente "normal" e, por isso, não reagem, a não ser quando a situação começa a atingir contornos mais sérios. Até lá, apenas se ouvem gargalhadas e o pedido do "operador de câmara" para que não lhe estraguem o "filme". Por último, atordoa-me a calma – temperada, todavia, com evidente determinação e firmeza – da professora para lidar com aquela criatura que a agarra, a ensurdece e a impede de sair da sala. Tudo isto, reafirmo, me deixa atónita, mesmo a mim, que tenho plena consciência de que a única diferença entre este acontecimento e o dia-a-dia em muitas escolas portuguesas é que este foi filmado e veio aterrar na internet.

Já não dou por mim a perguntar onde é que isto vai parar, mas sim se isto irá mesmo, algum dia, parar. De que é apenas a ponta do icebergue, ninguém duvida. Mas o que faremos quando o icebergue estiver totalmente à vista e formos absolutamente incapazes de lidar com ele? Que faremos quando o icebergue afundar todos os nossos navios, derrubar toda a nossa tripulação e nos impedir de chegar a qualquer destino? Então, parece-me, estaremos definitivamente comprometidos com o fracasso, definitivamente náufragos da inércia de um país inteiro boquiaberto perante o seu próprio espectáculo de horror.

[Também publicado em PNETcrónicas.]

© Marta Madalena Botelho

16.3.08

família, escola e Estado: o necessário compromisso triangular

Há muito tempo – há, provavelmente, demasiado tempo –, instalou-se entre nós a ideia de que formação e educação são uma e a mesma coisa. Daí a pensar-se que o professor é, antes de tudo o resto, um educador, foi um ápice. Este estado de coisas foi-se cristalizando até se tornar definitivo e, pelo andar da carruagem, parece cada vez mais improvável a inversão da situação.

Por um lado, os pais e a sociedade civil foram-se lentamente demitindo da sua verdadeira função em relação aos seus filhos e cidadãos: a de educar e ser exemplo. Por outro lado, a comunidade escolar, professores e auxiliares de acção educativa, passaram a carregar às costas, numa atitude de passividade e de aceitação incontestada, um papel que não lhes cabe, o de educador, olvidando que a outra face da moeda seria o descurar do papel formativo e instrutivo da Escola. Quanto aos responsáveis políticos e, seja-me permitida a menção, os agentes sindicais, foi vê-los de mãos nos bolsos, assobiando para o ar, vendo a banda passar como se nada fosse com eles. Mas nada disto é de estranhar, se tivermos em conta que o confronto entre Governo e sindicatos só surge quando se fala em salários ou na (re)definição do status quo dos docentes. O resultado é, quase sempre, crispação e endurecimento de posições, até que um lado da "barricada" acaba por reconhecer que perdeu a batalha, clamando, com voz de bravo soldado ferido mas não morto, que não perdeu a guerra. Sucede, porém, que ninguém se dedica a contabilizar as baixas e elas são sempre demasiadas para aquilo que um pequeno país como o nosso pode suportar.

No Portugal contemporâneo, a Educação é uma área tão desfalcada de compromisso social e de participação cívica como qualquer outra. Assim é também, e de modo flagrante, na Cidadania, na Justiça, na Saúde, na Economia, na Cultura e numa infinidade de outras matérias onde os bons projectos ficam na gaveta, as negociações emperram porque são bloqueadas pela lógica de manutenção dos pequenos poderes e as reformas – as tão ansiadas, faladas e indispensáveis reformas! – ou são verdadeiros nados-mortos ou se revelam, na prática, um elefante numa loja de porcelanas: desadequadas e destrutivas e, não raras vezes, instalam o caos.

A função precípua da Escola é formar, isto é, através do ensino apetrechar os seus alunos com ferramentas que lhes permitam, desde o início, compreender o que lhes é transmitido, desenvolver raciocínios próprios, pensar em abstracto, posicionar-se criticamente em relação a tudo – mesmo tudo! –, desenvolver teorias e, em última instância, serem os cidadãos que uma sociedade empenhada em superar-se constantemente precisa.

Aos pais, por seu turno, incumbe a transmissão dos (bons) valores, das boas maneiras, dos bons comportamentos e da noção do que se é e do espaço que se ocupa em cada situação concreta. É competência dos pais valorizarem os filhos enquanto seres humanos e despertarem neles o interesse pelo que os rodeia. É tarefa parental educar a criança para a vida em sociedade, para a partilha do espaço comunitário e para o respeito pelos direitos e características do outro, por mais dissemelhante que ele seja ou possa parecer. O ponto de partida de tudo isto só pode ser um: a dádiva dos afectos.

Ao governo e às forças de mobilização social, em comunhão de esforços, caberá o papel conformador destas funções das células familiar e escolar, através da criação das condições para que cada uma delas possa levar a cabo, da melhor forma, a sua missão. Essas condições estão longe de serem, como parece pensar-se, apenas materiais. Mais importante do que uma escola equipada com bons meios é uma escola que reúna bons recursos humanos, gente capaz, dedicada e realizada: professores que gostem do que fazem e que não vejam o ensino como o reduto dos que necessitam de um vínculo laboral relativamente estável ou não conseguem colocação nas profissões para as quais se sentem verdadeiramente vocacionados; professores que tenham condições para leccionar, para explorar as capacidades dos seus discentes e que não se vejam reduzidos à função de vigilantes, de substitutos de estruturas de ocupação de tempos livres ou, pior ainda, de famílias ausentes ou desinteressadas da educação dos filhos. Igualmente imperioso é que os alunos respeitem os professores, reconhecendo neles verdadeiros mestres a quem devem atenção; que sejam polidos e educados com os seus pedagogos, funcionários e colegas e que, já agora e se não for pedir muito, tenham alguns hábitos de concentração e de estudo.

Implementar tudo isto, já se sabe, quase nunca se coaduna com brandos costumes, com falinhas mansas, com falta de coragem para limpar a eira. Definir convenientemente os papéis de cada um dos intervenientes no desenvolvimento das crianças e jovens e, mais fundamental ainda, fazer com que as crianças e os jovens o assimilem devidamente, nunca será produto apenas do esforço isolado de um dos vértices do triângulo formado pela Família, a Escola e o Estado. Enquanto em Portugal não for abandonada a ideia de que só tem de fazer-se o que se pode e que a mais não se é obrigado, mantendo esta cultura de sacudir a água do seu capote para o capote do vizinho, não teremos apenas, de tempos a tempos, uma «geração rasca» como, polemicamente, Vicente Jorge Silva chamou à minha. Teremos um país inteiro cego, surdo e mudo a assistir à sua própria ruína desde a infância.

Nota: alguns dos conceitos utilizados neste texto não respeitam integralmente a rigidez das definições vocabulares constantes dos dicionários. Algumas palavras que são sinónimos no dicionário são aqui usadas num sentido muito específico.


[Também publicado em PNETcrónicas.]

© Marta Madalena Botelho

9.3.08

"avaliação": a tão falada e, afinal, a menos contestada

Daquilo que tenho tido oportunidade de conversar com amigos e conhecidos sobre a questão que ontem trouxe para a rua milhares de professores, "avaliação" parece-me ser, de longe, a palavra mais repetida por toda a gente e, também, a pedra-de-toque que vai dividindo opiniões, mesmo entre aqueles que não são governo nem professores. Todavia, não parece que a "avaliação" seja contestada em si, enquanto ideia, enquanto elemento que todos parecem reconhecer como aceitável e que deve perpassar o novo estatuto da carreira docente. Ao invés, ela é tida como algo aceitável e, até, desejável, sendo que a questão que opõe as duas facções é a do modelo a que deverá obedecer. Mas será que a tão falada "avaliação" é, simultaneamente, a mãe de todos os problemas e a salvação para todos os males?

Mais importante do que discutir a avaliação, não seria, por exemplo, discutir se ela é ou não o meio adequado para aferir aquilo que pretende aferir-se, ou seja, o sucesso – ou a falta dele – do ensino em Portugal? E não seria, também, conveniente apurar se os critérios propostos pelo Ministério da Educação são os indicados para contabilizar resultados? Mas, antes disso, será que os resultados que pretendem quantificar-se são mesmo quantificáveis, isto é, a excelência de um sistema de ensino (só) é medível, graduável, avaliável em função de "avaliações" feitas aos seus professores? E os que desempenharão o papel de avaliadores, estarão investidos em tais funções por que motivos? Têm, de facto, a competência técnica e o correcto domínio das matérias para poderem, com propriedade, isenção e rectidão, avaliarem os docentes?

Pela minha parte, responderia «não» a todas estas perguntas, pelo que, obviamente, encontro muitas razões válidas para a realização de uma «Marcha da Indignação». Creio, contudo, que o ponto de partida não deveria ser a contestação, pura e simples, da "avaliação", só porque não se temem avaliações, como os professores dizem não temer. Talvez não fosse má ideia começar por derrubar as ideias pela base, demonstrando de que modo e por que razões são manifestamente desadequadas aos propósitos e, nessa medida, votadas ao fracasso. Escusaríamos, então, de ter de as testar na prática para chegarmos a essa mesma conclusão.

[Também publicado em PNETcrónicas.]

© Marta Madalena Botelho

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