A contradição é com a malta apaixonada e eu explico porquê: as pessoas têm a mania de querer relações sólidas como rochas e parceiros maleáveis como argila.
Logo nos primeiros dias do namoro proclamam em altos brados ao mundo, como os adeptos ferrenhos dos clubes de futebol habituados há anos a ficar sempre a poucos pontos do vencedor costumam dizer no início de cada campeonato, que desta vez é que é, que agora é que vão ser elas, que ninguém os pára e aquela é que é a equipa (ou melhor, a parelha) perfeita para vingar os seus intentos. Exaltam todas as características da pessoa amada, algumas até ao ridículo, e mesmo aquilo que é objectivamente negativo ou inestético lhes parece o melhor do mundo e a beleza suprema. Costuma chamar-se a isto «cegueira amorosa», mas é muito mais do que isso: é umbilicalismo puro e duro, disfarçado de paixão assolapada. Senão, vejamos: o outro é perfeito para mim e eu sou perfeita para ele; o meu feitio “encaixa” no dele e o dele no meu; a relação só tem futuro e só vai ser o máximo porque se deu o cruzamento destas duas específicas almas; em suma, eu é que realço em ti o melhor que tu tens e se não fosse eu tu eras apenas mais um entre a multidão. Palavra de honra que é assim mesmo, sem tirar nem pôr. E se são precisos exemplos concretos, eu dou.
Voltando à argila: a primeira tentação do amante é, mal tem espaço para isso, a de começar, pouco a pouco, qual artesão perante uma massa de barro disforme, a esculpir, ou seja, a alterar os hábitos e as características do ser amado. Isto tudo, é claro, sob a capa da eloquente expressão «é preciso limar arestas». Todos os namorados sabem que «é sempre preciso limar arestas» no início das relações. O que a grande maioria não sabe são duas coisas: primeiro, o que deve entender-se por «arestas»; segundo, como é que elas se «limam». A metáfora, portanto, conduz aos maiores equívocos e à gloriosa tarefa do atrevimento pelos meandros da difícil arte da carpintaria emocional. É obra!
De plaina em punho, começa-se por ir arrancando pequenas lascas ao objecto da nossa afeição: aqui e ali, uma sugestão sobre a roupa que usa, sobre as expressões que emprega, sobre as amigas e os amigos com quem sai, sobre o número (sempre excessivo) de cigarros que fuma ou de copos que bebe, sobre o modo (sempre fascinado) como olha para as(os) outras(os) e por aí fora. À medida que o tempo vai avançando, sobe paralelamente o grau de exigência: «acho que és (sempre demasiado) assim ou assado», sendo que «assim ou assado» são quase sempre características inerentes à personalidade, características essas às quais, também quase sempre, se achava imensa graça e perante as quais se ficava embevecido há uns tempos atrás. Eu já escrevi acima: a contradição é com a malta apaixonada.
O problema, note-se, não é que, com o passar dos dias, a tal «cegueira amorosa» se cure e se passe a ver o outro como ele é, qualidades e defeitos bem expostos e em néon fluorescente a piscar. O problema é que a cura arraste consigo o desejo de moldar o outro, de o mudar para aquilo que cada um acha que é o melhor para si e que, por isso, também só pode ser o melhor para o outro. É que a maior parte das vezes não é. Aliás, atrevo-me mesmo a dizer que quase nunca é.
Uma coisa é pedir encarecidamente que se corrijam alguns hábitos que torram a paciência de qualquer mortal, que aborrecem até a mais bem-disposta das criaturas e perturbam sobremaneira a vida a dois: deixar os jornais espalhados pela casa, pousar a toalha molhada em cima da cama, não virar a roupa pelo avesso antes de pôr na máquina de lavar ou nunca despejar os cinzeiros. Outra coisa, bem diversa, é querer que ela ou ele deixem de rir como riem, de reagir como reagem, de sentir como sentem, de se expressarem como se expressam, de gostarem do que gostam ou de fazerem aquilo que os faz felizes, ou seja, em síntese, que deixem de ser como são, que deixem de ser como já eram quando nos apaixonámos perdidamente. Que se limem algumas arestas, dando uma de carpinteiro improvisado com curso profissional tirado à pressão da paixão, ainda vá que não vá. Tentar fazer o outro à nossa imagem, apertando-o entre as mãos para lhe dar forma, cortando aqui e colando acolá, é que já me parece um bocadinho demais.
[Nota importante e para que não haja qualquer equívoco quanto a isso: este texto não contém qualquer mensagem subliminar para a minha cara-metade.]
[Também publicado em PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho
Logo nos primeiros dias do namoro proclamam em altos brados ao mundo, como os adeptos ferrenhos dos clubes de futebol habituados há anos a ficar sempre a poucos pontos do vencedor costumam dizer no início de cada campeonato, que desta vez é que é, que agora é que vão ser elas, que ninguém os pára e aquela é que é a equipa (ou melhor, a parelha) perfeita para vingar os seus intentos. Exaltam todas as características da pessoa amada, algumas até ao ridículo, e mesmo aquilo que é objectivamente negativo ou inestético lhes parece o melhor do mundo e a beleza suprema. Costuma chamar-se a isto «cegueira amorosa», mas é muito mais do que isso: é umbilicalismo puro e duro, disfarçado de paixão assolapada. Senão, vejamos: o outro é perfeito para mim e eu sou perfeita para ele; o meu feitio “encaixa” no dele e o dele no meu; a relação só tem futuro e só vai ser o máximo porque se deu o cruzamento destas duas específicas almas; em suma, eu é que realço em ti o melhor que tu tens e se não fosse eu tu eras apenas mais um entre a multidão. Palavra de honra que é assim mesmo, sem tirar nem pôr. E se são precisos exemplos concretos, eu dou.
Voltando à argila: a primeira tentação do amante é, mal tem espaço para isso, a de começar, pouco a pouco, qual artesão perante uma massa de barro disforme, a esculpir, ou seja, a alterar os hábitos e as características do ser amado. Isto tudo, é claro, sob a capa da eloquente expressão «é preciso limar arestas». Todos os namorados sabem que «é sempre preciso limar arestas» no início das relações. O que a grande maioria não sabe são duas coisas: primeiro, o que deve entender-se por «arestas»; segundo, como é que elas se «limam». A metáfora, portanto, conduz aos maiores equívocos e à gloriosa tarefa do atrevimento pelos meandros da difícil arte da carpintaria emocional. É obra!
De plaina em punho, começa-se por ir arrancando pequenas lascas ao objecto da nossa afeição: aqui e ali, uma sugestão sobre a roupa que usa, sobre as expressões que emprega, sobre as amigas e os amigos com quem sai, sobre o número (sempre excessivo) de cigarros que fuma ou de copos que bebe, sobre o modo (sempre fascinado) como olha para as(os) outras(os) e por aí fora. À medida que o tempo vai avançando, sobe paralelamente o grau de exigência: «acho que és (sempre demasiado) assim ou assado», sendo que «assim ou assado» são quase sempre características inerentes à personalidade, características essas às quais, também quase sempre, se achava imensa graça e perante as quais se ficava embevecido há uns tempos atrás. Eu já escrevi acima: a contradição é com a malta apaixonada.
O problema, note-se, não é que, com o passar dos dias, a tal «cegueira amorosa» se cure e se passe a ver o outro como ele é, qualidades e defeitos bem expostos e em néon fluorescente a piscar. O problema é que a cura arraste consigo o desejo de moldar o outro, de o mudar para aquilo que cada um acha que é o melhor para si e que, por isso, também só pode ser o melhor para o outro. É que a maior parte das vezes não é. Aliás, atrevo-me mesmo a dizer que quase nunca é.
Uma coisa é pedir encarecidamente que se corrijam alguns hábitos que torram a paciência de qualquer mortal, que aborrecem até a mais bem-disposta das criaturas e perturbam sobremaneira a vida a dois: deixar os jornais espalhados pela casa, pousar a toalha molhada em cima da cama, não virar a roupa pelo avesso antes de pôr na máquina de lavar ou nunca despejar os cinzeiros. Outra coisa, bem diversa, é querer que ela ou ele deixem de rir como riem, de reagir como reagem, de sentir como sentem, de se expressarem como se expressam, de gostarem do que gostam ou de fazerem aquilo que os faz felizes, ou seja, em síntese, que deixem de ser como são, que deixem de ser como já eram quando nos apaixonámos perdidamente. Que se limem algumas arestas, dando uma de carpinteiro improvisado com curso profissional tirado à pressão da paixão, ainda vá que não vá. Tentar fazer o outro à nossa imagem, apertando-o entre as mãos para lhe dar forma, cortando aqui e colando acolá, é que já me parece um bocadinho demais.
[Nota importante e para que não haja qualquer equívoco quanto a isso: este texto não contém qualquer mensagem subliminar para a minha cara-metade.]
[Também publicado em PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho