É inexplicável, mas acontece sempre. À medida que me vou aproximando do pueblo, começo a sentir o cheiro a bolachas de manteiga acabadas de cozer. Chego à padaria onde há mais de cem anos um padeiro junta os ingredientes, sempre pela mesma ordem, em grandes bacias de cerâmica para depois os misturar e trabalhar a massa com as próprias mãos. O agora responsável pela feitura destas bolachas que eu adoro já não é propriamente jovem – talvez seja um pouco mais velho do que os meus pais, talvez seja uma daquelas pessoas a quem o trabalho e as dificuldades da vida maltrataram e envelheceram mais depressa – e diz que aprendeu a receita com um tio, que por sua vez a aprendeu com o pai, seu avô, que a inventou e fundou o negócio. À medida que ele vai falando, vou imaginando como seriam o tal tio e o avô, ambos padeiros, calças e camisas imaculadamente brancas, os sapatos peneirados de farinha, as mãos delicadas mas fortes a baterem a manteiga, os ovos, o açúcar, a farinha e um segredo muito bem guardado a sete chaves.
Fui só cumprimentá-lo, como faço sempre. Saio daquela sala enorme e quente e dirijo-me ao sítio onde vou comprar as bolachas. A porta é imediatamente ao lado, mas não há passagem interior de uma divisão para a outra. Bastaram os cinco segundos que demorei para perceber que na rua está ainda mais calor do que junto aos fornos, apesar de o sol já não estar a pique e ter passado a hora da siesta.
Para entrar na tienda é preciso passar uma cortina anti-insectos. O barulho das correntes de alumínio de muitas cores a baterem umas nas outras avisa que entrou um cliente. Atrás do comprido balcão de madeira está uma senhora de baixa estatura que me recebe com um «Hola!» que quase me faz sentir parte daquela família. É casada com o padeiro – tem umas mãos tão delicadas quanto as dele – e juntos têm quatro filhos, todos rapazes e aproximadamente da mesma altura, o que indicia que nasceram com pouco tempo de intervalo entre si. Uma vez, o marido contou-me que sempre quisera ter uma filha e por isso acabou por ter quatro rapazes. Depois corrigiu-se a si próprio para me dizer que não fora bem «por isso», mas «em busca disso». Depois de nascer o mais novo, continuaram a tentar a sorte, mas a mulher nunca mais engravidou. Voltou a corrigir-se para dizer que continuavam a tentar, riu-se, e pediu-me que não levasse a mal a marotice do que disse sem dizer. Não levei, claro. De cada vez que aqui volto vejo que ainda não são pais dessa tão desejada filha. Sempre que lhes pergunto se já perderam a esperança, respondem-me que isso é que nunca.
Encomendo à mulher do padeiro uns dez saquinhos de bolachas para levar. Cada um tem 250 gramas. Enquanto ela os vai separando e contando, penso, como de todas as outras vezes, que se calhar são poucos, atendendo a que nunca sei quando poderei voltar novamente. A aldeia fica longe do resto do mundo, por isso a viagem, que é grande, é propositada. Peço-lhe mais meio quilo porque uma dúzia de saquinhos é conta certa.
Ela sorri, revelando uma fileira de dentes brancos, e pergunta-me se tenho a certeza de que não quero mais. Hesito, mas logo me lembro dos preconceitos da gente da cidade, dos estereótipos que a urbanidade nos impõe, dos conselhos do médico para não engordar, dos artigos das revistas e dos jornais que alertam para os malefícios dos doces. Respondo-lhe que não, que é melhor não, que, caso só regresse dali a um ano, já vou abastecida com um saquinho para cada mês, o que me parece suficiente. Ela volta a sorrir, assente com a cabeça e diz que está bem. Faz-me a conta, eu pago e deixo-lhe o troco, apenas uns poucos euros que não compensam de modo algum a simpatia com que aquele casal me recebe.
Quando chego ao carro conto os saquinhos: são treze. Sei que a mulher não se enganou nas contas, que quis mesmo oferecer-mo, como fez de todas as outras vezes.
Sempre que como uma das suas bolachas de manteiga lembro-me daquele homem que continua a acreditar que há-de ser pai de uma menina e daquela mulher que tem sempre mais uns quantos cabelos brancos desde a última vez que a vi. Recordo-me da sua amabilidade e das mãos de ambos e convenço-me de que o segredo de tanta delicadeza só pode mesmo estar na manteiga com que com tanta mestria fabricam estas deliciosas bolachas.
[Também publicado em PNETmulher.]
© Marta Madalena Botelho
Fui só cumprimentá-lo, como faço sempre. Saio daquela sala enorme e quente e dirijo-me ao sítio onde vou comprar as bolachas. A porta é imediatamente ao lado, mas não há passagem interior de uma divisão para a outra. Bastaram os cinco segundos que demorei para perceber que na rua está ainda mais calor do que junto aos fornos, apesar de o sol já não estar a pique e ter passado a hora da siesta.
Para entrar na tienda é preciso passar uma cortina anti-insectos. O barulho das correntes de alumínio de muitas cores a baterem umas nas outras avisa que entrou um cliente. Atrás do comprido balcão de madeira está uma senhora de baixa estatura que me recebe com um «Hola!» que quase me faz sentir parte daquela família. É casada com o padeiro – tem umas mãos tão delicadas quanto as dele – e juntos têm quatro filhos, todos rapazes e aproximadamente da mesma altura, o que indicia que nasceram com pouco tempo de intervalo entre si. Uma vez, o marido contou-me que sempre quisera ter uma filha e por isso acabou por ter quatro rapazes. Depois corrigiu-se a si próprio para me dizer que não fora bem «por isso», mas «em busca disso». Depois de nascer o mais novo, continuaram a tentar a sorte, mas a mulher nunca mais engravidou. Voltou a corrigir-se para dizer que continuavam a tentar, riu-se, e pediu-me que não levasse a mal a marotice do que disse sem dizer. Não levei, claro. De cada vez que aqui volto vejo que ainda não são pais dessa tão desejada filha. Sempre que lhes pergunto se já perderam a esperança, respondem-me que isso é que nunca.
Encomendo à mulher do padeiro uns dez saquinhos de bolachas para levar. Cada um tem 250 gramas. Enquanto ela os vai separando e contando, penso, como de todas as outras vezes, que se calhar são poucos, atendendo a que nunca sei quando poderei voltar novamente. A aldeia fica longe do resto do mundo, por isso a viagem, que é grande, é propositada. Peço-lhe mais meio quilo porque uma dúzia de saquinhos é conta certa.
Ela sorri, revelando uma fileira de dentes brancos, e pergunta-me se tenho a certeza de que não quero mais. Hesito, mas logo me lembro dos preconceitos da gente da cidade, dos estereótipos que a urbanidade nos impõe, dos conselhos do médico para não engordar, dos artigos das revistas e dos jornais que alertam para os malefícios dos doces. Respondo-lhe que não, que é melhor não, que, caso só regresse dali a um ano, já vou abastecida com um saquinho para cada mês, o que me parece suficiente. Ela volta a sorrir, assente com a cabeça e diz que está bem. Faz-me a conta, eu pago e deixo-lhe o troco, apenas uns poucos euros que não compensam de modo algum a simpatia com que aquele casal me recebe.
Quando chego ao carro conto os saquinhos: são treze. Sei que a mulher não se enganou nas contas, que quis mesmo oferecer-mo, como fez de todas as outras vezes.
Sempre que como uma das suas bolachas de manteiga lembro-me daquele homem que continua a acreditar que há-de ser pai de uma menina e daquela mulher que tem sempre mais uns quantos cabelos brancos desde a última vez que a vi. Recordo-me da sua amabilidade e das mãos de ambos e convenço-me de que o segredo de tanta delicadeza só pode mesmo estar na manteiga com que com tanta mestria fabricam estas deliciosas bolachas.
[Também publicado em PNETmulher.]
© Marta Madalena Botelho