Quando o genérico começou a rolar, ainda me ecoava nos ouvidos uma repetitiva melodia arabesca, ainda sentia no peito o coração a bater ao ritmo das pancadas do durbak. «O Segredo de Um Cuscuz» («La Graine Et Le Mulet», no original), o filme de Abdellatif Kechiche que tive o privilégio de ver na passada quarta-feira, não é um filme de digestão fácil. E o termo «digestão» não cai aqui ao acaso. Uma das cenas mais imponentes do filme – e uma das mais longas, também – tem lugar à mesa, uma mesa em redor da qual se reúne uma família numerosa, comendo, bebendo, conversando em grande animação e diversidade de posturas, cada qual degustando o seu cuscuz de peixe. Pelo meio trocam-se olhares cúmplices e simultaneamente desconfiados, porque todos os presentes têm algo a esconder dos outros: há um recém-casado muito pouco fiel, uma mulher traída que não se sente parte da família, uma irmã que acoberta as traições do irmão, um francês que adora cuscuz mas poucas palavras sabe de árabe, uma jovem em dieta que não resiste a pimentos, uma matriarca separada que ainda não deixou de amar o marido que a abandonou.
Tal como eles, todos temos os nossos pequenos pecados a ocultar, principalmente daqueles que mais amamos. Tememos a rejeição dos que nos são queridos, não estar à altura das suas expectativas, não corresponder ao estereótipo da nossa função nas suas vidas. E estremecemos.
Talvez por isso uma figura como a de Slimane Beiji seja altamente improvável. Trata-se da personagem central do filme, um sexagenário que há trinta e cinco anos trabalha precariamente num estaleiro que o acha velho e lento demais para as funções que desempenha. Até aqui, nada de surpreendente. Mas Slimane guarda dentro do peito um sonho: abrir um restaurante num cargueiro decrépito, um negócio para deixar aos filhos quando morrer. E aqui tudo muda de figura. Acalentar sonhos aos sessenta anos é, por si só, digno de nota; empenhar todo o tempo e esforço para a sua concretização é ainda mais meritório.
Slimane, ao lutar pelo seu sonho até à exaustão, acaba por dar a todos quantos o vêem uma imensa lição de vida. Quantos de nós não desistimos já de algo que queríamos muito só porque algo ou alguém nos colocou um entrave, por minúsculo que tenha sido? Acabar a pensar que talvez não o quiséssemos assim tanto é uma forma de contornar as coisas, mas nem sempre é verdade. Provavelmente, queriamo-lo mesmo muito, simplesmente não tivemos a coragem e a perseverança para lutar por ele.
O filme termina com sugestões e não com afirmações. Não se vê o que aconteceu no fim daquela longa noite, mas intui-se. Cada um dos amados de Slimane – as filhas, a ex-mulher, os amigos músicos, a incansável Rym e a sua mãe –, não obstante o tanto que os separa uns dos outros, contribuiu com a sua parte para a realização de um mesmo objectivo.
Saí da sala com uma amálgama de sons e imagens a latejarem-me na cabeça: os palavrões da conversa entre uma adolescente e a mãe, a expressão desolada e os gritos agonizantes de uma mulher repetidamente traída pelo marido, o zumbido de uma motorizada e a fumaça espessa saindo do escape, os movimentos embriagantes, encantadores e extenuantes do ventre de Rym. E o durbak, sempre o durbak vibrando entre duas mãos enrugadas.
Cheguei à conclusão de que já lá vai algum tempo desde a última vez que sonhei acordada. Pus-me a fazer contas à vida e já lá vai demasiado tempo. «Quando foi a última vez que fizeste algo grandioso?», pensei com os meus botões, enquanto a chuva morrinha ia caindo lentamente sobre o pára-brisas do meu carro.
[Também publicado em PNETmulher.]
© Marta Madalena Botelho
Tal como eles, todos temos os nossos pequenos pecados a ocultar, principalmente daqueles que mais amamos. Tememos a rejeição dos que nos são queridos, não estar à altura das suas expectativas, não corresponder ao estereótipo da nossa função nas suas vidas. E estremecemos.
Talvez por isso uma figura como a de Slimane Beiji seja altamente improvável. Trata-se da personagem central do filme, um sexagenário que há trinta e cinco anos trabalha precariamente num estaleiro que o acha velho e lento demais para as funções que desempenha. Até aqui, nada de surpreendente. Mas Slimane guarda dentro do peito um sonho: abrir um restaurante num cargueiro decrépito, um negócio para deixar aos filhos quando morrer. E aqui tudo muda de figura. Acalentar sonhos aos sessenta anos é, por si só, digno de nota; empenhar todo o tempo e esforço para a sua concretização é ainda mais meritório.
Slimane, ao lutar pelo seu sonho até à exaustão, acaba por dar a todos quantos o vêem uma imensa lição de vida. Quantos de nós não desistimos já de algo que queríamos muito só porque algo ou alguém nos colocou um entrave, por minúsculo que tenha sido? Acabar a pensar que talvez não o quiséssemos assim tanto é uma forma de contornar as coisas, mas nem sempre é verdade. Provavelmente, queriamo-lo mesmo muito, simplesmente não tivemos a coragem e a perseverança para lutar por ele.
O filme termina com sugestões e não com afirmações. Não se vê o que aconteceu no fim daquela longa noite, mas intui-se. Cada um dos amados de Slimane – as filhas, a ex-mulher, os amigos músicos, a incansável Rym e a sua mãe –, não obstante o tanto que os separa uns dos outros, contribuiu com a sua parte para a realização de um mesmo objectivo.
Saí da sala com uma amálgama de sons e imagens a latejarem-me na cabeça: os palavrões da conversa entre uma adolescente e a mãe, a expressão desolada e os gritos agonizantes de uma mulher repetidamente traída pelo marido, o zumbido de uma motorizada e a fumaça espessa saindo do escape, os movimentos embriagantes, encantadores e extenuantes do ventre de Rym. E o durbak, sempre o durbak vibrando entre duas mãos enrugadas.
Cheguei à conclusão de que já lá vai algum tempo desde a última vez que sonhei acordada. Pus-me a fazer contas à vida e já lá vai demasiado tempo. «Quando foi a última vez que fizeste algo grandioso?», pensei com os meus botões, enquanto a chuva morrinha ia caindo lentamente sobre o pára-brisas do meu carro.
[Também publicado em PNETmulher.]
© Marta Madalena Botelho