A propósito da alteração do regime jurídico do divórcio discute-se muito o modelo do divórcio, ignorando a discussão em torno daquilo que lhe é sempre anterior, o casamento. Este texto pretende ser uma proposta de abordagem diferente para a reflexão em torno da alteração do regime jurídico do divórcio e algumas matérias que lhe são conexas.
Duas perguntas.
1. Por que razão, em vez de se procurarem outras soluções para pôr fim ao casamento, não se opta por extinguir definitivamente o contrato, abolindo a figura jurídica, sem mais?
2. Por que é que o Estado não deixa, de uma vez por todas, de querer regulamentar as relações afectivas entre duas pessoas adultas, livres e capazes, deixando-as exercer livre e conscientemente os seus direitos à liberdade, à autonomia sexual e à felicidade individual (este último, fui importá-lo à Constituição Americana, já que não está expressamente consagrado na Constituição da República Portuguesa, embora decorra do seu espírito)?
Quatro observações.
1. O amor entre as duas pessoas adultas, livres e esclarecidas, bem como as relações que desse sentimento derivem, não devem ser regulamentados por nenhum Estado ou, a admitir-se alguma regulamentação, ela deverá ser a menor possível.
2. As escolhas que digam respeito à felicidade de cada um cabem em exclusivo a essas pessoas e nelas não deve haver ingerências políticas, sociais, morais, religiosas ou quaisquer outras.
3. Abolir a figura jurídica do casamento teria como reflexo a queda de inúmeros preconceitos, discriminações, intromissões morais e religiões no plano legislativo e, acima de tudo, teria a virtude de acabar com desigualdades ridículas (como as de género e as fiscais) que subsistem (sim, em pleno século XXI) e são muito potenciadas pela existência da figura do casamento.
4. Para o caso de se cair na tentação fácil e redutora de justificar a necessidade legal da existência do contrato de casamento invocando o conceito de "família", convém nunca perder de vista que "família" e "casamento" são coisas absolutamente distintas e independentes. Não é o casamento que gera a família; o que sucede às vezes é que há famílias que nascem de um casamento, mas não é por isso que deixa de haver famílias que devem ser reconhecidas como tal e que surgiram e se mantêm fora do casamento. Evitemos, portanto, as falácias, que só inquinam as discussões e põem a nu a argumentação demagógica.
Uma ressalva.
Defender a extinção da figura jurídica do casamento não é sinónimo de que se tenha algo contra o casamento. Pode mesmo ser-se contra a existência da figura mas, sendo ela uma realidade, optar-se por se contrair casamento e/ou defender o direito de todas as pessoas a casar, sem que isso denuncie qualquer contradição. Metaforicamente falando, trata-se de «dançar ao som da música», uma vez que devido à existência do casamento, só é possível aceder a uma série de vantagens de índole vária no estado civil de "casado". (Aqui sempre viria a propósito invocar Voltaire para, mutatis mutandis, como ele, dizer «Não estou de acordo com aquilo que dizeis (com a existência do casamento), mas lutarei até ao fim para que vos seja possível dizê-lo (contraí-lo)»).
Uma consideração crítica.
A celeuma em torno deste assunto foi esclarecedora daquilo que em Portugal se pensa sobre o casamento, o divórcio e os seus efeitos. Tal como em muitas outras matérias, a sociedade portuguesa exibiu em todo o seu esplendor a profunda ignorância de que padece relativamente à realidade matrimonial de um grande número de casais portugueses. Com efeito, os portugueses continuam a fingir:
1. que não há desigualdade de facto entre os cônjuges;
2. que um dos cônjuges (geralmente, a mulher) acaba sempre por contribuir mais do que o outro em espécie (com trabalho, para falar mais claramente) para a vida doméstica e familiar (situação ainda mais frequente quando há filhos);
3. que a causa da esmagadora maioria dos divórcios litigiosos não é a falta de amor, mas sim a violação reiterada dos deveres conjugais (respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência);
4. que a possibilidade prevista pela Lei de um dos cônjuges ser considerado culpado é, muitas vezes, o único ponto de força que resta ao cônjuge que é vítima da violação dos deveres conjugais para conseguir "negociar" o fim do contrato de casamento de uma forma digna.
Por outro lado, tudo isto denunciou que os portugueses não foram capazes de ver que a alteração do regime jurídico do divórcio proposta:
1. só caminhava para a igualdade de facto dos cônjuges nos casos em que ela já existia, pois enfraquecia em muito a posição do cônjuge mais dependente, caso o houvesse;
2. permitia ao cônjuge que apenas contribuiu para a vida familiar e doméstica com dinheiro pudesse exigir ao cônjuge que a ela mais se dedicou com tempo, trabalho e abnegação (abdicando, por exemplo, de se entregar à carreira profissional como deveria) uma indemnização;
3. permitia que o cônjuge que reiteradamente violou os deveres conjugais pudesse obter o divórcio por iniciativa própria sem indemnizar ou compensar o cônjuge que foi vítima da violação desses deveres;
4. permitia que, por exemplo, um cônjuge que toda a vida agrediu física e verbalmente o outro mas que contribuiu com mais dinheiro para a vida familiar pudesse não só obter unilateralmente o divórcio, mas também, pelos contributos em dinheiro, pudesse obter uma indemnização do cônjuge a quem toda a vida agrediu, com a agravante de, não havendo culpa na extinção do contrato, nunca ser responsabilizado pela sua conduta violadora das imposições do contrato que celebrou.
Os exemplos de situações graves que a alteração proposta potenciaria poderiam ser inúmeros, como facilmente se antevê. Por isso, deixo aqui a sugestão aos interessados para que leiam as considerações do Senhor Presidente da República sobre a matéria, com as quais concordo em parte.
E termino.
Esta cegueira lusa, potenciada pela "politiquice" demagógica praticada pela imprensa, pelos bloggers, pelos "comentadores de serviço", etc. causa-me alguma urticária, confesso. Ao que me perguntam porque é que, se assim é, eu não mudo de país, respondo citando o Miguel Esteves Cardoso (vénia): «Eu estou completamente apaixonado por Portugal, sempre apaixonado doente e tudo o que eu vejo, ou quase tudo o que eu vejo e ouço, acho maravilhoso»...
Posto isto, que prossiga o debate.
[Três Tristes Tigres. «O mundo a meus pés». Partes Sensíveis. 1993. Uma excelente banda sonora para qualquer divórcio.]
[Também publicado em PNETcrónicas]
© Marta Madalena Botelho
Duas perguntas.
1. Por que razão, em vez de se procurarem outras soluções para pôr fim ao casamento, não se opta por extinguir definitivamente o contrato, abolindo a figura jurídica, sem mais?
2. Por que é que o Estado não deixa, de uma vez por todas, de querer regulamentar as relações afectivas entre duas pessoas adultas, livres e capazes, deixando-as exercer livre e conscientemente os seus direitos à liberdade, à autonomia sexual e à felicidade individual (este último, fui importá-lo à Constituição Americana, já que não está expressamente consagrado na Constituição da República Portuguesa, embora decorra do seu espírito)?
Quatro observações.
1. O amor entre as duas pessoas adultas, livres e esclarecidas, bem como as relações que desse sentimento derivem, não devem ser regulamentados por nenhum Estado ou, a admitir-se alguma regulamentação, ela deverá ser a menor possível.
2. As escolhas que digam respeito à felicidade de cada um cabem em exclusivo a essas pessoas e nelas não deve haver ingerências políticas, sociais, morais, religiosas ou quaisquer outras.
3. Abolir a figura jurídica do casamento teria como reflexo a queda de inúmeros preconceitos, discriminações, intromissões morais e religiões no plano legislativo e, acima de tudo, teria a virtude de acabar com desigualdades ridículas (como as de género e as fiscais) que subsistem (sim, em pleno século XXI) e são muito potenciadas pela existência da figura do casamento.
4. Para o caso de se cair na tentação fácil e redutora de justificar a necessidade legal da existência do contrato de casamento invocando o conceito de "família", convém nunca perder de vista que "família" e "casamento" são coisas absolutamente distintas e independentes. Não é o casamento que gera a família; o que sucede às vezes é que há famílias que nascem de um casamento, mas não é por isso que deixa de haver famílias que devem ser reconhecidas como tal e que surgiram e se mantêm fora do casamento. Evitemos, portanto, as falácias, que só inquinam as discussões e põem a nu a argumentação demagógica.
Uma ressalva.
Defender a extinção da figura jurídica do casamento não é sinónimo de que se tenha algo contra o casamento. Pode mesmo ser-se contra a existência da figura mas, sendo ela uma realidade, optar-se por se contrair casamento e/ou defender o direito de todas as pessoas a casar, sem que isso denuncie qualquer contradição. Metaforicamente falando, trata-se de «dançar ao som da música», uma vez que devido à existência do casamento, só é possível aceder a uma série de vantagens de índole vária no estado civil de "casado". (Aqui sempre viria a propósito invocar Voltaire para, mutatis mutandis, como ele, dizer «Não estou de acordo com aquilo que dizeis (com a existência do casamento), mas lutarei até ao fim para que vos seja possível dizê-lo (contraí-lo)»).
Uma consideração crítica.
A celeuma em torno deste assunto foi esclarecedora daquilo que em Portugal se pensa sobre o casamento, o divórcio e os seus efeitos. Tal como em muitas outras matérias, a sociedade portuguesa exibiu em todo o seu esplendor a profunda ignorância de que padece relativamente à realidade matrimonial de um grande número de casais portugueses. Com efeito, os portugueses continuam a fingir:
1. que não há desigualdade de facto entre os cônjuges;
2. que um dos cônjuges (geralmente, a mulher) acaba sempre por contribuir mais do que o outro em espécie (com trabalho, para falar mais claramente) para a vida doméstica e familiar (situação ainda mais frequente quando há filhos);
3. que a causa da esmagadora maioria dos divórcios litigiosos não é a falta de amor, mas sim a violação reiterada dos deveres conjugais (respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência);
4. que a possibilidade prevista pela Lei de um dos cônjuges ser considerado culpado é, muitas vezes, o único ponto de força que resta ao cônjuge que é vítima da violação dos deveres conjugais para conseguir "negociar" o fim do contrato de casamento de uma forma digna.
Por outro lado, tudo isto denunciou que os portugueses não foram capazes de ver que a alteração do regime jurídico do divórcio proposta:
1. só caminhava para a igualdade de facto dos cônjuges nos casos em que ela já existia, pois enfraquecia em muito a posição do cônjuge mais dependente, caso o houvesse;
2. permitia ao cônjuge que apenas contribuiu para a vida familiar e doméstica com dinheiro pudesse exigir ao cônjuge que a ela mais se dedicou com tempo, trabalho e abnegação (abdicando, por exemplo, de se entregar à carreira profissional como deveria) uma indemnização;
3. permitia que o cônjuge que reiteradamente violou os deveres conjugais pudesse obter o divórcio por iniciativa própria sem indemnizar ou compensar o cônjuge que foi vítima da violação desses deveres;
4. permitia que, por exemplo, um cônjuge que toda a vida agrediu física e verbalmente o outro mas que contribuiu com mais dinheiro para a vida familiar pudesse não só obter unilateralmente o divórcio, mas também, pelos contributos em dinheiro, pudesse obter uma indemnização do cônjuge a quem toda a vida agrediu, com a agravante de, não havendo culpa na extinção do contrato, nunca ser responsabilizado pela sua conduta violadora das imposições do contrato que celebrou.
Os exemplos de situações graves que a alteração proposta potenciaria poderiam ser inúmeros, como facilmente se antevê. Por isso, deixo aqui a sugestão aos interessados para que leiam as considerações do Senhor Presidente da República sobre a matéria, com as quais concordo em parte.
E termino.
Esta cegueira lusa, potenciada pela "politiquice" demagógica praticada pela imprensa, pelos bloggers, pelos "comentadores de serviço", etc. causa-me alguma urticária, confesso. Ao que me perguntam porque é que, se assim é, eu não mudo de país, respondo citando o Miguel Esteves Cardoso (vénia): «Eu estou completamente apaixonado por Portugal, sempre apaixonado doente e tudo o que eu vejo, ou quase tudo o que eu vejo e ouço, acho maravilhoso»...
Posto isto, que prossiga o debate.
[Três Tristes Tigres. «O mundo a meus pés». Partes Sensíveis. 1993. Uma excelente banda sonora para qualquer divórcio.]
[Também publicado em PNETcrónicas]
© Marta Madalena Botelho