Sempre achei curioso o facto de, em quase todas as situações de abordagem de determinados assuntos conotados com os afectos das pessoas, se procurar a todo o custo colocar o ênfase nos sentimentos, tentando reduzir à mínima importância tudo o que diga respeito ao dinheiro. O casamento e o divórcio, por exemplo, são dois casos paradigmáticos disto mesmo.
Muito provavelmente devido a ideias românticas (e, atrevo-me a dizer, impregnadas de religiosidade bacoca), quer-se à viva força impor a ideia de que, mais do que secundário, invocar as questões materiais quando se fala de casamento e divórcio é altamente censurável. Isto como se o dinheiro não dissesse qualquer respeito ao domínio do casamento e do divórcio, isto como se o dinheiro fosse algo dispensável e tudo o que importasse fosse a paixão.
Desenganemo-nos: quer no casamento (civil), quer no divórcio, se há algo supérfluo é a emoção. Com efeito, no que concerne ao casamento civil, ou seja, aquele que é regulado pela Lei, de nada importa que os cônjuges se amem. Importa, sim, que se respeitem, que se assistam mutuamente, que sejam fiéis um ao outro, que cooperem um com o outro e que coabitem a mesma casa. Se fazem isto porque se amam ou não, de nada interessa aos olhos da Lei. O amor ou a falta dele apenas têm relevância no plano individual ou no restrito âmbito do casal ou, ainda, como sucede em alguns casos, no plano religioso.
Do mesmo modo, para pôr fim ao casamento por meio do divórcio, de pouco aproveita que os cônjuges já não se amem. Aliás, não raras vezes sucede em situações de divórcio litigioso que pelo menos um dos cônjuges ainda nutre afecto pelo outro e, contudo, não será por isso que o tribunal não haverá de decretar o divórcio.
Mas, voltemos ao deveres decorrentes do contrato de casamento. São eles: respeito, assistência, fidelidade, cooperação e coabitação. Como facilmente se vê, embora todos estes deveres possam decorrer do amor, também é certo que nenhum destes deveres decorre necessariamente do amor. Consequentemente, poderá haver violação de todos eles existindo, em simultâneo com essa violação, uma enorme paixão entre os cônjuges. O que leva a concluir que o amor não é, obrigatoriamente, um elemento determinante do contrato de casamento.
Mas há mais. Embora fosse tremendamente tranquilizadora a ideia de que as pessoas se casam por amor, a verdade é que não é só por amor, nem sequer essencialmente por amor que as pessoas se casam. O amor existiu e existirá sempre para além das convenções, para além da assinatura de contratos, para além de registos escritos em livros paroquiais ou de Conservatórias. Para que dois indivíduos se amem bastam esses mesmos indivíduos, sem mais. E embora possamos até admitir que o amor é, na maior parte dos casos, o critério que preside à escolha do parceiro com quem se quer celebrar o casamento, haveremos também de convir que ele não é o factor que leva as pessoas a casarem. Sejamos honestos: a esmagadora maioria das pessoas casa-se por tradição, para concretizar um sonho, por obediência a convenções sociais, para que lhe seja concedido um empréstimo bancário, porque quer ter filhos, por questões sucessórias, para ter pretexto para dar uma festa e receber presentes ou por uma infinidade de outras razões que seria fastidioso enumerar. Em boa verdade, poucas serão as pessoas que casam tendo como única e exclusiva razão para isso o amor que sentem uma pela outra.
Não deveria, pois, surpreender uma única alma o facto de tanta importância se dar na Lei civil à vertente material do casamento. Trata-se de um contrato do qual decorrem, para cada uma das partes, direitos e deveres. Caso haja incumprimento desse contrato porque uma das partes não observou a prestação a que estava obrigada, haverá lugar, como em qualquer outro contrato, ao pagamento de uma indemnização à contraparte. Daí que seja nuclear abordar as questões monetárias no âmbito do divórcio, que nada mais é senão a declaração do fim de um contrato de casamento.
É fundamental que a Lei acautele a situação monetária dos casados: por isso existem o quociente conjugal em matéria de impostos e as taxas de juro mais baixas para casais, bem como os direitos sucessórios decorrentes do casamento, por exemplo. Mas, do mesmo modo, também releva que a Lei acautele a situação monetária dos ex-casados: por isso existe a responsabilidade civil do cônjuge que incumpriu a sua obrigação no casamento, por exemplo.
Em suma, há que assumir sem falsos pundonores que falar de casamento e de divórcio é muito mais falar de dinheiro do que de amor. E eu atrevo-me mesmo a dizer que, se isto fosse devidamente tomado em conta, a ninguém surpreenderia o indispensável pragmatismo com que deve lidar-se com ambas as matérias.
[Também publicado em PNETmulher]
© Marta Madalena Botelho
Muito provavelmente devido a ideias românticas (e, atrevo-me a dizer, impregnadas de religiosidade bacoca), quer-se à viva força impor a ideia de que, mais do que secundário, invocar as questões materiais quando se fala de casamento e divórcio é altamente censurável. Isto como se o dinheiro não dissesse qualquer respeito ao domínio do casamento e do divórcio, isto como se o dinheiro fosse algo dispensável e tudo o que importasse fosse a paixão.
Desenganemo-nos: quer no casamento (civil), quer no divórcio, se há algo supérfluo é a emoção. Com efeito, no que concerne ao casamento civil, ou seja, aquele que é regulado pela Lei, de nada importa que os cônjuges se amem. Importa, sim, que se respeitem, que se assistam mutuamente, que sejam fiéis um ao outro, que cooperem um com o outro e que coabitem a mesma casa. Se fazem isto porque se amam ou não, de nada interessa aos olhos da Lei. O amor ou a falta dele apenas têm relevância no plano individual ou no restrito âmbito do casal ou, ainda, como sucede em alguns casos, no plano religioso.
Do mesmo modo, para pôr fim ao casamento por meio do divórcio, de pouco aproveita que os cônjuges já não se amem. Aliás, não raras vezes sucede em situações de divórcio litigioso que pelo menos um dos cônjuges ainda nutre afecto pelo outro e, contudo, não será por isso que o tribunal não haverá de decretar o divórcio.
Mas, voltemos ao deveres decorrentes do contrato de casamento. São eles: respeito, assistência, fidelidade, cooperação e coabitação. Como facilmente se vê, embora todos estes deveres possam decorrer do amor, também é certo que nenhum destes deveres decorre necessariamente do amor. Consequentemente, poderá haver violação de todos eles existindo, em simultâneo com essa violação, uma enorme paixão entre os cônjuges. O que leva a concluir que o amor não é, obrigatoriamente, um elemento determinante do contrato de casamento.
Mas há mais. Embora fosse tremendamente tranquilizadora a ideia de que as pessoas se casam por amor, a verdade é que não é só por amor, nem sequer essencialmente por amor que as pessoas se casam. O amor existiu e existirá sempre para além das convenções, para além da assinatura de contratos, para além de registos escritos em livros paroquiais ou de Conservatórias. Para que dois indivíduos se amem bastam esses mesmos indivíduos, sem mais. E embora possamos até admitir que o amor é, na maior parte dos casos, o critério que preside à escolha do parceiro com quem se quer celebrar o casamento, haveremos também de convir que ele não é o factor que leva as pessoas a casarem. Sejamos honestos: a esmagadora maioria das pessoas casa-se por tradição, para concretizar um sonho, por obediência a convenções sociais, para que lhe seja concedido um empréstimo bancário, porque quer ter filhos, por questões sucessórias, para ter pretexto para dar uma festa e receber presentes ou por uma infinidade de outras razões que seria fastidioso enumerar. Em boa verdade, poucas serão as pessoas que casam tendo como única e exclusiva razão para isso o amor que sentem uma pela outra.
Não deveria, pois, surpreender uma única alma o facto de tanta importância se dar na Lei civil à vertente material do casamento. Trata-se de um contrato do qual decorrem, para cada uma das partes, direitos e deveres. Caso haja incumprimento desse contrato porque uma das partes não observou a prestação a que estava obrigada, haverá lugar, como em qualquer outro contrato, ao pagamento de uma indemnização à contraparte. Daí que seja nuclear abordar as questões monetárias no âmbito do divórcio, que nada mais é senão a declaração do fim de um contrato de casamento.
É fundamental que a Lei acautele a situação monetária dos casados: por isso existem o quociente conjugal em matéria de impostos e as taxas de juro mais baixas para casais, bem como os direitos sucessórios decorrentes do casamento, por exemplo. Mas, do mesmo modo, também releva que a Lei acautele a situação monetária dos ex-casados: por isso existe a responsabilidade civil do cônjuge que incumpriu a sua obrigação no casamento, por exemplo.
Em suma, há que assumir sem falsos pundonores que falar de casamento e de divórcio é muito mais falar de dinheiro do que de amor. E eu atrevo-me mesmo a dizer que, se isto fosse devidamente tomado em conta, a ninguém surpreenderia o indispensável pragmatismo com que deve lidar-se com ambas as matérias.
[Também publicado em PNETmulher]
© Marta Madalena Botelho