Obedecendo à disciplina de voto imposta na reunião do grupo parlamentar de 2 de Outubro, os senhores deputados do PS votaram contra ambas as propostas de alteração do Código Civil tendo em vista viabilizar o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo apresentadas pelo BE e pelo PEV que foram levadas a plenário na passada sexta-feira. Em resultado, do ponto de vista legislativo tudo ficou na mesma, mas do ponto de vista político há consequências que acabaram por beliscar, e muito, os socialistas.
As coisas começaram a andar mal assim que a JS comunicou que iria retirar a sua proposta (que coincidia com a proposta do BE), impedindo que a mesma fosse a plenário apenas porque entendiam que o objectivo do BE era «ultrapassar» o PS e não propriamente aprovar a alteração da lei. Escudando-se nesses supostos tortuosos proveitos eleitorais do BE, a JS recuou e recuar, em política, é quase sempre – e aqui foi – sinónimo de debilidade. O partido que «não anda a reboque de nenhum outro partido» (nas palavras de José Sócrates), afinal andou a reboque dos acontecimentos provocados… pelos outros partidos. Ora, já todos sabemos que a política é um domínio especialmente profícuo em retórica, mas talvez nunca venhamos a habituar-nos a estas tentativas de disfarçar o indisfarçável: a antecipação do BE e do PEV incomodou o PS e isso ficou bem patente.
As coisas continuaram a andar mal quando se tornou pública a imposição da disciplina de voto aos deputados socialistas, com excepção de Pedro Nuno Santos. Alegou o grupo parlamentar que a excepção se justificava pelo facto de o deputado em questão ter assumido publicamente a sua posição favorável à alteração legislativa, tendo mesmo chegado a tomar medidas no sentido de a concretizar. As vozes que, dentro do grupo parlamentar, se insurgiram contra isto foram todas no mesmo sentido: a imposição é, no mínimo, questionável à luz do estatuto dos deputados e do exercício individual da função. E é questionável nesta como em todas as matérias, embora neste caso seja mais flagrante, até pelo facto de alguns (erradamente) considerarem tratar-se de uma questão de consciência. Sucede que esta não é nem nunca foi uma questão de consciência. Nenhuma matéria de Direitos Fundamentais é matéria de consciência. Os direitos fundamentais são inerentes à pessoa humana e à sua dignidade, não dependendo de nenhum Estado e de nenhuma consciência para existirem, mas, tão somente, para serem reconhecidos. O reconhecimento destes direitos não pode depender das opiniões, consciências e preconceitos dos deputados, pois é independente de tudo isso. Ao invés, no correcto exercício das suas funções, aos deputados cumpre viabilizar as alterações legislativas que sejam necessárias para o reconhecimento desses direitos. Neste sentido, dir-se-ia que é mesmo um dever dos deputados pôr termo a todas as formas de discriminação e violação de direitos fundamentais que decorram da letra da Lei.
E se é um dever, mais premente se torna a questão da celeridade com que isso deve ser levado a cabo. É inaceitável, no que respeita à dignidade humana, que o P.S. opte por protelar o fim de uma discriminação que reconhece existir para um momento posterior apenas porque a proposta apresentada que visa pôr-lhe fim não foi feita pela sua bancada parlamentar, mas sim por outros partidos (embora pretenda fazer passar a ideia de que o fez por entender que a questão necessita de «maior maturação» (sic)). Quase roça a obscenidade afirmar que se considera que a proibição do casamento entre duas pessoas do mesmo sexo é discriminatória e atentatória contra os direitos humanos e, simultaneamente, ficar sentado votando contra a alteração legislativa que acabaria com essa proibição. Foi o que fizeram todos os deputados do P.S. excepto o referido Pedro Nuno Santos, Manuel Alegre (que votou a favor) e Isabel Pires de Lima (que deliberadamente se ausentou do Plenário durante a votação). Isto evidencia uma clara irresponsabilidade perante o que são as obrigações de qualquer um de nós enquanto cidadão de um Estado de Direito democrático – e por estas obrigações entenda-se respeitar os direitos fundamentais da pessoa humana – e, em termos políticos, uma vontade deliberada de instrumentalizar a função do deputado, substituindo os critérios pelos quais a mesma se deve nortear por critérios políticos, de subserviência intelectual ao "seguidismo" partidário e de aniquilamento da capacidade decisória das pessoas que desempenham essa função.
De tudo importa reter que, mais do que votos, o P.S. perdeu uma soberana oportunidade de operar uma modificação que se impõe em termos sociais e legislativos e, ainda, a possibilidade de dar sinais claros aos cidadãos portugueses de que é um partido capaz de defender aquilo em que acredita. Todavia, tudo o que o P.S. perdeu é pouco, mesquinho e profundamente insignificante se comparado com a oportunidade de felicidade que tantos e tantos cidadãos deste país perderam.
[Também publicado em PnetMulher]
© Marta Madalena Botelho
As coisas começaram a andar mal assim que a JS comunicou que iria retirar a sua proposta (que coincidia com a proposta do BE), impedindo que a mesma fosse a plenário apenas porque entendiam que o objectivo do BE era «ultrapassar» o PS e não propriamente aprovar a alteração da lei. Escudando-se nesses supostos tortuosos proveitos eleitorais do BE, a JS recuou e recuar, em política, é quase sempre – e aqui foi – sinónimo de debilidade. O partido que «não anda a reboque de nenhum outro partido» (nas palavras de José Sócrates), afinal andou a reboque dos acontecimentos provocados… pelos outros partidos. Ora, já todos sabemos que a política é um domínio especialmente profícuo em retórica, mas talvez nunca venhamos a habituar-nos a estas tentativas de disfarçar o indisfarçável: a antecipação do BE e do PEV incomodou o PS e isso ficou bem patente.
As coisas continuaram a andar mal quando se tornou pública a imposição da disciplina de voto aos deputados socialistas, com excepção de Pedro Nuno Santos. Alegou o grupo parlamentar que a excepção se justificava pelo facto de o deputado em questão ter assumido publicamente a sua posição favorável à alteração legislativa, tendo mesmo chegado a tomar medidas no sentido de a concretizar. As vozes que, dentro do grupo parlamentar, se insurgiram contra isto foram todas no mesmo sentido: a imposição é, no mínimo, questionável à luz do estatuto dos deputados e do exercício individual da função. E é questionável nesta como em todas as matérias, embora neste caso seja mais flagrante, até pelo facto de alguns (erradamente) considerarem tratar-se de uma questão de consciência. Sucede que esta não é nem nunca foi uma questão de consciência. Nenhuma matéria de Direitos Fundamentais é matéria de consciência. Os direitos fundamentais são inerentes à pessoa humana e à sua dignidade, não dependendo de nenhum Estado e de nenhuma consciência para existirem, mas, tão somente, para serem reconhecidos. O reconhecimento destes direitos não pode depender das opiniões, consciências e preconceitos dos deputados, pois é independente de tudo isso. Ao invés, no correcto exercício das suas funções, aos deputados cumpre viabilizar as alterações legislativas que sejam necessárias para o reconhecimento desses direitos. Neste sentido, dir-se-ia que é mesmo um dever dos deputados pôr termo a todas as formas de discriminação e violação de direitos fundamentais que decorram da letra da Lei.
E se é um dever, mais premente se torna a questão da celeridade com que isso deve ser levado a cabo. É inaceitável, no que respeita à dignidade humana, que o P.S. opte por protelar o fim de uma discriminação que reconhece existir para um momento posterior apenas porque a proposta apresentada que visa pôr-lhe fim não foi feita pela sua bancada parlamentar, mas sim por outros partidos (embora pretenda fazer passar a ideia de que o fez por entender que a questão necessita de «maior maturação» (sic)). Quase roça a obscenidade afirmar que se considera que a proibição do casamento entre duas pessoas do mesmo sexo é discriminatória e atentatória contra os direitos humanos e, simultaneamente, ficar sentado votando contra a alteração legislativa que acabaria com essa proibição. Foi o que fizeram todos os deputados do P.S. excepto o referido Pedro Nuno Santos, Manuel Alegre (que votou a favor) e Isabel Pires de Lima (que deliberadamente se ausentou do Plenário durante a votação). Isto evidencia uma clara irresponsabilidade perante o que são as obrigações de qualquer um de nós enquanto cidadão de um Estado de Direito democrático – e por estas obrigações entenda-se respeitar os direitos fundamentais da pessoa humana – e, em termos políticos, uma vontade deliberada de instrumentalizar a função do deputado, substituindo os critérios pelos quais a mesma se deve nortear por critérios políticos, de subserviência intelectual ao "seguidismo" partidário e de aniquilamento da capacidade decisória das pessoas que desempenham essa função.
De tudo importa reter que, mais do que votos, o P.S. perdeu uma soberana oportunidade de operar uma modificação que se impõe em termos sociais e legislativos e, ainda, a possibilidade de dar sinais claros aos cidadãos portugueses de que é um partido capaz de defender aquilo em que acredita. Todavia, tudo o que o P.S. perdeu é pouco, mesquinho e profundamente insignificante se comparado com a oportunidade de felicidade que tantos e tantos cidadãos deste país perderam.
[Também publicado em PnetMulher]
© Marta Madalena Botelho