Por muito que uns gostem e outros odeiem Portugal, terra de aparições, consagrações e dedicações, é, antes de mais, um país devoto. Poderia acrescentar-se ao manguito do «Zé Povinho» uma velinha na mão direita que a imagem do português típico não ficaria muito comprometida e, ao invés, muito mais completa. Por algum motivo esta nação foi dedicada à Imaculada Conceição. Por algum motivo a azinheira escolhida por Nossa Senhora para alertar para os males do comunismo e a imperatividade da recitação do rosário tem raízes em Fátima. Por algum motivo vivemos inebriados durante quarenta anos pelo impacto da trilogia «Deus, Pátria, Família».
Muito poucos devem ser os feriados municipais que não sejam em honra de um santo católico. Terra que se preze tem sempre como padroeiro um santo, de preferência mártir. A toponímia, por seu turno, está cheia de referências aos eleitos da Igreja Católica. E nem a doçaria escapa a baptismos abençoados.
Porém, tanta religiosidade não implica sempre e só sacrifício. Bem vistas as coisas, até tem as suas vantagens. A par das festas religiosas andam sempre os festejos profanos. Enquanto as primeiras obrigam a jejuns, arrependimentos e penitências, as segundas primam pelos desregramentos, exageros e diversão. A Páscoa e as manifestações que a cercam são o exemplo paradigmático disso.
No sábado que a Igreja chama «de Aleluia» é costume, em diversas localidades, fazer-se a «Queima do Judas». Depois de uma encenação mais ou menos complexa (conforme os costumes locais), que consiste num auto-de-fé popular, o boneco representando o traidor de Cristo é queimado em chamas altas, sob forte regozijo dos que assistem ao espectáculo.
A cerimónia da «Queima do Judas», mais do que a expressão colectiva do desejo de pôr fim ao período de tormenta imposto pela Quaresma, é a concretização da vingança da abstinência de tudo aquilo a que se releva o mal que faz pelo bem que sabe, entre os excessos dos insultos ao «maldito» e o espalhafato das carpideiras.
Mas Judas é, também, um providencial bode expiatório de todos males e de todas as críticas que, numa tentativa de desculpabilização, todos reconhecem necessários, tão imprescindíveis quanto o beijo que o discípulo delator deu ao Mestre na hora em que o entregou, tudo para que se cumprisse o que tinha sido escrito pelos Profetas.
O Judas que se queima na noite que antecede o dia da Ressurreição poderia muito bem simbolizar tantos que, como ele, se vendem por trinta dinheiros ou até por bem menos, agora como dantes, mas que não vêem grande mal nisso, já que acreditam que haverá sempre quem venha depois para redimir o mal feito.
Segundo certas tradições, o boneco que arde no alto da forca tem ao peito uma sábia inscrição: «Aqui jaz Judas Iscariote / Aquele que a Cristo vendeu / Todos os que daí me olham / São mais Judas do que eu». Dizem alguns que é a parte que o fogo mais trabalho tem para consumir. Certamente, não é por acaso.
[Também publicado em PnetCrónicas.]
© Marta Madalena Botelho
Muito poucos devem ser os feriados municipais que não sejam em honra de um santo católico. Terra que se preze tem sempre como padroeiro um santo, de preferência mártir. A toponímia, por seu turno, está cheia de referências aos eleitos da Igreja Católica. E nem a doçaria escapa a baptismos abençoados.
Porém, tanta religiosidade não implica sempre e só sacrifício. Bem vistas as coisas, até tem as suas vantagens. A par das festas religiosas andam sempre os festejos profanos. Enquanto as primeiras obrigam a jejuns, arrependimentos e penitências, as segundas primam pelos desregramentos, exageros e diversão. A Páscoa e as manifestações que a cercam são o exemplo paradigmático disso.
No sábado que a Igreja chama «de Aleluia» é costume, em diversas localidades, fazer-se a «Queima do Judas». Depois de uma encenação mais ou menos complexa (conforme os costumes locais), que consiste num auto-de-fé popular, o boneco representando o traidor de Cristo é queimado em chamas altas, sob forte regozijo dos que assistem ao espectáculo.
A cerimónia da «Queima do Judas», mais do que a expressão colectiva do desejo de pôr fim ao período de tormenta imposto pela Quaresma, é a concretização da vingança da abstinência de tudo aquilo a que se releva o mal que faz pelo bem que sabe, entre os excessos dos insultos ao «maldito» e o espalhafato das carpideiras.
Mas Judas é, também, um providencial bode expiatório de todos males e de todas as críticas que, numa tentativa de desculpabilização, todos reconhecem necessários, tão imprescindíveis quanto o beijo que o discípulo delator deu ao Mestre na hora em que o entregou, tudo para que se cumprisse o que tinha sido escrito pelos Profetas.
O Judas que se queima na noite que antecede o dia da Ressurreição poderia muito bem simbolizar tantos que, como ele, se vendem por trinta dinheiros ou até por bem menos, agora como dantes, mas que não vêem grande mal nisso, já que acreditam que haverá sempre quem venha depois para redimir o mal feito.
Segundo certas tradições, o boneco que arde no alto da forca tem ao peito uma sábia inscrição: «Aqui jaz Judas Iscariote / Aquele que a Cristo vendeu / Todos os que daí me olham / São mais Judas do que eu». Dizem alguns que é a parte que o fogo mais trabalho tem para consumir. Certamente, não é por acaso.
[Também publicado em PnetCrónicas.]
© Marta Madalena Botelho