Foi publicada hoje no jornal «Correio da Manhã» uma notícia com o título seguinte: «Casal recebe 667 mil euros por falta de sexo». O mesmo título foi adoptado pelo jornal «i» para noticiar o mesmo assunto.
A notícia refere-se ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 08/09/2009. Tal acórdão debruça-se sobre o direito de indemnização decorrente da incapacidade parcial permanente de uma mulher que lhe foi causada por um acidente de viação.
Para se compreender a decisão, antes de a comentar (como pretende fazer a notícia), importa ter presente que do referido acidente de viação resultaram, entre outros, os seguintes danos, que o Tribunal deu como provados, e cito (sublinhados meus):
«(...) 32) Em virtude das lesões sofridas passou à situação de apatia total.
33) Perdeu a força do seu braço direito, sendo dextra.
34) Passou a padecer de contínuas quedas de cabelo.
35) A não poder caminhar porque lhe incha a perna direita.
36) Ficou a padecer de dores nas costas e no corpo.
37) O corpo da autora ficou marcado com diversas cicatrizes na perna, braço e cotovelo direitos.
38) Apresenta uma cicatriz no ombro direito.
39) A Autora perde a noção do lugar onde se encontra, ao ponto de se perder das pessoas.
40) Serve-se de qualquer lugar como se de um quarto de banho se tratasse.
41) Acende o fogão, permitindo fugas de gás e queima as próprias roupas da casa.
42) Em virtude do embate deixou de confeccionar as refeições para si e para a sua família e de arrumar a casa.
43) Esconde-se da filha P... C... quando a mesma vem de fim-de-semana, tratando-a às vezes como uma intrusa.
44) Não presta a atenção e os cuidados ao filho P..., que frequenta o ensino secundário, e a quem afasta da sua presença.
45) Quando tem períodos de lucidez, começa a pensar em toda a situação que lhe adveio, recolhendo-se em choro compulsivo, irritação e gritaria.
46) A situação descrita causa à autora transtornos, incómodos, tristeza e ansiedade.
47) A Autora terá de ser acompanhada por profissionais de saúde das especialidades de neurologia, psiquiatria, fisioterapia, urologia e oftalmologia e demais especialidades que advirão da incerteza do seu estado físico. (...)
50) À data do embate, a autora era saudável e alegre, vivia em harmonia com o marido, filhos e demais pessoas do meio e era voluntariosa no trabalho.
51) Era capaz de tratar de si própria e acompanhava a educação dos filhos, mantendo-se sempre atenta ao futuro destes.
52) Projectava a construção da sua casa e acompanhava a carreira profissional do marido.
56) Como consequência do embate a autora ficou com uma incapacidade permanente para o trabalho de 100%. (...)
60) A Autora e o Autor acompanhavam-se mutuamente no dia a dia, com manifestações de carinho, solidariedade, amizade e boa e sã convivência.
61) Desde a data do embate a autora rejeita toda e qualquer relação sexual, seja pelas dores que sente, seja pela falta de reacção a qualquer estímulo.
63) A autora nasceu em 17.11.62 (certidão do assento de nascimento de folhas 120). (...)».
Como facilmente se deduz, a questão sobre a qual o STJ se debruçou foi a da impossibilidade da vítima deste acidente, por causa desse mesmo acidente, cumprir o débito conjugal (ou seja, ter relações sexuais com o cônjuge) que, como é consabido, é um dever decorrente do contrato de casamento civil.
Ao contrário do que o lamentável título da notícia do «Correio da Manhã» pretende dar a entender, o STJ não se pronunciou sobre a "falta de sexo" entre o casal, mas sim sobre a impossibilidade de qualquer tipo de relação sexual entre o casal na sequência dos danos causados por aquele referido acidente de viação.
O título do «Correio da Manhã» tem, claramente, dois propósitos: por um lado, pretende criar uma falsa polémica em torno de uma decisão judicial; por outro lado, pretende descredibilizar não só esta decisão, em particular, mas também a postura do STJ em relação às questões que o próprio «Correio da Manhã», assumindo uma evidente perspectiva reducionista da matéria, conota com «dinheiro» e «sexo».
O título da notícia dá a entender que o STJ terá atribuído uma indemnização (relativamente elevada) a um casal simplesmente porque... tinham «falta de sexo». Ora, na realidade, da leitura do acórdão resulta que essa indemnização se encontra plenamente justificada por se destinar à reparação dos danos reflexos causados por um acidente de viação do qual resultaram sequelas permanentes que impedem a vítima e o seu cônjuge de realizarem plenamente o projecto de «comunhão de vida» que serve de base ao casamento civil (e que inclui a prática de relações sexuais entre os cônjuges).
Deste título não pode dizer-se apenas que é tendencioso e incorrecto. Na verdade, quase roça o insultuoso:
1. em relação ao casal em questão, que vê um dolorosíssimo aspecto da sua vida íntima assim levianamente tratado pela imprensa;
2. em relação ao STJ e ao Relator do acórdão, o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Dr. Nuno Cameira que, refira-se, é um Juíz Conselheiro de elevado mérito, cujas decisões são reconhecidamente tidas como justas, sensatas e ponderadas;
3. em relação à justiça portuguesa, pois o STJ é a última instância decisória e instrumentalizar deste modo as suas decisões poderá lesar o bom nome da instituição e, consequentemente, pôr em causa a justiça praticada;
3. e, finalmente, em relação ao leitor do «Correio da Manhã», que assim se vê induzido em erro por um jornalismo de péssima qualidade.
_________________
Nota: o presente texto foi remetido por e-mail à Direcção do «Correio da Manhã» em 15/09/2009.
O Exmo. Senhor Director do «Correio da Manhã» teve a amabilidade de responder em poucas horas. Uma vez que se tratou de uma comunicação pessoal, entendo não ser adequada a sua publicação no blogue, sendo certo que em nada violarei o devido sigilo ao esclarecer que, alegando a necessidade de síntese nos títulos, saiu em defesa do título da notícia, rejeitando a qualificação «jornalismo de má qualidade».
A notícia refere-se ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 08/09/2009. Tal acórdão debruça-se sobre o direito de indemnização decorrente da incapacidade parcial permanente de uma mulher que lhe foi causada por um acidente de viação.
Para se compreender a decisão, antes de a comentar (como pretende fazer a notícia), importa ter presente que do referido acidente de viação resultaram, entre outros, os seguintes danos, que o Tribunal deu como provados, e cito (sublinhados meus):
«(...) 32) Em virtude das lesões sofridas passou à situação de apatia total.
33) Perdeu a força do seu braço direito, sendo dextra.
34) Passou a padecer de contínuas quedas de cabelo.
35) A não poder caminhar porque lhe incha a perna direita.
36) Ficou a padecer de dores nas costas e no corpo.
37) O corpo da autora ficou marcado com diversas cicatrizes na perna, braço e cotovelo direitos.
38) Apresenta uma cicatriz no ombro direito.
39) A Autora perde a noção do lugar onde se encontra, ao ponto de se perder das pessoas.
40) Serve-se de qualquer lugar como se de um quarto de banho se tratasse.
41) Acende o fogão, permitindo fugas de gás e queima as próprias roupas da casa.
42) Em virtude do embate deixou de confeccionar as refeições para si e para a sua família e de arrumar a casa.
43) Esconde-se da filha P... C... quando a mesma vem de fim-de-semana, tratando-a às vezes como uma intrusa.
44) Não presta a atenção e os cuidados ao filho P..., que frequenta o ensino secundário, e a quem afasta da sua presença.
45) Quando tem períodos de lucidez, começa a pensar em toda a situação que lhe adveio, recolhendo-se em choro compulsivo, irritação e gritaria.
46) A situação descrita causa à autora transtornos, incómodos, tristeza e ansiedade.
47) A Autora terá de ser acompanhada por profissionais de saúde das especialidades de neurologia, psiquiatria, fisioterapia, urologia e oftalmologia e demais especialidades que advirão da incerteza do seu estado físico. (...)
50) À data do embate, a autora era saudável e alegre, vivia em harmonia com o marido, filhos e demais pessoas do meio e era voluntariosa no trabalho.
51) Era capaz de tratar de si própria e acompanhava a educação dos filhos, mantendo-se sempre atenta ao futuro destes.
52) Projectava a construção da sua casa e acompanhava a carreira profissional do marido.
56) Como consequência do embate a autora ficou com uma incapacidade permanente para o trabalho de 100%. (...)
60) A Autora e o Autor acompanhavam-se mutuamente no dia a dia, com manifestações de carinho, solidariedade, amizade e boa e sã convivência.
61) Desde a data do embate a autora rejeita toda e qualquer relação sexual, seja pelas dores que sente, seja pela falta de reacção a qualquer estímulo.
63) A autora nasceu em 17.11.62 (certidão do assento de nascimento de folhas 120). (...)».
Como facilmente se deduz, a questão sobre a qual o STJ se debruçou foi a da impossibilidade da vítima deste acidente, por causa desse mesmo acidente, cumprir o débito conjugal (ou seja, ter relações sexuais com o cônjuge) que, como é consabido, é um dever decorrente do contrato de casamento civil.
Ao contrário do que o lamentável título da notícia do «Correio da Manhã» pretende dar a entender, o STJ não se pronunciou sobre a "falta de sexo" entre o casal, mas sim sobre a impossibilidade de qualquer tipo de relação sexual entre o casal na sequência dos danos causados por aquele referido acidente de viação.
O título do «Correio da Manhã» tem, claramente, dois propósitos: por um lado, pretende criar uma falsa polémica em torno de uma decisão judicial; por outro lado, pretende descredibilizar não só esta decisão, em particular, mas também a postura do STJ em relação às questões que o próprio «Correio da Manhã», assumindo uma evidente perspectiva reducionista da matéria, conota com «dinheiro» e «sexo».
O título da notícia dá a entender que o STJ terá atribuído uma indemnização (relativamente elevada) a um casal simplesmente porque... tinham «falta de sexo». Ora, na realidade, da leitura do acórdão resulta que essa indemnização se encontra plenamente justificada por se destinar à reparação dos danos reflexos causados por um acidente de viação do qual resultaram sequelas permanentes que impedem a vítima e o seu cônjuge de realizarem plenamente o projecto de «comunhão de vida» que serve de base ao casamento civil (e que inclui a prática de relações sexuais entre os cônjuges).
Deste título não pode dizer-se apenas que é tendencioso e incorrecto. Na verdade, quase roça o insultuoso:
1. em relação ao casal em questão, que vê um dolorosíssimo aspecto da sua vida íntima assim levianamente tratado pela imprensa;
2. em relação ao STJ e ao Relator do acórdão, o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Dr. Nuno Cameira que, refira-se, é um Juíz Conselheiro de elevado mérito, cujas decisões são reconhecidamente tidas como justas, sensatas e ponderadas;
3. em relação à justiça portuguesa, pois o STJ é a última instância decisória e instrumentalizar deste modo as suas decisões poderá lesar o bom nome da instituição e, consequentemente, pôr em causa a justiça praticada;
3. e, finalmente, em relação ao leitor do «Correio da Manhã», que assim se vê induzido em erro por um jornalismo de péssima qualidade.
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Nota: o presente texto foi remetido por e-mail à Direcção do «Correio da Manhã» em 15/09/2009.
O Exmo. Senhor Director do «Correio da Manhã» teve a amabilidade de responder em poucas horas. Uma vez que se tratou de uma comunicação pessoal, entendo não ser adequada a sua publicação no blogue, sendo certo que em nada violarei o devido sigilo ao esclarecer que, alegando a necessidade de síntese nos títulos, saiu em defesa do título da notícia, rejeitando a qualificação «jornalismo de má qualidade».