Entre muitas outras coisas, recebi de herança genética um diastema, visível desde que a dentição dita de leite deu lugar à definitiva. Nunca fiz grande questão de o corrigir e essa ideia foi praticamente posta de parte quando o meu dentista me disse que fazê-lo poderia comportar o enfraquecimento de todos os meus dentes.
Com o passar dos anos, as pessoas habituaram-se a ver o meu diastema como uma característica que me assentava bem. Há quem diga que me confere carisma, outros dizem que não são capazes de me imaginar sem ele e creio que também eu me habituei a ver o meu diastema como uma característica que, vá lá, não me assenta muito mal.
Tenho assumidamente um fraquinho por dentes brancos, mãos esguias, dedos delicados e orelhas pequeninas. Digamos que me enternecem. No entanto, tenho um fraquinho muito maior por manchas sépia, nevos, narizes imponentes, pelos buraquinhos que a varicela que tivemos em pequeninos deixou na nossa pele. Estas características, geralmente tidas como imperfeições, fascinam-me muito mais do que a obediência absoluta aos cânones da beleza actual, provavelmente, porque são estes detalhes que nos tornam autênticos, diferentes dos demais e que, ao longo dos anos, acabam por nos identificar.
Porém, lidar com as imperfeições de alguém é infinitamente mais difícil do que gostar das suas boas características. E não é difícil perceber porquê, já que compreender o imperfeito é muito menos instintivo e nada nem ninguém nos sensibiliza para isso. Ao invés, a apologia é feita à beleza e ao ideal: desde crianças ouvimos histórias em que todas as princesas encontram príncipes encantados e, mesmo que inconscientemente, inculcamos a convicção de que o mesmo terá de suceder connosco. Logo, se o príncipe não é perfeito, é porque não é para nós.
Talvez por isso nos seja também tão espinhoso aceitar as nossas próprias imperfeições (afinal de contas, somos a princesa da nossa própria história) e, ainda mais, as dos outros. Talvez por isso nos seja tão árduo encarar os pormenores menos bom que todos temos, desde os mais visíveis, como os diastemas, até aos mais escondidos, como aqueles que nem sabemos que temos até ao momento em que, seja lá pelo que for, nos deparamos com eles.
Aprender a fazê-lo é tarefa para uma vida inteira e tomar consciência de que todos temos muito de podridão é algo que só a autoreflexão e a maturidade nos permitirão. Indispensável é que estejamos cientes de que esse percurso é inevitável para todos nós, porque todos haveremos de ser, mais cedo ou mais tarde, confrontados com as nossas características menos positivas. E, claro, com as dos outros também.
Há, por isso, que encontrar as forças indispensáveis para as ver, as aceitar e as corrigir, sem que isso implique o desabar das nossas vidas, dos nossos alicerces, das nossas poucas certezas, se é que as há.
Assim se cresce, assim se evolui, assim se superam os erros, as desilusões e os momentos menos positivos criados por nós mesmos ou pelos que nos rodeiam. Só assim, porque não há via alternativa, não há volta a dar-lhe, por muito engenhosos que sejamos.
Para tudo isto, mais do que qualquer outra coisa, é preciso vontade, o ponto de partida de tudo, porque ninguém fará este caminho se não quiser e muito menos o fará por imposição de alguém. Se o caminhante já iniciou a rota, tenhamos, pelo menos, a humildade de reconhecer que o fez por si. E se formos nós o caminhante, orgulhemo-nos disso. É o mínimo que podemos fazer e é também o mínimo que devemos exigir.
© [m.m. botelho]
Com o passar dos anos, as pessoas habituaram-se a ver o meu diastema como uma característica que me assentava bem. Há quem diga que me confere carisma, outros dizem que não são capazes de me imaginar sem ele e creio que também eu me habituei a ver o meu diastema como uma característica que, vá lá, não me assenta muito mal.
Tenho assumidamente um fraquinho por dentes brancos, mãos esguias, dedos delicados e orelhas pequeninas. Digamos que me enternecem. No entanto, tenho um fraquinho muito maior por manchas sépia, nevos, narizes imponentes, pelos buraquinhos que a varicela que tivemos em pequeninos deixou na nossa pele. Estas características, geralmente tidas como imperfeições, fascinam-me muito mais do que a obediência absoluta aos cânones da beleza actual, provavelmente, porque são estes detalhes que nos tornam autênticos, diferentes dos demais e que, ao longo dos anos, acabam por nos identificar.
Porém, lidar com as imperfeições de alguém é infinitamente mais difícil do que gostar das suas boas características. E não é difícil perceber porquê, já que compreender o imperfeito é muito menos instintivo e nada nem ninguém nos sensibiliza para isso. Ao invés, a apologia é feita à beleza e ao ideal: desde crianças ouvimos histórias em que todas as princesas encontram príncipes encantados e, mesmo que inconscientemente, inculcamos a convicção de que o mesmo terá de suceder connosco. Logo, se o príncipe não é perfeito, é porque não é para nós.
Talvez por isso nos seja também tão espinhoso aceitar as nossas próprias imperfeições (afinal de contas, somos a princesa da nossa própria história) e, ainda mais, as dos outros. Talvez por isso nos seja tão árduo encarar os pormenores menos bom que todos temos, desde os mais visíveis, como os diastemas, até aos mais escondidos, como aqueles que nem sabemos que temos até ao momento em que, seja lá pelo que for, nos deparamos com eles.
Aprender a fazê-lo é tarefa para uma vida inteira e tomar consciência de que todos temos muito de podridão é algo que só a autoreflexão e a maturidade nos permitirão. Indispensável é que estejamos cientes de que esse percurso é inevitável para todos nós, porque todos haveremos de ser, mais cedo ou mais tarde, confrontados com as nossas características menos positivas. E, claro, com as dos outros também.
Há, por isso, que encontrar as forças indispensáveis para as ver, as aceitar e as corrigir, sem que isso implique o desabar das nossas vidas, dos nossos alicerces, das nossas poucas certezas, se é que as há.
Assim se cresce, assim se evolui, assim se superam os erros, as desilusões e os momentos menos positivos criados por nós mesmos ou pelos que nos rodeiam. Só assim, porque não há via alternativa, não há volta a dar-lhe, por muito engenhosos que sejamos.
Para tudo isto, mais do que qualquer outra coisa, é preciso vontade, o ponto de partida de tudo, porque ninguém fará este caminho se não quiser e muito menos o fará por imposição de alguém. Se o caminhante já iniciou a rota, tenhamos, pelo menos, a humildade de reconhecer que o fez por si. E se formos nós o caminhante, orgulhemo-nos disso. É o mínimo que podemos fazer e é também o mínimo que devemos exigir.
© [m.m. botelho]