Transgressão. Essencialmente, política e sexual. Por ela, milhares de mulheres pereceram no fogo inquisitório e protestante até ao século XVII. A história começa bem lá atrás, em Eva, expulsa do Paraíso por – alegadamente, que tal nunca foi devidamente provado – ter dado a comer a Adão uma maçã ainda mais envenenada do que a que a madrasta deu à Branca de Neve. Entre as duas histórias, contudo, uma diferença fundamental: na última, o príncipe encantado deixa-se arrebatar pelo amor e assume como missão o resgate da sua amada do sono profundo; na descrita nos Génesis, para além do príncipe ter pouco de encantador, resolveu usar o sucedido para – pensava ele e pensou toda a gente durante muito tempo – afundar definitivamente o sexo feminino nas águas da artimanha, do engodo e – tremamos todos – do pecado. Com efeito, a figura feminina, com o seu aspecto delgado, o seu supremo e inigualável poder de gestação, a sua voz delicada e o seu gesto lânguido – a ideia é mesmo estereotipar – tornou-se a própria encarnação do Mal. Não é à toa, por exemplo, que a iconografia da Morte é feminina.
A receita foi de fácil preparação: pegou-se num grande caldeirão – aqui a alusão às bruxas não é, de todo, inocente – e juntou-se nele o pecado e a Mulher; temperou-se de maldade q.b., luxúria como se de paprika num dos preparados de «Cozinho Para o Povo» se tratasse e uma pitada de calúnia; tudo muito regado com generosas porções de submissão e silêncio; lume a graus elevadíssimos, para manter bem viva a lembrança do Inferno das almas a crepitar... et voilá! Estava encontrado – pensava o cozinheiro e pensou toda a gente durante muito tempo – o método infalível para assegurar para a posteridade o predomínio do Bem sobre o Mal, do cândido sobre o engenhoso, enfim, do Homem sobre a Mulher.
Alegorias gastronómicas à parte, o tempo e as próprias mulheres demonstraram, contudo, que não há papéis definidos nem definitivos para os géneros. O mérito de sobreviver a tamanho estigma de inferioridade é delas. A perseverança para conviver com ele e a inteligência para escolher o modo de demonstrar o quanto era errado, também. Muitas pereceram pelo caminho, muitas mais perecerão. Já muito foi feito mas ainda há tanto por fazer! Haja coragem!
A Eva de hoje continua tão transgressora como a de outrora. Todavia, agora é-lhe reconhecido o direito à transgressão. E isto porque nem sempre a transgressão é malsã. Mudar implica sempre transgredir. Evoluir, questionar, ver para lá do real, do visível e do palpável, redefinir o essencial, recusar o imediato, rejeitar o óbvio, os pré-conceitos, o simplesmente apreendido, o imposto, a construção apática, o pressuposto ideológico, a reverência muda, o comodismo, a inanidade, a tibieza mental e a opinião formatada implica sempre transgredir. Para a Eva de hoje, como esta que assina este texto, a matéria de princípio é o pensamento, a razão, a massa das ideias, o espírito. O propósito? Meditar, questionar, confrontar, inquietar, discutir, criticar, transformar. Agitar, agitar, agitar. Evoluir, para enxergar mais do que o visível, compreender além do apresentado e transcender as experiências exteriores da realidade.
E que venham, de novo, as fogueiras inquisitórias e protestantes, que o único fogo perante o qual a Mulher se concede perecer é o da Paixão: por aquilo que é e por aquilo em que acredita e defende.
[Também publicado em PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho
A receita foi de fácil preparação: pegou-se num grande caldeirão – aqui a alusão às bruxas não é, de todo, inocente – e juntou-se nele o pecado e a Mulher; temperou-se de maldade q.b., luxúria como se de paprika num dos preparados de «Cozinho Para o Povo» se tratasse e uma pitada de calúnia; tudo muito regado com generosas porções de submissão e silêncio; lume a graus elevadíssimos, para manter bem viva a lembrança do Inferno das almas a crepitar... et voilá! Estava encontrado – pensava o cozinheiro e pensou toda a gente durante muito tempo – o método infalível para assegurar para a posteridade o predomínio do Bem sobre o Mal, do cândido sobre o engenhoso, enfim, do Homem sobre a Mulher.
Alegorias gastronómicas à parte, o tempo e as próprias mulheres demonstraram, contudo, que não há papéis definidos nem definitivos para os géneros. O mérito de sobreviver a tamanho estigma de inferioridade é delas. A perseverança para conviver com ele e a inteligência para escolher o modo de demonstrar o quanto era errado, também. Muitas pereceram pelo caminho, muitas mais perecerão. Já muito foi feito mas ainda há tanto por fazer! Haja coragem!
A Eva de hoje continua tão transgressora como a de outrora. Todavia, agora é-lhe reconhecido o direito à transgressão. E isto porque nem sempre a transgressão é malsã. Mudar implica sempre transgredir. Evoluir, questionar, ver para lá do real, do visível e do palpável, redefinir o essencial, recusar o imediato, rejeitar o óbvio, os pré-conceitos, o simplesmente apreendido, o imposto, a construção apática, o pressuposto ideológico, a reverência muda, o comodismo, a inanidade, a tibieza mental e a opinião formatada implica sempre transgredir. Para a Eva de hoje, como esta que assina este texto, a matéria de princípio é o pensamento, a razão, a massa das ideias, o espírito. O propósito? Meditar, questionar, confrontar, inquietar, discutir, criticar, transformar. Agitar, agitar, agitar. Evoluir, para enxergar mais do que o visível, compreender além do apresentado e transcender as experiências exteriores da realidade.
E que venham, de novo, as fogueiras inquisitórias e protestantes, que o único fogo perante o qual a Mulher se concede perecer é o da Paixão: por aquilo que é e por aquilo em que acredita e defende.
[Também publicado em PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho