Na penúltima crónica falei da morte. Na última, invocando imagens ao acaso, abordei a solidão. Esta semana, em jeito de encerramento de uma improvável trilogia, dedico um texto ao silêncio, possível denominador comum daquelas duas temáticas.
O silêncio imposto é filho do isolamento, do marasmo e da quietude. O silêncio desejado, por sua vez, é sereno, plácido e seguro. A morte e a solidão trazem consigo, quase sempre, aquele primeiro e ele é, quase sempre, insuportável.
A sabedoria popular proclama em adágio que «a palavra é de prata e o silêncio é de ouro», mas quem vive um quotidiano inteiramente mudo da expressão de afectos e de emoções alheias sabe bem que nem sempre é assim. Às vezes, o silêncio cola-se às paredes das casas e torna-as demasiado espessas, maciças e intransponíveis. Encostando o ouvido à cal percebe-se que dali nada sai senão frio. Paredes caladas são paredes opacas, simples tijolo e betão, meras divisórias.
Lidei com a morte de perto apenas uma vez e ainda há relativamente pouco tempo. Este «relativamente» não podia caber melhor: no que tange à morte, cada um de nós tem «o seu tempo» e podem ter de passar muitos anos – ou mesmo todos os anos – até que a saudade seja pacífica dentro de cada um. Em mim, vai sendo todos os dias um pouco mais, mas ainda não integralmente (não sei se alguma vez inteiramente).
Apanhada de surpresa pelo repentino sucedido, não quis outra coisa senão o profundo silêncio, senão que me cobrisse o peso da ausência de tudo e, todavia, dentro do peito não tinha mais do que brados ensurdecedores e atordoantes que nunca chegaram a sair de lá. Lentamente, esses gritos foram sendo absorvidos pelo suceder dos dias, a dádiva mais preciosa em situações de dor aflitiva.
Passados quase dois anos, confesso que ainda não consegui ordenar ao meu coração que deixe de sentir a falta que me faz o barulho das chaves do meu Avô de cada vez que ouço a porta de casa de minha Avó bater. Confesso que ainda não consegui deixar de ouvir dentro de mim as expressões que ele (e só ele), a par e passo, utilizava. Confesso que ainda não me habituei à ideia de (já) não ter o assobio dele a pincelar-me as tardes de alegria. Passados dois anos, confesso que o que me traz maior nostalgia a reboque do desaparecimento do meu Avô é o silêncio.
O silêncio que, desde então, impregnou a casa da minha avó faz-nos sentir a todos os que lá vamos mais sozinhos e menos entusiastas. Não que a casa se tenha tornado oca, não. Por lá se ri, cavaqueia, vive, mas, de certa forma e quase sem que se dê conta, um pouco mais contidamente. Diz-me quem sabe o que isto é que é assim um pouco por todas as casas em que, um dia, um dos lugares da mesa fica vazio.
O silêncio faz parte da vida tanto quanto a palavra, tanto quanto o riso, tanto quanto o simples som. Bastas vezes é de ouro, mas outras tantas é de prata. Sem querer tirar brilhantismo aos Depeche Mode quando cantam «words are very unnecessary, they can only do harm», remato dizendo que há situações em que uma palavra pode fazer toda a diferença. Para melhor, claro. E essa palavra nem sequer tem de ser muito rebuscada, muito reflectida, muito a propósito. Basta que nos fique na memória e possa preencher o vão de um qualquer dos nossos silêncios indesejados.
Depeche Mode. «Enjoy the silence».
Do álbum «Violator» [1990].
[Também publicado em PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho
O silêncio imposto é filho do isolamento, do marasmo e da quietude. O silêncio desejado, por sua vez, é sereno, plácido e seguro. A morte e a solidão trazem consigo, quase sempre, aquele primeiro e ele é, quase sempre, insuportável.
A sabedoria popular proclama em adágio que «a palavra é de prata e o silêncio é de ouro», mas quem vive um quotidiano inteiramente mudo da expressão de afectos e de emoções alheias sabe bem que nem sempre é assim. Às vezes, o silêncio cola-se às paredes das casas e torna-as demasiado espessas, maciças e intransponíveis. Encostando o ouvido à cal percebe-se que dali nada sai senão frio. Paredes caladas são paredes opacas, simples tijolo e betão, meras divisórias.
Lidei com a morte de perto apenas uma vez e ainda há relativamente pouco tempo. Este «relativamente» não podia caber melhor: no que tange à morte, cada um de nós tem «o seu tempo» e podem ter de passar muitos anos – ou mesmo todos os anos – até que a saudade seja pacífica dentro de cada um. Em mim, vai sendo todos os dias um pouco mais, mas ainda não integralmente (não sei se alguma vez inteiramente).
Apanhada de surpresa pelo repentino sucedido, não quis outra coisa senão o profundo silêncio, senão que me cobrisse o peso da ausência de tudo e, todavia, dentro do peito não tinha mais do que brados ensurdecedores e atordoantes que nunca chegaram a sair de lá. Lentamente, esses gritos foram sendo absorvidos pelo suceder dos dias, a dádiva mais preciosa em situações de dor aflitiva.
Passados quase dois anos, confesso que ainda não consegui ordenar ao meu coração que deixe de sentir a falta que me faz o barulho das chaves do meu Avô de cada vez que ouço a porta de casa de minha Avó bater. Confesso que ainda não consegui deixar de ouvir dentro de mim as expressões que ele (e só ele), a par e passo, utilizava. Confesso que ainda não me habituei à ideia de (já) não ter o assobio dele a pincelar-me as tardes de alegria. Passados dois anos, confesso que o que me traz maior nostalgia a reboque do desaparecimento do meu Avô é o silêncio.
O silêncio que, desde então, impregnou a casa da minha avó faz-nos sentir a todos os que lá vamos mais sozinhos e menos entusiastas. Não que a casa se tenha tornado oca, não. Por lá se ri, cavaqueia, vive, mas, de certa forma e quase sem que se dê conta, um pouco mais contidamente. Diz-me quem sabe o que isto é que é assim um pouco por todas as casas em que, um dia, um dos lugares da mesa fica vazio.
O silêncio faz parte da vida tanto quanto a palavra, tanto quanto o riso, tanto quanto o simples som. Bastas vezes é de ouro, mas outras tantas é de prata. Sem querer tirar brilhantismo aos Depeche Mode quando cantam «words are very unnecessary, they can only do harm», remato dizendo que há situações em que uma palavra pode fazer toda a diferença. Para melhor, claro. E essa palavra nem sequer tem de ser muito rebuscada, muito reflectida, muito a propósito. Basta que nos fique na memória e possa preencher o vão de um qualquer dos nossos silêncios indesejados.
Depeche Mode. «Enjoy the silence».
Do álbum «Violator» [1990].
[Também publicado em PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho