De todos os meus objectos, aquele com o qual tenho uma relação menos amistosa é o telemóvel. Isto é tão sério que, se tivesse de enunciar a pior invenção do ser humano, não perderia sequer dois segundos a pensar e, sem ponta de dúvida, diria que foi o telefone portátil.
Há mais de dez anos que esta coisa faz parte do meu dia-a-dia. Ainda me lembro do meu primeiro aparelho. Só tinha uma cor (preto), as teclas não tinham iluminação e era tão parecido com um telecomando de televisão que não raras vezes se dava a confusão. Não tenho saudades dele, obviamente. Entretanto, comprei talvez cinco ou seis outros aparelhos (fazendo as contas por alto), que se foram sofisticando cada vez mais até ao ponto de terem tantas funções que a única que deveriam cumprir – fazer e receber chamadas – é a que pior desempenham.
Mas a verdade, contudo, é que não obstante o profundo ódio que nutro pelo meu telemóvel, não sei viver sem ele. Passei a concentrar naquele pequenino engenho uma série de informações que, sei-o bem, não me fazem falta nenhuma, mas que tenho pavor de perder. E não me refiro só a números de telefone, obviamente. Entre datas de aniversário, compromissos e listas de compras estão umas quantas fotografias irrepetíveis, alguns vídeos que gosto de rever a cada passo e umas dezenas de mensagens escritas que simplesmente não consigo apagar – e não me perguntem porquê.
Muitas pessoas que fazem parte da minha vida queixam-se do mesmo: dizem que são inúmeras as vezes que me ligam e eu não atendo. E eu lá tenho de me justificar e de explicar porque é que não atendi. Sinto-me defraudada. Quando eu comprei o meu primeiro telemóvel disseram-me que uma das grandes vantagens que ele tinha em relação a um telefone fixo era a possibilidade de identificar previamente a proveniência da chamada e, portanto, a liberdade que me concedia de atender ou não. Esta, a par da pretensa garantia de 25 anos de anti-aderência de uma frigideira com um preço absolutamente pornográfico que uma vez cometi a imprudência de comprar, foi, seguramente, a maior "peta" que me pregaram em toda a minha vida. É m facto: com a "incorporação" – este parece-me o melhor termo para empregar aqui – do telemóvel na minha vida, acabou-se toda e qualquer liberdade em termos de comunicações móveis: não só a de não atender as chamadas, mas também – e isto quase me faz subir paredes – a de, simplesmente, não o trazermos sempre connosco (e o deixarmos comodamente a repousar dentro da gaveta) ou, ainda, a de o desligarmos («puf, caput, não estou para ninguém»). Caso tenhamos o atrevimento de fazer qualquer uma destas três coisas somos, na primeira oportunidade, imediatamente bombardeados com perguntas e mais perguntas começadas por "porquê", o que, para quem só queria alguma tranquilidade e não ser incomodado, pode ser uma espécie de inferno terrestre (diabinhos, labaredas e caldeirões de azeite a ferver incluídos).
O meu telemóvel é meu carcereiro e isso não posso negar. Embora continue a querer acreditar que não sou dependente daquela maquineta irritante e continue a fazer questão de não interromper o que estou a fazer só porque ele começa a tocar, bem como de o deixar em casa de vez em quando, a verdade é que aquele pequeno objecto concentra em si muito de mim, como dantes acontecia com as minhas agendas cheias de papelinhos a espreitar borda fora. A verdade, bem vistas as coisas, é que não o posso perder porque ele concentra a minha intimidade em noventa gramas, intimidade essa que não me permito sequer imaginar que alguém possa violar sem entrar em pânico mental. Perder o meu telemóvel é, por isso, cenário dantesco que me recuso a enxergar.
O progresso, às vezes, tem destas coisas: sob a aparência da libertação, esconde a dependência. Prometo pensar melhor sobre isto e voltar ao tópico, mas noutras calendas...
[Também publicado em PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho
Há mais de dez anos que esta coisa faz parte do meu dia-a-dia. Ainda me lembro do meu primeiro aparelho. Só tinha uma cor (preto), as teclas não tinham iluminação e era tão parecido com um telecomando de televisão que não raras vezes se dava a confusão. Não tenho saudades dele, obviamente. Entretanto, comprei talvez cinco ou seis outros aparelhos (fazendo as contas por alto), que se foram sofisticando cada vez mais até ao ponto de terem tantas funções que a única que deveriam cumprir – fazer e receber chamadas – é a que pior desempenham.
Mas a verdade, contudo, é que não obstante o profundo ódio que nutro pelo meu telemóvel, não sei viver sem ele. Passei a concentrar naquele pequenino engenho uma série de informações que, sei-o bem, não me fazem falta nenhuma, mas que tenho pavor de perder. E não me refiro só a números de telefone, obviamente. Entre datas de aniversário, compromissos e listas de compras estão umas quantas fotografias irrepetíveis, alguns vídeos que gosto de rever a cada passo e umas dezenas de mensagens escritas que simplesmente não consigo apagar – e não me perguntem porquê.
Muitas pessoas que fazem parte da minha vida queixam-se do mesmo: dizem que são inúmeras as vezes que me ligam e eu não atendo. E eu lá tenho de me justificar e de explicar porque é que não atendi. Sinto-me defraudada. Quando eu comprei o meu primeiro telemóvel disseram-me que uma das grandes vantagens que ele tinha em relação a um telefone fixo era a possibilidade de identificar previamente a proveniência da chamada e, portanto, a liberdade que me concedia de atender ou não. Esta, a par da pretensa garantia de 25 anos de anti-aderência de uma frigideira com um preço absolutamente pornográfico que uma vez cometi a imprudência de comprar, foi, seguramente, a maior "peta" que me pregaram em toda a minha vida. É m facto: com a "incorporação" – este parece-me o melhor termo para empregar aqui – do telemóvel na minha vida, acabou-se toda e qualquer liberdade em termos de comunicações móveis: não só a de não atender as chamadas, mas também – e isto quase me faz subir paredes – a de, simplesmente, não o trazermos sempre connosco (e o deixarmos comodamente a repousar dentro da gaveta) ou, ainda, a de o desligarmos («puf, caput, não estou para ninguém»). Caso tenhamos o atrevimento de fazer qualquer uma destas três coisas somos, na primeira oportunidade, imediatamente bombardeados com perguntas e mais perguntas começadas por "porquê", o que, para quem só queria alguma tranquilidade e não ser incomodado, pode ser uma espécie de inferno terrestre (diabinhos, labaredas e caldeirões de azeite a ferver incluídos).
O meu telemóvel é meu carcereiro e isso não posso negar. Embora continue a querer acreditar que não sou dependente daquela maquineta irritante e continue a fazer questão de não interromper o que estou a fazer só porque ele começa a tocar, bem como de o deixar em casa de vez em quando, a verdade é que aquele pequeno objecto concentra em si muito de mim, como dantes acontecia com as minhas agendas cheias de papelinhos a espreitar borda fora. A verdade, bem vistas as coisas, é que não o posso perder porque ele concentra a minha intimidade em noventa gramas, intimidade essa que não me permito sequer imaginar que alguém possa violar sem entrar em pânico mental. Perder o meu telemóvel é, por isso, cenário dantesco que me recuso a enxergar.
O progresso, às vezes, tem destas coisas: sob a aparência da libertação, esconde a dependência. Prometo pensar melhor sobre isto e voltar ao tópico, mas noutras calendas...
[Também publicado em PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho