Até ao final da tarde de sábado, eu não tinha escolhido o tema para esta crónica. Não tinha, sequer, alinhavado uma ideia que fosse. Absolutamente nada. Como acontece sempre que tenho um prazo para concretizar uma tarefa a aproximar-se e não estou a ver qual seja a solução para o meu problema, descalcei os sapatos, arregacei os jeans e fui para o terraço estender-me ao sol debaixo do céu azul. As nuvens pareciam mover-se em câmara lenta, o que até nem é muito vulgar para estes lados onde o vento, para além de torturar as pessoas que, como eu, têm os cabelos compridos, costuma empurrar o algodão celeste a todo o vapor. Só isto já fazia antever que algo de especial haveria de acontecer. E aconteceu mesmo.
Fechei os olhos por alguns instantes. Apesar da hora, a luz do sol ainda era intensa e a claridade incomodava-me. Deixei tombar a cabeça na espreguiçadeira e fiquei assim por uns instantes, até ficar tudo vermelho por dentro das pálpebras, como se uma mancha de sangue alastrasse à minha frente. Voltei o rosto de lado e abri os olhos. À minha frente, no chão, um passarinho. Calculei que estivesse apenas a fazer uma breve pausa no seu voo. Olhei de novo para cima. Acima da minha casa mas, especialmente, sobre o meu terraço esvoaçavam outros pássaros igual àquele que ali havia pousado, e uma mão cheia de gaivotas. «Tempestade no mar», pensei, e cerrei os olhos. Quando tudo voltou a arder de vermelhidão, abri-os e olhei novamente em direcção ao pássaro parado no meu terraço. Ali continuava ele, inerte, no mesmíssimo sítio.
Ergui-me e caminhei na sua direcção, convicta de que, assim que eu me aproximasse, ele levantaria voo. Mas não. Agachei-me junto dele, ele nem se moveu. Pude ver, então, que respirava descompassadamente, que parecia demasiadamente inchado e que fitava sempre o mesmo ponto, sem dar por nada à sua volta. Fiquei ali, a seu lado, durante algum tempo. Aproximei-me até quase lhe tocar. A cabeça começava a pender-lhe para um dos lados e às vezes fechava os olhos com muita força. Foi então que me ocorreu que talvez aquele passarinho estivesse em agonia.
Deixei-o em paz. Voltei para a minha espreguiçadeira e deitei-me, voltada para ele. Tinha muito em que pensar. Afinal de contas, ainda não tinha tema para a crónica. De onde eu estava, já quase não via a cabeça do pássaro. Fechei os olhos por instantes mas estranhei não ver a mancha vermelha. De repente, o sol havia ficado encoberto. Procurei, então, o passarinho frágil, indefeso, moribundo que havia deixado no chão do meu terraço. Olhei na sua direcção, mas ele já não estava lá. Havia voado, talvez, ou então foi colhido por alguma mão invisível que o resgatou.
Não sei porquê, aquele pássaro fez questão de pousar no meu terraço para despedir-se de mim. E também não sei porquê, não quis morrer naquele chão. Por obra do acaso, ou não, cruzei-me com ele nesta sua última viagem. E ele, corajoso, não fugiu de mim.
Foi então que percebi que o pássaro não viera só para eu ter tema para esta crónica. Viera também, e principalmente, para invocar toda a gente que nunca me disse adeus antes de partir da minha vida e tanta outra que optou por fugir em vez de ficar. Gente de quem senti, naquele instante, saudades. Gente que acabou por desaparecer, assim, entre um fechar e abrir de olhos, enquanto o sol se escondia atrás das nuvens num final de tarde estranhamente sem vento.
[Também publicado em PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho
Fechei os olhos por alguns instantes. Apesar da hora, a luz do sol ainda era intensa e a claridade incomodava-me. Deixei tombar a cabeça na espreguiçadeira e fiquei assim por uns instantes, até ficar tudo vermelho por dentro das pálpebras, como se uma mancha de sangue alastrasse à minha frente. Voltei o rosto de lado e abri os olhos. À minha frente, no chão, um passarinho. Calculei que estivesse apenas a fazer uma breve pausa no seu voo. Olhei de novo para cima. Acima da minha casa mas, especialmente, sobre o meu terraço esvoaçavam outros pássaros igual àquele que ali havia pousado, e uma mão cheia de gaivotas. «Tempestade no mar», pensei, e cerrei os olhos. Quando tudo voltou a arder de vermelhidão, abri-os e olhei novamente em direcção ao pássaro parado no meu terraço. Ali continuava ele, inerte, no mesmíssimo sítio.
Ergui-me e caminhei na sua direcção, convicta de que, assim que eu me aproximasse, ele levantaria voo. Mas não. Agachei-me junto dele, ele nem se moveu. Pude ver, então, que respirava descompassadamente, que parecia demasiadamente inchado e que fitava sempre o mesmo ponto, sem dar por nada à sua volta. Fiquei ali, a seu lado, durante algum tempo. Aproximei-me até quase lhe tocar. A cabeça começava a pender-lhe para um dos lados e às vezes fechava os olhos com muita força. Foi então que me ocorreu que talvez aquele passarinho estivesse em agonia.
Deixei-o em paz. Voltei para a minha espreguiçadeira e deitei-me, voltada para ele. Tinha muito em que pensar. Afinal de contas, ainda não tinha tema para a crónica. De onde eu estava, já quase não via a cabeça do pássaro. Fechei os olhos por instantes mas estranhei não ver a mancha vermelha. De repente, o sol havia ficado encoberto. Procurei, então, o passarinho frágil, indefeso, moribundo que havia deixado no chão do meu terraço. Olhei na sua direcção, mas ele já não estava lá. Havia voado, talvez, ou então foi colhido por alguma mão invisível que o resgatou.
Não sei porquê, aquele pássaro fez questão de pousar no meu terraço para despedir-se de mim. E também não sei porquê, não quis morrer naquele chão. Por obra do acaso, ou não, cruzei-me com ele nesta sua última viagem. E ele, corajoso, não fugiu de mim.
Foi então que percebi que o pássaro não viera só para eu ter tema para esta crónica. Viera também, e principalmente, para invocar toda a gente que nunca me disse adeus antes de partir da minha vida e tanta outra que optou por fugir em vez de ficar. Gente de quem senti, naquele instante, saudades. Gente que acabou por desaparecer, assim, entre um fechar e abrir de olhos, enquanto o sol se escondia atrás das nuvens num final de tarde estranhamente sem vento.
[Também publicado em PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho