«A 36000 quilómetros da Terra» – leu – «encontra-se uma órbita geoestacionária, fixa à atmosfera porque se move à mesma velocidade da Terra: a Órbita Cemitério, que é como se denomina aquela para onde são enviados os satélites quando perdem a sua vida útil. Todos os satélites dispõem de uma energia de reserva, de modo que, se ocorrer algum problema, este último combustível remanescente será aproveitado para os enviar para essa órbita, onde ficarão fixos no espaço sem necessidade de qualquer motor para os manter na sua posição». Ou seja, para nos entendermos, os pobres satélites são como elefantes que vão morrer na sua necrópole comum. Se pensarmos bem, não deixa de ser poético. Vá lá, Bea: uns trastes velhos enormes cuja função principal era a comunicação, mudos, afastados para sempre, rodeados por um exercito de trastes velhos similares que também nunca mais poderão comunicar. Uma loucura, não achas?
Lúcia Etxebarría, Beatriz e os corpos celestes,
4.ª edição, Lisboa, Editorial Notícias, 1998, p. 14.
4.ª edição, Lisboa, Editorial Notícias, 1998, p. 14.
Fixo-me nesta reflexão de Mónica, a personagem deste extraordinário livro de Lúcia Etxebarría que lê coisas que a sua amiga Bea considera desinteressantes e apelida de «lixo». A existência da «órbita cemitério» torna-se, simultaneamente, tranquilizadora e inquietante. Por um lado, sossega-me saber que, apesar do nome curioso, ela não passa do meio encontrado pela ciência espacial para se livrar dos engenhos inúteis para a função que lhes cabia. Por outro lado, preocupa-me um pouco saber que existem ao redor do nosso planeta artefactos daquela natureza vagueando livremente sem destino nem controle.
Sem que o possa tocar ou sentir, sinto em torno de mim um espaço por onde vagueiam as lembranças de pessoas que outrora fizeram parte da minha vida e que hoje não estão presentes. Quero acreditar que se trata apenas daqueles cuja “função” no meu percurso mudou ou deixou, pura e simplesmente, de fazer sentido. Dentro da memória, tenho centenas e centenas de momentos que subsistem por si só, «sem necessidade de qualquer motor para os manter na sua posição».
Como diz Mónica, não deixa de ser poético. Não deixa de ser poético imaginar que um dia todos nós não passaremos de corpos mudos rodeados de outros tantos corpos mudos, girando à velocidade lenta das horas, para sempre apartados uns dos outros, como se nenhuma importância tivéssemos a não ser para nós mesmos. Afinal, todos nós acabaremos por «morrer» numa «necrópole comum», a da memória de tantos pelas vidas de quem passámos e não ficámos. Provavelmente, porque não tínhamos mesmo de ficar.
Talvez esta mesma dinâmica se aplique a tudo. Talvez tudo seja mesmo temporário, passageiro, cronometradamente estabelecido. Simultaneamente, tranquilizador e inquietante.
Quer se trate de satélites obsoletos ou de pessoas, findo o percurso determinado, a última réstia de forças será sempre destinada a seguir caminho para uma espécie de limbo, situado algures entre o cérebro e o coração, entre a memória e os afectos, entre o que foi e o que já não é nem voltará nunca a ser. Esse limbo, em redor de cada um de nós, onde repousam os restos incomunicáveis de tanto e de tanta gente. Esse limbo, ao qual bem poderíamos chamar «órbita cemitério».
[Também publicado em PNETmulher.]
© Marta Madalena Botelho
Sem que o possa tocar ou sentir, sinto em torno de mim um espaço por onde vagueiam as lembranças de pessoas que outrora fizeram parte da minha vida e que hoje não estão presentes. Quero acreditar que se trata apenas daqueles cuja “função” no meu percurso mudou ou deixou, pura e simplesmente, de fazer sentido. Dentro da memória, tenho centenas e centenas de momentos que subsistem por si só, «sem necessidade de qualquer motor para os manter na sua posição».
Como diz Mónica, não deixa de ser poético. Não deixa de ser poético imaginar que um dia todos nós não passaremos de corpos mudos rodeados de outros tantos corpos mudos, girando à velocidade lenta das horas, para sempre apartados uns dos outros, como se nenhuma importância tivéssemos a não ser para nós mesmos. Afinal, todos nós acabaremos por «morrer» numa «necrópole comum», a da memória de tantos pelas vidas de quem passámos e não ficámos. Provavelmente, porque não tínhamos mesmo de ficar.
Talvez esta mesma dinâmica se aplique a tudo. Talvez tudo seja mesmo temporário, passageiro, cronometradamente estabelecido. Simultaneamente, tranquilizador e inquietante.
Quer se trate de satélites obsoletos ou de pessoas, findo o percurso determinado, a última réstia de forças será sempre destinada a seguir caminho para uma espécie de limbo, situado algures entre o cérebro e o coração, entre a memória e os afectos, entre o que foi e o que já não é nem voltará nunca a ser. Esse limbo, em redor de cada um de nós, onde repousam os restos incomunicáveis de tanto e de tanta gente. Esse limbo, ao qual bem poderíamos chamar «órbita cemitério».
[Também publicado em PNETmulher.]
© Marta Madalena Botelho