- Mas afinal de contas, vais ou não vais acabar de comer essa fatia de bolo? – perguntou-lhe ela.
- Não. Acho que não. Perdi o apetite.
- Bom, então se não a acabas, acabo-a eu. Posso, não posso?
Ele nem teve tempo de responder. Ela esticou o braço e tirou-lhe o prato da frente. Ele ficou estarrecido, mirando-a. Deixou cair os olhos no garfo a entrar-lhe pela boca dentro, os lábios muito vermelhos a apertarem o pedaço da fatia de bolo de chocolate, a saliva a envolver tudo num imenso bolo que os dentes trituravam implacavelmente.
Enquanto comia os restos da fatia dele – a bem dizer, a fatia quase toda – ia repetindo muitas vezes que não era bem como as pessoas diziam, que «quem conta um ponto acrescenta um conto» e «as pessoas têm a mania de de um dedinho fazerem um braço inteiro».
- Quem conta um conto acrescenta um ponto. – disse ele com paciência.
- Pois, isso já eu disse. Tenho razão, não tenho?
E metia outra garfada à boca, continuando a vociferar como se naquela esplanada só estivessem eles e ninguém lhes ouvisse a conversa.
- O que tu disseste foi «quem conta um ponto acrescenta um conto – corrigiu o rapaz.
Ela parou, estarrecida. Esbugalhou muito os olhos e fitou-o como se o fulminasse. Abanou a cabeça, agitando os caracóis de um lado para o outro e literalmente aos gritos perguntou-lhe se estava a gozar com ela.
Naquele momento, eu levantei a cabeça e desenterrei os olhos do jornal. Ela segurava o garfo na mão direita e com os dedos gordos da mão esquerda apertava exageradamente o guardanapo. Tinha os lábios brilhantes da manteiga do bolo, quase tão brilhantes como os caracóis do cabelo oleoso debaixo da claridade do sol. Voltou a perguntar-lhe aos brados se ele estava a gozar com ela e levantou-se da cadeira. Eu senti a plataforma de madeira da esplanada estremecer e vi as ripas de madeira baloiçarem debaixo dos pés daquela criatura imponente e ameaçadora. A água tónica do meu copo entornou ligeiramente e, de repente, eu achei que aquilo já era um bocadinho demais.
Foi então que ele balbuciou um tímido «não, mas é claro que não, meu amor» e, levantando-se, lhe foi amparar o braço, lhe tirou a custo o guardanapo de entre os dedos e lhe pediu que se sentasse, que a exaltação não lhe fazia bem aos nervos, que ainda lhe dava «uma coisinha» e que ele não tinha trazido o carro para o caso de «haver novidade».
Ela afastou os caracóis da frente dos olhos, sentou-se, aproximou a cadeira da mesa, suspirou alto, pegou no garfo e partiu mais um pedaço de bolo de chocolate que meteu na boca.
A fatia sumiu em menos de nada. Ele perguntou-lhe se queria outro sumo de laranja natural, sem gelo «por causa da garganta», mas ela disse que sumo não queria, só se fosse outra fatia de bolo. Ele fez imediatamente sinal ao empregado e pediu «outra fatia de bolo para a menina». Entre sorrisos, ele lá se atreveu a dizer -lhe que tinha um bocadinho de bolo no canto da boca. Eu temi a reacção dela, mas enganei-me. Ela lambuzou-se toda e lá deu com o pedacinho de chocolate. Mal o empregado pousou o prato na mesa, comeu a terceira fatia de bolo de chocolate como se antes nada tivesse acontecido. Depois levantaram-se ambos e fizeram-se ao caminho.
Eles ainda não iam longe quando o senhor de idade sentado na mesa ao lado da minha se inclinou na minha direcção e me disse que antes de chegar eu perdera uma belíssima história em que ela lhe contava como a melhor amiga tinha sido abandonada no altar pelo noivo. Antes que ele se pusesse com ideias, ela ameaçara-o dizendo que se alguma vez ela sequer sonhasse que isso já lhe tinha passado pela cabeça, seria melhor ele fugir do país porque, caso o encontrasse, ela trataria de o matar. Temendo pela vida, o rapaz tinha tentado aplacar a ira da namorada pedindo duas fatias de bolo de chocolate, mas não fora capaz de tocar na dele. Tentando agradar-lhe começou a tecer brilhantes considerações sobre as manchas para a honra e reputação que do gesto inqualificável do noivo fujão adviriam para a infeliz jovem. Pelos vistos, exagerou de tal forma que até ela achava que «o povo não era assim tão mau». O resto já eu presenciei.
Por fim, fiquei ainda a saber que aquelas duas singulares criaturas são presença habitual na casa e que, à boca pequena, todos comentam que é graças à necessidade de aplacar os maus fígados dela que, naquela confeitaria, raramente sobra algum bolo de chocolate.
[Também publicado em PNETmulher.]
© Marta Madalena Botelho
- Não. Acho que não. Perdi o apetite.
- Bom, então se não a acabas, acabo-a eu. Posso, não posso?
Ele nem teve tempo de responder. Ela esticou o braço e tirou-lhe o prato da frente. Ele ficou estarrecido, mirando-a. Deixou cair os olhos no garfo a entrar-lhe pela boca dentro, os lábios muito vermelhos a apertarem o pedaço da fatia de bolo de chocolate, a saliva a envolver tudo num imenso bolo que os dentes trituravam implacavelmente.
Enquanto comia os restos da fatia dele – a bem dizer, a fatia quase toda – ia repetindo muitas vezes que não era bem como as pessoas diziam, que «quem conta um ponto acrescenta um conto» e «as pessoas têm a mania de de um dedinho fazerem um braço inteiro».
- Quem conta um conto acrescenta um ponto. – disse ele com paciência.
- Pois, isso já eu disse. Tenho razão, não tenho?
E metia outra garfada à boca, continuando a vociferar como se naquela esplanada só estivessem eles e ninguém lhes ouvisse a conversa.
- O que tu disseste foi «quem conta um ponto acrescenta um conto – corrigiu o rapaz.
Ela parou, estarrecida. Esbugalhou muito os olhos e fitou-o como se o fulminasse. Abanou a cabeça, agitando os caracóis de um lado para o outro e literalmente aos gritos perguntou-lhe se estava a gozar com ela.
Naquele momento, eu levantei a cabeça e desenterrei os olhos do jornal. Ela segurava o garfo na mão direita e com os dedos gordos da mão esquerda apertava exageradamente o guardanapo. Tinha os lábios brilhantes da manteiga do bolo, quase tão brilhantes como os caracóis do cabelo oleoso debaixo da claridade do sol. Voltou a perguntar-lhe aos brados se ele estava a gozar com ela e levantou-se da cadeira. Eu senti a plataforma de madeira da esplanada estremecer e vi as ripas de madeira baloiçarem debaixo dos pés daquela criatura imponente e ameaçadora. A água tónica do meu copo entornou ligeiramente e, de repente, eu achei que aquilo já era um bocadinho demais.
Foi então que ele balbuciou um tímido «não, mas é claro que não, meu amor» e, levantando-se, lhe foi amparar o braço, lhe tirou a custo o guardanapo de entre os dedos e lhe pediu que se sentasse, que a exaltação não lhe fazia bem aos nervos, que ainda lhe dava «uma coisinha» e que ele não tinha trazido o carro para o caso de «haver novidade».
Ela afastou os caracóis da frente dos olhos, sentou-se, aproximou a cadeira da mesa, suspirou alto, pegou no garfo e partiu mais um pedaço de bolo de chocolate que meteu na boca.
A fatia sumiu em menos de nada. Ele perguntou-lhe se queria outro sumo de laranja natural, sem gelo «por causa da garganta», mas ela disse que sumo não queria, só se fosse outra fatia de bolo. Ele fez imediatamente sinal ao empregado e pediu «outra fatia de bolo para a menina». Entre sorrisos, ele lá se atreveu a dizer -lhe que tinha um bocadinho de bolo no canto da boca. Eu temi a reacção dela, mas enganei-me. Ela lambuzou-se toda e lá deu com o pedacinho de chocolate. Mal o empregado pousou o prato na mesa, comeu a terceira fatia de bolo de chocolate como se antes nada tivesse acontecido. Depois levantaram-se ambos e fizeram-se ao caminho.
Eles ainda não iam longe quando o senhor de idade sentado na mesa ao lado da minha se inclinou na minha direcção e me disse que antes de chegar eu perdera uma belíssima história em que ela lhe contava como a melhor amiga tinha sido abandonada no altar pelo noivo. Antes que ele se pusesse com ideias, ela ameaçara-o dizendo que se alguma vez ela sequer sonhasse que isso já lhe tinha passado pela cabeça, seria melhor ele fugir do país porque, caso o encontrasse, ela trataria de o matar. Temendo pela vida, o rapaz tinha tentado aplacar a ira da namorada pedindo duas fatias de bolo de chocolate, mas não fora capaz de tocar na dele. Tentando agradar-lhe começou a tecer brilhantes considerações sobre as manchas para a honra e reputação que do gesto inqualificável do noivo fujão adviriam para a infeliz jovem. Pelos vistos, exagerou de tal forma que até ela achava que «o povo não era assim tão mau». O resto já eu presenciei.
Por fim, fiquei ainda a saber que aquelas duas singulares criaturas são presença habitual na casa e que, à boca pequena, todos comentam que é graças à necessidade de aplacar os maus fígados dela que, naquela confeitaria, raramente sobra algum bolo de chocolate.
[Também publicado em PNETmulher.]
© Marta Madalena Botelho