Nelson Évora, enquanto vencedor da prova olímpica de triplo santo na qual granjeou a medalha de ouro em Pequim, tem inteiro mérito. Vejo qualquer prémio, seja ele olímpico ou não, seja ele uma medalha de ouro ou uma taça de cerâmica das Caldas da Rainha, como a justa recompensa de um árduo trabalho, de muito esforço e dedicação e, mais do que tudo isso, de uma enorme vontade e determinação de superar os limites do próprio corpo, de mostrar ao Homem que ele é mais do que aquilo que se limita a ser, que ele pode ser tudo aquilo que quiser, não bastando, contudo, para tal, querer.
O desporto, precisamente porque implica, antes de mais, uma prestação física, é um palco excepcional onde, perante os espectadores, pode ser representada a peça da recriação humana. No desporto, o atleta faz-se a si mesmo, continuando a obra de quem o criou mas, mais do que isso, melhorando-a.
Talvez por isso seja muito raro encontrar alguém que não reconheça grandes virtudes na prática desportiva. O Homem é, antes de tudo, é matéria e o desporto debruça-se sobre essa matéria para a moldar e aperfeiçoar. Contudo, não esqueçamos que essa matéria é passível de corrupção e, portanto, mais tarde ou mais cedo, haverá de desaparecer. De facto, os feitos atléticos tendem a cair muito mais rapidamente no esquecimento do que, por exemplo, um prémio literário. Como não faço parte daquele afortunado grupo de pessoas que têm solução para tudo dentro das algibeiras, bastando revolver o seu conteúdo durante uns instantes para apresentarem imediatas verdades absolutas, devo confessar que não sei por que é assim, embora gostasse muito de saber. Contudo, sou capaz de afiançar já que julgo que tudo haverá de começar e acabar num aspecto bastante mesquinho: a irresistível tentação demasiado humana (da qual também eu, confessadamente, padeço aqui e ali) para considerar a produção intelectual superior à física. E se é verdade o que afirmei no início deste parágrafo, que é muito raro encontrar alguém que não reconheça grandes virtudes na prática desportiva, também não deixa de ser verdade que em Portugal continua a ver-se a actividade física como algo de complementar e não de central. Bons exemplos do que acabo de dizer são o papel residual que a disciplina de Educação Física tem no plano escolar, a quase total ausência de prática desportiva entre os estudantes universitários e o ridículo investimento que é feito para a criação de infra-estruturas desportivas, onde pessoas de todas as idades possam praticar desporto ao longo da vida.
É inegável que o culto do desporto é, para muitos de nós, feito a partir do sofá, de telecomando na mão, ou nas esplanadas dos cafés, atrás de mesas carregadas de tremoços e cervejas e de cachecol ao pescoço. E é igualmente inegável que, entre nós, muito mais do que a prestação se valoriza o resultado, quantas vezes ignorando que tal como o sucesso de uma mente brilhante que ganha um prémio literário depende de uma conjuntura de factores endógenos e exógenos (como o estímulo, a criação de oportunidades, a reunião de apoios, etc.), também os resultados desportivos não dependem exclusivamente do atleta.
Num país de brandos costumes, a medalha de ouro de Nélson Évora acaba por ser providencial. Bastou ler os jornais, os blogues, ver as reportagens desportivas para perceber como, despudoradamente, Portugal exibiu a sua pequenez ao atribuir à medalha deste atleta o efeito redentor do falhanço de outros (com excepção de Vanessa Fernandes que goza de um estatuto especial em função da idade, do género – admitamo-lo – e do percurso de excepção que tem feito. o qual foi coroado com uma medalha de prata que, embora não tenha «enchido as medidas» de muitos portugueses eleva a fasquia das expectativas para os Jogos Olímpicos de Londres e, portanto, adia a alegria ou o descontentamento para então). Um pouco por toda a parte suspirou-se de alívio quando Évora subiu ao pódio: a honra da Pátria estava salva, o país conquistava uma medalha de ouro, ao menos uma, de modo a garantir a inscrição de Portugal, ao menos por um dia, nos jornais do mundo inteiro. O resto, pouco importa. Se foi só uma, pouco importa. Se é preciso mudar alguma coisa no modo como se investe no desporto em Portugal, pouco importa. Se é preciso mudar o modo como se educa para o desporto em Portugal, pouco importa. Por agora, desapertam-se os cintos e respira-se de alívio. O país está de fim de semana e, atrás de mesas carregadas de tremoços, brinda à medalha de Nélson Évora, a preciosa medalha de ouro que durante os próximos quatro anos haverá de obnubilar as frustrações desportivas de dez milhões de portugueses.
[Também publicado em PNETmulher.]
© Marta Madalena Botelho
O desporto, precisamente porque implica, antes de mais, uma prestação física, é um palco excepcional onde, perante os espectadores, pode ser representada a peça da recriação humana. No desporto, o atleta faz-se a si mesmo, continuando a obra de quem o criou mas, mais do que isso, melhorando-a.
Talvez por isso seja muito raro encontrar alguém que não reconheça grandes virtudes na prática desportiva. O Homem é, antes de tudo, é matéria e o desporto debruça-se sobre essa matéria para a moldar e aperfeiçoar. Contudo, não esqueçamos que essa matéria é passível de corrupção e, portanto, mais tarde ou mais cedo, haverá de desaparecer. De facto, os feitos atléticos tendem a cair muito mais rapidamente no esquecimento do que, por exemplo, um prémio literário. Como não faço parte daquele afortunado grupo de pessoas que têm solução para tudo dentro das algibeiras, bastando revolver o seu conteúdo durante uns instantes para apresentarem imediatas verdades absolutas, devo confessar que não sei por que é assim, embora gostasse muito de saber. Contudo, sou capaz de afiançar já que julgo que tudo haverá de começar e acabar num aspecto bastante mesquinho: a irresistível tentação demasiado humana (da qual também eu, confessadamente, padeço aqui e ali) para considerar a produção intelectual superior à física. E se é verdade o que afirmei no início deste parágrafo, que é muito raro encontrar alguém que não reconheça grandes virtudes na prática desportiva, também não deixa de ser verdade que em Portugal continua a ver-se a actividade física como algo de complementar e não de central. Bons exemplos do que acabo de dizer são o papel residual que a disciplina de Educação Física tem no plano escolar, a quase total ausência de prática desportiva entre os estudantes universitários e o ridículo investimento que é feito para a criação de infra-estruturas desportivas, onde pessoas de todas as idades possam praticar desporto ao longo da vida.
É inegável que o culto do desporto é, para muitos de nós, feito a partir do sofá, de telecomando na mão, ou nas esplanadas dos cafés, atrás de mesas carregadas de tremoços e cervejas e de cachecol ao pescoço. E é igualmente inegável que, entre nós, muito mais do que a prestação se valoriza o resultado, quantas vezes ignorando que tal como o sucesso de uma mente brilhante que ganha um prémio literário depende de uma conjuntura de factores endógenos e exógenos (como o estímulo, a criação de oportunidades, a reunião de apoios, etc.), também os resultados desportivos não dependem exclusivamente do atleta.
Num país de brandos costumes, a medalha de ouro de Nélson Évora acaba por ser providencial. Bastou ler os jornais, os blogues, ver as reportagens desportivas para perceber como, despudoradamente, Portugal exibiu a sua pequenez ao atribuir à medalha deste atleta o efeito redentor do falhanço de outros (com excepção de Vanessa Fernandes que goza de um estatuto especial em função da idade, do género – admitamo-lo – e do percurso de excepção que tem feito. o qual foi coroado com uma medalha de prata que, embora não tenha «enchido as medidas» de muitos portugueses eleva a fasquia das expectativas para os Jogos Olímpicos de Londres e, portanto, adia a alegria ou o descontentamento para então). Um pouco por toda a parte suspirou-se de alívio quando Évora subiu ao pódio: a honra da Pátria estava salva, o país conquistava uma medalha de ouro, ao menos uma, de modo a garantir a inscrição de Portugal, ao menos por um dia, nos jornais do mundo inteiro. O resto, pouco importa. Se foi só uma, pouco importa. Se é preciso mudar alguma coisa no modo como se investe no desporto em Portugal, pouco importa. Se é preciso mudar o modo como se educa para o desporto em Portugal, pouco importa. Por agora, desapertam-se os cintos e respira-se de alívio. O país está de fim de semana e, atrás de mesas carregadas de tremoços, brinda à medalha de Nélson Évora, a preciosa medalha de ouro que durante os próximos quatro anos haverá de obnubilar as frustrações desportivas de dez milhões de portugueses.
[Também publicado em PNETmulher.]
© Marta Madalena Botelho