Ao contrário do que possa pensar-se, a proximidade física que tenhamos em relação às cidades pouco diz da paixão que por elas nutrimos. Recordo, por exemplo, que conheço muitas pessoas que vivem em Coimbra e abominam a cidade e outras que não vivem lá e que afiançam que todos os dias choram copiosamente de saudades pelas águas do Mondego. A cidade é a mesma para toda a gente e, no entanto, enquanto uns a amam perdidamente tal como ela é, outros só queriam poder transformá-la. Vá-se lá compreender o ser humano!
A verdade é que eu poderia muito bem começar este texto com uma afirmação colhida numa das canções dos Madredeus de que eu mais gosto: «adoro Lisboa» ou, então, pôr-me aqui a cantarolar o «Porto Sentido» do Rui Veloso até toda a gente ficar convencida de que a Invicta é a cidade do meu coração. Mas a verdade é que eu não sei se quero comprometer-me com uma escolha entre o Porto e Lisboa. É quase o mesmo que ter de escolher entre os rojões à Minhota, a posta à Mirandesa, os ovos moles de Aveiro, os pastéis de Tentúgal, o leitão da Bairrada, os ensopados alentejanos, o arroz de lingueirão algarvio e o bolo de mel da Madeira: impossível! Se me pedissem para seleccionar uma destas cidades em função dos defeitos da outra, seria o mesmo que me perguntarem se me entristecem mais os graffiti do Bairro Alto ou o abandono dos cinemas portuenses, caso em que a resposta só poderia ser uma: dispensaria de bom grado ambos. A tarefa é hercúlea, mais me vale desistir.
Claro que Porto e Lisboa jamais agradarão a gregos e a troianos ou melhor – talvez seja mais apropriado dizê-lo assim – a alfacinhas e tripeiros. Aliás, nem convém que assim seja, pois uma vez feitas as pazes entre «andrades» e «mouros» quem haveriam os amantes da capital apelidar de «provincianos»? E a quem haveriam os tripeiros de chamar «calões», enchendo a boca toda para dizer em brados que «O Porto trabalha, Coimbra estuda e Lisboa dorme»? Se houvesse consenso entre estas duas «espécies», estava morta a alma portuguesa e nem o Fado nos salvaria. No fundo, no fundo, os portuenses nem se importariam de comer as tripas outra vez só para poderem passar o resto da vida a dizer que fizeram um grande sacrifício pela pátria, do mesmo modo que os lisboetas sempre se sentiriam orgulhosos de cada vez que lhes chamassem mouros só para relembrar ao resto do país que, depois de conquistada, aquela fronteira nunca mais foi transposta pelos muçulmanos.
As questiúnculas entre o Porto e Lisboa fazem parte do espírito da nação, tal como o Eusébio, a Amália e a Nossa Senhora de Fátima e sem elas não seríamos os mesmos e Portugal não teria a menor graça, nem à força de muitos copinhos de três. Este minúsculo país é viciado na adrenalina subjacente à eterna luta entre o Norte e o Sul, entre o azul e o vermelho, entre o «à minha beira» e o «ao pé de mim». Nortenho que se preze faz como eu quando vou a Lisboa: desata a falar com pronúncia, não porque queira deixar bem vincada a sua naturalidade, mas simplesmente porque não consegue disfarçá-la. E se for um lisboeta no Norte haverá de fazer questão de começar cada frase por «oiça», não porque ache que o interlocutor é surdo, mas simplesmente porque já passou a fase do «portanto» e só está a um passinho da fase do «olhe».
O que importa, em ambos os casos, é não deixar margem para dúvidas sobre a valentia de defender a sua dama, seja ela a Antiga, Mui Nobre, Sempre Leal e Invicta Cidade do Porto ou a Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Lisboa (e ainda dizem os senhores do Norte que os peneirentos são os alfacinhas!...). O resto da sardinhada – sim, não são tripas nem jaquinzinhos fritos com arroz de feijão, é mesmo uma sardinhada! – haverá de vir por arrasto, até porque, num país que produz tão bons vinhos como os nossos, seria um desperdício não os acompanhar com o fruto de tanto mar que nos banha a costa.
[Também publicado em PnetMulher]
© Marta Madalena Botelho
A verdade é que eu poderia muito bem começar este texto com uma afirmação colhida numa das canções dos Madredeus de que eu mais gosto: «adoro Lisboa» ou, então, pôr-me aqui a cantarolar o «Porto Sentido» do Rui Veloso até toda a gente ficar convencida de que a Invicta é a cidade do meu coração. Mas a verdade é que eu não sei se quero comprometer-me com uma escolha entre o Porto e Lisboa. É quase o mesmo que ter de escolher entre os rojões à Minhota, a posta à Mirandesa, os ovos moles de Aveiro, os pastéis de Tentúgal, o leitão da Bairrada, os ensopados alentejanos, o arroz de lingueirão algarvio e o bolo de mel da Madeira: impossível! Se me pedissem para seleccionar uma destas cidades em função dos defeitos da outra, seria o mesmo que me perguntarem se me entristecem mais os graffiti do Bairro Alto ou o abandono dos cinemas portuenses, caso em que a resposta só poderia ser uma: dispensaria de bom grado ambos. A tarefa é hercúlea, mais me vale desistir.
Claro que Porto e Lisboa jamais agradarão a gregos e a troianos ou melhor – talvez seja mais apropriado dizê-lo assim – a alfacinhas e tripeiros. Aliás, nem convém que assim seja, pois uma vez feitas as pazes entre «andrades» e «mouros» quem haveriam os amantes da capital apelidar de «provincianos»? E a quem haveriam os tripeiros de chamar «calões», enchendo a boca toda para dizer em brados que «O Porto trabalha, Coimbra estuda e Lisboa dorme»? Se houvesse consenso entre estas duas «espécies», estava morta a alma portuguesa e nem o Fado nos salvaria. No fundo, no fundo, os portuenses nem se importariam de comer as tripas outra vez só para poderem passar o resto da vida a dizer que fizeram um grande sacrifício pela pátria, do mesmo modo que os lisboetas sempre se sentiriam orgulhosos de cada vez que lhes chamassem mouros só para relembrar ao resto do país que, depois de conquistada, aquela fronteira nunca mais foi transposta pelos muçulmanos.
As questiúnculas entre o Porto e Lisboa fazem parte do espírito da nação, tal como o Eusébio, a Amália e a Nossa Senhora de Fátima e sem elas não seríamos os mesmos e Portugal não teria a menor graça, nem à força de muitos copinhos de três. Este minúsculo país é viciado na adrenalina subjacente à eterna luta entre o Norte e o Sul, entre o azul e o vermelho, entre o «à minha beira» e o «ao pé de mim». Nortenho que se preze faz como eu quando vou a Lisboa: desata a falar com pronúncia, não porque queira deixar bem vincada a sua naturalidade, mas simplesmente porque não consegue disfarçá-la. E se for um lisboeta no Norte haverá de fazer questão de começar cada frase por «oiça», não porque ache que o interlocutor é surdo, mas simplesmente porque já passou a fase do «portanto» e só está a um passinho da fase do «olhe».
O que importa, em ambos os casos, é não deixar margem para dúvidas sobre a valentia de defender a sua dama, seja ela a Antiga, Mui Nobre, Sempre Leal e Invicta Cidade do Porto ou a Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Lisboa (e ainda dizem os senhores do Norte que os peneirentos são os alfacinhas!...). O resto da sardinhada – sim, não são tripas nem jaquinzinhos fritos com arroz de feijão, é mesmo uma sardinhada! – haverá de vir por arrasto, até porque, num país que produz tão bons vinhos como os nossos, seria um desperdício não os acompanhar com o fruto de tanto mar que nos banha a costa.
[Também publicado em PnetMulher]
© Marta Madalena Botelho