Posso até entender que as declarações que o Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa proferiu na passada terça-feira, no Casino da Figueira da Foz (ouvir), sejam tema mais do que apetecível para comentários. Todavia, o sentido crítico obriga-me a ver para além do óbvio e esmiuçar um pouco as palavras de D. José Policarpo, sob pena de uma apreciação superficial e demasiado literal resultar injusta.
Na leitura que faço de tais declarações, os «sarilhos» que o Cardeal Patriarca mencionava não têm necessariamente que ver com "perversidades" nem com "lapidações no Rossio" (estou a invocar expressões usadas pelo ilustre António Costa Santos na sua interessante crónica da passada quarta-feira, para cuja leitura remeto). Ao apelar à «cautela», julgo, D. José Policarpo estava a referir-se à necessária consciência que deve ter-se na escolha da partilha e comunhão de vida com alguém que tenha uma cultura religiosa bastante diferente, o que pode ser fonte dos maiores problemas (como os relacionados com a educação - religiosa e não só - dos filhos, por exemplo).
Importa ter presente que, para o Cardeal Patriarca (e, por imposição religiosa, para todos os católicos) o casamento (religioso) tem obrigatoriamente de ser encarado como um passo irreversível, para toda a vida. Assim sendo, a «cautela» a que aquele aludiu é imprescindível em todos os casos. Contudo – e para isto alertava D. José Policarpo –, quando existam diferenças de cultura e prática religiosa entre os nubentes, tal cautela deverá ser maior, atendendo a que a religiosidade é um aspecto intimamente relacionado com o indivíduo, integrante da sua esfera intimíssima, o que a torna uma questão particularmente delicada.
Indo directamente ao cerne da questão, o Cardeal Patriarca procurou reforçar a ideia de que o casamento implica a assunção de determinados compromissos e que cada um dos nubentes (as meninas católicas e todos os outros) deve ponderar bem se está preparado para assumi-las - em concreto - com a pessoa que está a ponderar escolher (dando particular enfoque ao aspecto religioso). Se, após a ponderada análise de todos os factores, se chegar à conclusão de que tais compromissos não podem, não devem ou não têm de ser assumidos, restam as alternativas de optar pelo celibato ou de procurar outro(a) noivo(a). Não creio, portanto, que D. José Policarpo pretendesse referir-se a “úteros maculados” (em nova alusão à crónica de António Costa Santos), mas antes a uma panóplia de outras dimensões que integram o casamento e nada têm que ver com a relação sexual.
Não querendo alargar o âmbito da reflexão nem desvirtuar o seu núcleo, diria ainda, em jeito de nota marginal, que, a meu ver, D. José Policarpo foi até – direi assim – um pouco feminista, ao alertar especificamente as mulheres que, como todos sabemos, continuam a ser, no seio do casamento, demasiadas vezes, a parte mais oprimida e desfavorecida.
Por último, na sua alusão aos «lobos da floresta que demarcam os seus espaços», o Cardeal recorreu à metáfora para dizer que o casamento e a procriação são usados muitas vezes (e não só por muçulmanos) como um meio para a conquista de situações mais estáveis (que julgo ser desnecessário esmiuçar, visto que facilmente se deduzem). O Cardeal Patriarca referia-se, assim, à conquista de espaços de imposição por meio do casamento, mas sempre tendo em conta que tais espaços podem existir apenas dentro do casamento mas, também, extravasá-lo.
Em suma, eu, logo eu que tanto gosto de questionar, de arguir e de verberar até roçar a transgressão, desta vez, após esta desconstrução do discurso de D. José Policarpo, que é a que me parece mais justa, reconheço que não me assistem razões para o criticar, mas antes para ponderar a sua perspectiva (o que, sublinho, não é exactamente o mesmo que subscrevê-la inteiramente).
Por outro lado, custa-me entender o quase silêncio sobre as declarações que o Cardeal Patriarca proferiu, no mesmo encontro, sobre a homossexualidade, essas sim, dignas da crítica mais feroz, que, contudo, passaram despercebidas na comunicação social e que foram praticamente ignoradas pela opinião pública. A exemplo do sucedido em Outubro de 2008, aquando da votação pela Assembleia da República das propostas de regulamentação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, uma vez mais se levanta a dúvida: será que o silêncio se deve ao facto de o assunto não ser pertinente e o país ter matérias mais urgentes para tratar? Fica a pergunta.
[Também publicado em PnetMulher]
© Marta Madalena Botelho
Na leitura que faço de tais declarações, os «sarilhos» que o Cardeal Patriarca mencionava não têm necessariamente que ver com "perversidades" nem com "lapidações no Rossio" (estou a invocar expressões usadas pelo ilustre António Costa Santos na sua interessante crónica da passada quarta-feira, para cuja leitura remeto). Ao apelar à «cautela», julgo, D. José Policarpo estava a referir-se à necessária consciência que deve ter-se na escolha da partilha e comunhão de vida com alguém que tenha uma cultura religiosa bastante diferente, o que pode ser fonte dos maiores problemas (como os relacionados com a educação - religiosa e não só - dos filhos, por exemplo).
Importa ter presente que, para o Cardeal Patriarca (e, por imposição religiosa, para todos os católicos) o casamento (religioso) tem obrigatoriamente de ser encarado como um passo irreversível, para toda a vida. Assim sendo, a «cautela» a que aquele aludiu é imprescindível em todos os casos. Contudo – e para isto alertava D. José Policarpo –, quando existam diferenças de cultura e prática religiosa entre os nubentes, tal cautela deverá ser maior, atendendo a que a religiosidade é um aspecto intimamente relacionado com o indivíduo, integrante da sua esfera intimíssima, o que a torna uma questão particularmente delicada.
Indo directamente ao cerne da questão, o Cardeal Patriarca procurou reforçar a ideia de que o casamento implica a assunção de determinados compromissos e que cada um dos nubentes (as meninas católicas e todos os outros) deve ponderar bem se está preparado para assumi-las - em concreto - com a pessoa que está a ponderar escolher (dando particular enfoque ao aspecto religioso). Se, após a ponderada análise de todos os factores, se chegar à conclusão de que tais compromissos não podem, não devem ou não têm de ser assumidos, restam as alternativas de optar pelo celibato ou de procurar outro(a) noivo(a). Não creio, portanto, que D. José Policarpo pretendesse referir-se a “úteros maculados” (em nova alusão à crónica de António Costa Santos), mas antes a uma panóplia de outras dimensões que integram o casamento e nada têm que ver com a relação sexual.
Não querendo alargar o âmbito da reflexão nem desvirtuar o seu núcleo, diria ainda, em jeito de nota marginal, que, a meu ver, D. José Policarpo foi até – direi assim – um pouco feminista, ao alertar especificamente as mulheres que, como todos sabemos, continuam a ser, no seio do casamento, demasiadas vezes, a parte mais oprimida e desfavorecida.
Por último, na sua alusão aos «lobos da floresta que demarcam os seus espaços», o Cardeal recorreu à metáfora para dizer que o casamento e a procriação são usados muitas vezes (e não só por muçulmanos) como um meio para a conquista de situações mais estáveis (que julgo ser desnecessário esmiuçar, visto que facilmente se deduzem). O Cardeal Patriarca referia-se, assim, à conquista de espaços de imposição por meio do casamento, mas sempre tendo em conta que tais espaços podem existir apenas dentro do casamento mas, também, extravasá-lo.
Em suma, eu, logo eu que tanto gosto de questionar, de arguir e de verberar até roçar a transgressão, desta vez, após esta desconstrução do discurso de D. José Policarpo, que é a que me parece mais justa, reconheço que não me assistem razões para o criticar, mas antes para ponderar a sua perspectiva (o que, sublinho, não é exactamente o mesmo que subscrevê-la inteiramente).
Por outro lado, custa-me entender o quase silêncio sobre as declarações que o Cardeal Patriarca proferiu, no mesmo encontro, sobre a homossexualidade, essas sim, dignas da crítica mais feroz, que, contudo, passaram despercebidas na comunicação social e que foram praticamente ignoradas pela opinião pública. A exemplo do sucedido em Outubro de 2008, aquando da votação pela Assembleia da República das propostas de regulamentação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, uma vez mais se levanta a dúvida: será que o silêncio se deve ao facto de o assunto não ser pertinente e o país ter matérias mais urgentes para tratar? Fica a pergunta.
[Também publicado em PnetMulher]
© Marta Madalena Botelho