22.3.09

um paradoxo por explicar

Durante o seu pontificado, João Paulo II fez questão de definir a posição oficial da Igreja Católica sobre o uso do preservativo. Insistentemente, sublinhou que o seu uso era pecado para os crentes, apressando-se a condenar os apelos e as campanhas de divulgação dos não crentes e os esforços de organizações e associações humanitárias, bem como dos Estados, que apontassem o preservativo como meio de controle das doenças sexualmente transmissíveis. Bento XVI, por seu turno, adoptou a mesma orientação do seu antecessor, o que fez questão de sublinhar esta semana.

Em visita aos Camarões, o Papa afirmou que «A SIDA não se resolve com preservativos que, ao contrário, aumentam os problemas». A afirmação não mereceria total descrédito caso se tivesse ficado pela primeira parte. Sem mais, todos estaríamos de acordo que a SIDA só se resolverá com a cura e que, nessa medida, o preservativo não resolve o problema. Contudo, considerando o desenvolvimento das declarações, parece claro que o Papa Bento XVI pretendeu acentuar não a incapacidade plena do preservativo para acabar com o flagelo da SIDA, mas antes os pretensos malefícios do seu uso. Em suma, procurou estabelecer uma ligação entre o uso do preservativo e a propagação da doença.

Tal como João Paulo II, também Bento XVI e os que alinham no mesmo racioncínio sobre a matéria acreditam que o preservativo equivale a um passaporte para o sexo irresponsável. Esquecem, porém, que há uma diferença abissal entre "irresponsável" e "inconsequente". Como parece óbvio, o preservativo não incentiva ninguém à prática do sexo, muito menos à prática de mais sexo ou de sexo com um maior número de parceiros. Com efeito, o preservativo destina-se unicamente a impedir que da prática da relação sexual advenham consequências gravosas (como são exemplo uma gravidez indesejada porque não planeada ou a transmissão de uma doença sexualmente transmissível, seja ela incurável ou não).

A SIDA tem flagelado o continente africano como nenhuma outra parte do mundo. A percentagem de infectados reflecte números que deixaram há muito de ser preocupantes para passarem a ser assustadores. A dimensão do problema ultrapassa a questão da morte dos doentes, para ganhar contornos muito mais sérios e que ninguém pode ignorar. Em decorrência do alarmante número de mortos pela SIDA, a malha social africana alterou-se profundamente. São inúmeras as crianças órfãs de ambos os progenitores e muitas as que não têm qualquer família. A sociedade civil desestrutura-se em ritmo acelerado. Em consequência, a economia ressente-se, porque a população activa é também a mais afectada. O continente afunda-se em dívidas externas, hipotecando o presente e o futuro. Os efeitos das mortes provocadas pela doença atravessarão gerações.

O uso do preservativo não pode senão ser encarado como uma medida auxiliar da intervenção médica para conter o avanço galopante da SIDA. É, em última análise, um meio de defesa da vida (dos que praticam o sexo protegido e de todos os que deles dependem). Isto, por si só, deveria ser suficiente para o tornar impermeável a qualquer juízo moral. Condenar ou proibir o preservativo, por oposição, é fazer a apologia da propagação da doença e da morte. Ao fazê-lo, a Igreja cai num paradoxo que nenhum Papa foi ainda capaz de explicar: de que modo se compagina esta posição com a manutenção de uma Igreja que se diz (e é, continuamos a crer) verdadeiramente comprometida com a dignidade humana. Para muitos, entre os quais me incluo, continua a ser simplesmente incompreensível.

O Papa Bento XVI está longe de ser uma figura de consenso. Desde que começou a ser antecipada a sua escolha para o cargo de Pontífice Máximo da Igreja Católica que a sociedade civil espera que os seus escritos, discursos e declarações estejam recheados de pormenores nunca isentos de polémica. Em relação ao tema SIDA já vai sendo tempo de o Vaticano surpreender.

[Também publicado em PnetCrónicas.]

© Marta Madalena Botelho

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