Quem não viajou no Sud-Expresso até ao dia de ontem, já não o fará da mesma forma que tantos e tantos portugueses o fizeram na década de 60, aquando das vagas de emigração para França, Alemanha, Bélgica, Luxemburgo... O mítico comboio que faz a ligação entre a estação de Santa Apolónia (Lisboa) e a gare da cidade francesa de Hendaye foi totalmente remodelado, tendo as novas carruagens entrado em funcionamento hoje.
As histórias a bordo do Sud-Expresso são inúmeras. Não deve haver quem nele tenha viajado que não tenha algo para contar. Eu viajei apenas uma vez no Sud-Expresso, no Verão passado, no início de um InterRail, e guardo na memória muitos pormenores daquela noite.
O impacto que o Sud-Expresso me causou não poderia ter sido pior. Eu acabara de sair do Alfa Pendular e, embora soubesse que o Sud-Expresso era um comboio antigo, jamais imaginei que fosse o que era: corredores estreitos e pouco asseados, assentos forrados a napa, janelas emperradas, gradeamentos demasiado frágeis para suportar a bagagem sobre as cabeças dos passageiros, gente a falar muito alto em várias línguas e a ausência completa de ar condicionado. Naquele instante só quis que as próximas onze horas passassem o mais rapidamente possível.
Era pleno Agosto, fim-de-semana de termo da primeira quinzena, início da segunda. O comboio estava pejado de emigrantes portugueses e de espanhóis. Eu viajava numa carruagem de oito lugares quase completa. Quando nós entrámos, em Coimbra B, já lá estava um casal de jovens namorados espanhóis que regressava a casa depois de umas férias em Lisboa e um francês que regressava ao seu país natal (sujeito estranhíssimo que não abriu a boca durante toda a viagem, limitando-se a dormir e fazer sopas de letras, alternadamente). Em Vilar Formoso entrou um casal de portugueses que ia para Paris, para o inesperado funeral da sogra do filho.
O Sud-Expresso passa por Vilar Formoso por volta da meia noite, por isso àquela hora eram já muitos os que dormiam. O casal de portugueses, emigrantes durante décadas em França, estava habituado ao ramerrão dos carris e rapidamente adormeceu, fazendo da carruagem seu quarto, esparramando-se muito para além do que eram os seus lugares. Eu tenho uma enorme dificuldade em adormecer em ambientes nos quais não me sinto confortável, por isso, apesar de cansada, não conseguia pregar olho.
Seriam umas três da manhã quando resolvi sair da minha carruagem para respirar o ar da noite. Passei por cima das pernas esticadas de um banco ao outro e lá consegui chegar ao corredor do comboio. Algumas pessoas - quase todos homens - conversavam encostados às janelas abertas por onde entrava ar quente, outros estavam deitados em pleno corredor, outros agrupavam-se ao pé da porta a fumar. Eu fui à casa-de-banho. Recordo que as casas-de-banho do Sud-Expresso disponibilizavam sabão em pó para lavar as mãos, algo que não vi em mais nenhum comboio do centro da Europa, nem mesmo na República Checa, onde as carruagens são também notoriamente velhas.
Mesmo em frente à porta da casa-de-banho ficava uma das portas do comboio. Foi quando saí que me deparei com algo inacreditável: um homem que aparentava ter trinta e poucos anos fumava tranquilamente um cigarro sentado nas escadas do Sud-Expresso e ao seu lado estava uma criança, sua filha, com, seguramente, não mais de três anos. A porta, ainda das antigas, manuais e sem fecho-de-segurança, estava aberta e era possível ver, de vez em quando, as faíscas que saltavam dos carris.
O homem parecia absorto por entre o fumo, sem se importar com o enorme perigo em que colocava quer a sua vida, quer a da filha. Do corredor, soavam algumas vozes dizendo-lhe, em português, que tirasse dali a criança, mas o homem nem se mexia.
Não tardou a que chegasse o revisor (talvez quinze ou vinte minutos depois). Tratava-se de um espanhol gordo, com um grande bigode e uma voz portentosa. Sem se importar com quem dormia, o revisor começou a gritar com o homem, ordenando-lhe que saísse dali e levasse a criança, o que ele fez. Depois, fechou a porta e disse que se apanhasse mais alguém nas mesmas figuras o punha fora do comboio na próxima estação. Entretanto, insultou o homem, já não sei precisar com que termos, mas todos eles merecidos.
O comboio ficou alvoraçado perante o sucedido, com várias cabeças a espreitar para o corredor e gente a sair das carruagens para ver o que se passava e que, mesmo sem saber o que tinha sucedido, injuriava o pai imprudente a quem chamavam "louco". Eu voltei à minha carruagem e expliquei o que sucedera aos meus seis companheiros de viagem. Seguiram-se alguns comentários, mas a noite continuava negra lá fora, o ar abafado e os olhos cansados. O sono voltou a pesar e em pouco tempo todos dormiam novamente.
Eu continuei a olhar para as grades onde repousavam as bagagens, antecipando o momento em que se desprenderiam e fariam tombar sobre as nossas cabeças as nossas mochilas e as malas do casal que entrara em Vilar Formoso. Sobre os encostos de cabeça, uma fila de espelhos procurava criar a ilusão de que a carruagem era maior do que era e também neles eu me perdia.
Já passava das quatro e meia da manhã quando o casal de espanhóis nos deixou. A viagem continuou tranquila até Hendaye. Eram umas sete da manhã quando finalmente pusemos o pé em França, dia já feito e surpreendentemente mais frio.
Foi essa a última vez que vi o Sud-Expresso, parado sobre os carris da estação de Hendaye. Aquele Sud-Expresso, que apesar de velho, deixa saudades e histórias para contar.
© [m.m. botelho]
As histórias a bordo do Sud-Expresso são inúmeras. Não deve haver quem nele tenha viajado que não tenha algo para contar. Eu viajei apenas uma vez no Sud-Expresso, no Verão passado, no início de um InterRail, e guardo na memória muitos pormenores daquela noite.
O impacto que o Sud-Expresso me causou não poderia ter sido pior. Eu acabara de sair do Alfa Pendular e, embora soubesse que o Sud-Expresso era um comboio antigo, jamais imaginei que fosse o que era: corredores estreitos e pouco asseados, assentos forrados a napa, janelas emperradas, gradeamentos demasiado frágeis para suportar a bagagem sobre as cabeças dos passageiros, gente a falar muito alto em várias línguas e a ausência completa de ar condicionado. Naquele instante só quis que as próximas onze horas passassem o mais rapidamente possível.
Era pleno Agosto, fim-de-semana de termo da primeira quinzena, início da segunda. O comboio estava pejado de emigrantes portugueses e de espanhóis. Eu viajava numa carruagem de oito lugares quase completa. Quando nós entrámos, em Coimbra B, já lá estava um casal de jovens namorados espanhóis que regressava a casa depois de umas férias em Lisboa e um francês que regressava ao seu país natal (sujeito estranhíssimo que não abriu a boca durante toda a viagem, limitando-se a dormir e fazer sopas de letras, alternadamente). Em Vilar Formoso entrou um casal de portugueses que ia para Paris, para o inesperado funeral da sogra do filho.
O Sud-Expresso passa por Vilar Formoso por volta da meia noite, por isso àquela hora eram já muitos os que dormiam. O casal de portugueses, emigrantes durante décadas em França, estava habituado ao ramerrão dos carris e rapidamente adormeceu, fazendo da carruagem seu quarto, esparramando-se muito para além do que eram os seus lugares. Eu tenho uma enorme dificuldade em adormecer em ambientes nos quais não me sinto confortável, por isso, apesar de cansada, não conseguia pregar olho.
Seriam umas três da manhã quando resolvi sair da minha carruagem para respirar o ar da noite. Passei por cima das pernas esticadas de um banco ao outro e lá consegui chegar ao corredor do comboio. Algumas pessoas - quase todos homens - conversavam encostados às janelas abertas por onde entrava ar quente, outros estavam deitados em pleno corredor, outros agrupavam-se ao pé da porta a fumar. Eu fui à casa-de-banho. Recordo que as casas-de-banho do Sud-Expresso disponibilizavam sabão em pó para lavar as mãos, algo que não vi em mais nenhum comboio do centro da Europa, nem mesmo na República Checa, onde as carruagens são também notoriamente velhas.
Mesmo em frente à porta da casa-de-banho ficava uma das portas do comboio. Foi quando saí que me deparei com algo inacreditável: um homem que aparentava ter trinta e poucos anos fumava tranquilamente um cigarro sentado nas escadas do Sud-Expresso e ao seu lado estava uma criança, sua filha, com, seguramente, não mais de três anos. A porta, ainda das antigas, manuais e sem fecho-de-segurança, estava aberta e era possível ver, de vez em quando, as faíscas que saltavam dos carris.
O homem parecia absorto por entre o fumo, sem se importar com o enorme perigo em que colocava quer a sua vida, quer a da filha. Do corredor, soavam algumas vozes dizendo-lhe, em português, que tirasse dali a criança, mas o homem nem se mexia.
Não tardou a que chegasse o revisor (talvez quinze ou vinte minutos depois). Tratava-se de um espanhol gordo, com um grande bigode e uma voz portentosa. Sem se importar com quem dormia, o revisor começou a gritar com o homem, ordenando-lhe que saísse dali e levasse a criança, o que ele fez. Depois, fechou a porta e disse que se apanhasse mais alguém nas mesmas figuras o punha fora do comboio na próxima estação. Entretanto, insultou o homem, já não sei precisar com que termos, mas todos eles merecidos.
O comboio ficou alvoraçado perante o sucedido, com várias cabeças a espreitar para o corredor e gente a sair das carruagens para ver o que se passava e que, mesmo sem saber o que tinha sucedido, injuriava o pai imprudente a quem chamavam "louco". Eu voltei à minha carruagem e expliquei o que sucedera aos meus seis companheiros de viagem. Seguiram-se alguns comentários, mas a noite continuava negra lá fora, o ar abafado e os olhos cansados. O sono voltou a pesar e em pouco tempo todos dormiam novamente.
Eu continuei a olhar para as grades onde repousavam as bagagens, antecipando o momento em que se desprenderiam e fariam tombar sobre as nossas cabeças as nossas mochilas e as malas do casal que entrara em Vilar Formoso. Sobre os encostos de cabeça, uma fila de espelhos procurava criar a ilusão de que a carruagem era maior do que era e também neles eu me perdia.
Já passava das quatro e meia da manhã quando o casal de espanhóis nos deixou. A viagem continuou tranquila até Hendaye. Eram umas sete da manhã quando finalmente pusemos o pé em França, dia já feito e surpreendentemente mais frio.
Foi essa a última vez que vi o Sud-Expresso, parado sobre os carris da estação de Hendaye. Aquele Sud-Expresso, que apesar de velho, deixa saudades e histórias para contar.
© [m.m. botelho]