4.4.11

ironias do des(a)tino

É frequente ouvir algumas pessoas tecerem juízos de valor sobre comportamentos alheios. Os assuntos podem até nem lhes dizer respeito, mas, ainda assim, acham que, do alto da sua sabedoria de vão-de-escada, lhes assiste o direito de aprovar ou reprovar o que os outros fazem e de os aconselhar assim ou assado. Os mais ousados, cuja sabedoria continua a ser de vão-de-escada mas usa uns fatinhos mais aprumados e põe água de colónia ao fim-de-semana, atrevem-se mesmo a fazer iluminadas interpretações sobre os motivos que levam as pessoas a fazer o que fazem ou a não fazer o que não fazem. Geralmente, concluem que os outros são sempre uns grandes palermas e que eles é que estão certos, que os outros andam sempre a fugir dos desafios da vida em vez de os enfrentarem, que os outros optam sempre pela solução menos trabalhosa em vez de arriscarem. São tão tolos, tão tolos, que até ousam saber o melhor para a vida dos outros e dar-lhes conselhos e, nos casos mais graves de tolice, até fazer comparações sobre o que desconhecem. E fazem-no porque acham que sabem tudo sobre tudo. Fazem-no porque acham que, se as coisas fossem consigo, teriam tudo sob controlo e saberiam sempre como agir e o que dizer, o que é o certo e o errado, onde é que a espada da Justiça tem de cortar para cortar bem. A verdade é que, as mais das vezes, os que tanto analisam a vida alheia e tão lampeiros são a julgar e condenar os outros, nem o que vai na sua cabecinha são capazes de entender. Andam tão ocupados a tentar perceber os outros que se esquecem de se perceber a si mesmos.

Curiosamente, é também frequente ver que as mesmas pessoas que criticaram os comportamentos alheios, acabam, mais tarde ou mais cedo, por adoptá-los, ainda que com contornos diferentes, que cada vida é uma história. E, ao fazerem-no, estão a sentar-se não no banco dos réus onde os outros que eles julgaram serão agora os seus juízes (os outros, se forem inteligentes, estão-se nas tintas para o julgamento), mas antes nos bancos da escola que é a vida, onde aprenderão preciosas lições. Uma chatice, pois, mas as lições de vida são absolutamente indispensáveis para mostrar aos que se acham muito inteligentes, perspicazes, seguros e bons ajuizadores que eles, tal como todos os outros seres humanos, afinal também fazem grandes disparates e se enganam e, às vezes, de que maneira! E quanto a isto não há volta a dar-lhe: a força da gravidade é um facto e quem cospe para o ar tem necessariamente de levar com a saliva de volta, em cheio, na testa, como o desgraçado Newton levou com a maçã enquanto pensava sabe-se lá em quê.

Se é verdade que, como dizia Oscar Wilde, «a vida imita a arte», também é verdade que às vezes as vidas imitam outras vidas. Quando estamos a fazer aquele exercício de nos pormos nos sapatos dos outros, aquele exercício que todos achamos que fazemos e fazemos bem (e que quase ninguém é capaz sequer de fazer, quanto mais de fazer bem), apontamos o dedinho ao parceiro, juramo-nos incapazes de fazer e dizer certas coisas, usamos palavras definitivas e implacáveis como «imperdoável» ou «nunca mais» e até levamos a mãozinha à boca quando pensamos no que os outros fizeram. «Eu, jamais!», dizemos, «Eu, nunca!». A grande maçada é que, às vezes, a vida prega-nos partidas, porque ainda o demo não esfregou um olho e já nós damos por nós a fazer a mesmíssima coisa que avidamente criticámos nos outros. Lá está: a vida imita a arte, mas a vida também imita a vida.

Nesses momentos, em que revelamos ao mundo que o que andamos a fazer é o mesmo que há pouco criticávamos nos outros, transformamo-nos em algo muito divertido de se ver de fora: desnorteados, tontinhos, incoerentes, à deriva, inconsistentes, dizendo uma coisa na segunda-feira e o seu contrário na quinta, quebrando todas as promessas e todos os «jamais», fazendo o que jurámos nunca fazer e proclamando as grandes intenções para o futuro, adiantando resoluções sobre tudo e sobre nada. Resoluções essas que, como o tempo se encarrega de demonstrar, são sol de pouca dura: não passa um mês (podia dizer uma semana, mas apetece-me ser generosa no espaço de tempo a referir) e já a banda toca outro pasodoble.

É por isso que o povo diz e com razão que «quem muito fala, pouco acerta» e que a minha Avó materna me repete, há décadas, que «só se sabe o que se diz e só se lê o que está escrito». Para viver sabiamente o melhor, mesmo, é, para não correr o risco de não se saber o que se está a dizer, estar caladinho. Porque tudo o que dissermos, desde as críticas aos conselhos, passando pelas juras, as promessas, os «jamais» e os cantares de galo e a esperteza saloia, haverão de transformar-se em enormes gotas quando a saliva que cuspimos para o ar iniciar o seu movimento descendente e ela inicia-o sempre. Então, haveremos de dar por nós, testa a escorrer de cuspo, a olhar para os pés cravados de balas que nós mesmos disparámos, comprometidos com o que dissemos quando, na realidade, não sabíamos o que estávamos a dizer. E a sentença que aplicámos ao outro, teremos coragem de a aplicar a nós? Era lindo, era, mas a maior parte de nós não tem porque, já se sabe, «ninguém é bom juiz em causa própria».

É claro que podemos sempre mudar de ideias e dizer o contrário do anteriormente dito a cada dia que passa, porque nós podemos tudo, sempre. Todavia, se as ideias não tiverem sido ditas, só nós é que daremos conta das nossas contradições, não os outros e, portanto, as nossas incoerências ficarão sempre só nossas. Existem, o que não é nada bom, mas pelo menos não são visíveis, não estão expostas, não serão motivo da troça de ninguém.

Não foi à toa que os romanos, creio, criaram três máximas que se encadeiam umas nas outras: 1. se pensares, não digas; 2. se disseres, não escrevas; 3. se escreveres, não assines. Foi precisamente para nos alertar que, porque a vida dá muitas voltas, nos devemos poupar à exibição das nossas incoerências e das nossas vacilações, porque todos as temos, mas só uns é que são totós ao ponto de as confessar publicamente. No fundo, é fazer o velho exercício do «pensar primeiro e falar depois», que é como quem diz falar só se valer a pena, se for para manter o que foi dito, se for para manter a face, se se tiver a certeza de que a situação, ainda que só seja eterna enquanto durar (a devida vénia ao Vinicius), que pelo menos dure um tempinho considerável que lhe dê ao menos a aparência de séria.

A essas incoerências expostas, a essa lastimosa revelação ao mundo de que o tabuleiro de jogo virou e nós perdemos as fichas (e com que rapidez ele vira e nós as perdemos!), a essas testas cheias de saliva cuspida para o ar, a esses tiros no pé disparados pelo próprio achando que fazia grande coisa, a tudo isso há quem chame «ironias do destino». Eu, que mesmo depois de estar tudo inventado desde a Babilónia Antiga tenho esta minha mania de tentar ser autêntica, prefiro chamar-lhes «ironias do desatino». Para mim, é só mesmo isso que são.

© [m.m. botelho]

eu

[m.m. botelho] || Marta Madalena Botelho
blogues: viagens interditas [textos] || vermelho.intermitente [textos]
e-mail: viagensinterditas @ gmail . com [remover os espaços]

blogues

os meus refúgios || 2 dedos de conversa || 30 and broke || a causa foi modificada [off] || a cidade dos prodígios || a cidade surpreendente || a curva da estrada || a destreza das dúvidas || a dobra do grito || a livreira anarquista || a mulher que viveu duas vezes || a outra face da cidade surpreendente || a minha vida não é isto || a montanha mágica || a namorada de wittgenstein || a natureza do mal || a tempo e a desmodo || a terceira noite || as folhas ardem || aba da causa || adufe || ágrafo || ainda não começámos a pensar || albergue dos danados || alexandre soares silva [off] || almocreve das petas [off] || animais domésticos || associação josé afonso || ana de amsterdam || antónio sousa homem || atum bisnaga || avatares de um desejo || beira-tejo || blecaute-boi || bibliotecário de babel || blogtailors || blogue do jornal de letras || bolha || bomba inteligente || cadeirão voltaire || café central || casadeosso || causa nossa || ciberescritas || cibertúlia || cine highlife || cinerama || coisas do arco da velha || complexidade e contradição || córtex frontal [off] || crítico musical [off] || dados pessoais || da literatura || devaneios || diário de sombras || dias assim || dias felizes || dias im[perfeitos] || dias úteis || educação irracional || entre estantes || explodingdog > building a world || f, world [guests only] || fogo posto || francisco josé viegas - crónicas || french kissin' || gato vadio [livraria] || guilhermina suggia || guitarra de coimbra 4 [off] || húmus. blogue rascunho.net || il miglior fabbro || imitation of life || indústrias culturais || inércia introversão intusiasmo || insónia || interlúdio || irmão lúcia || jugular || lei e ordem || lei seca [guests only] || leitura partilhada || ler || literatura e arte || little black spot || made in lisbon || maiúsculas [off] || mais actual || medo do medo || menina limão || menino mau || miss pearls || modus vivendi || monsieur|ego || moody swing || morfina || mundo pessoa || noite americana || nuno gomes lopes || nu singular || o amigo do povo || o café dos loucos || o mundo de cláudia || o que cai dos dias || os livros ardem mal || os meus livros || oldies and goldies || orgia literária || ouriquense || paulo pimenta diários || pedro rolo duarte || pequenas viagens || photospathos || pipoco mais salgado || pó dos livros || poesia || poesia & lda. || poetry café || ponto media || poros || porto (.) ponto || postcard blues [off] || post secret || p.q.p. bach || pura coincidência || quadripolaridades || quarta república || quarto interior || quatro caminhos || quintas de leitura || rua da judiaria || saídos da concha || são mamede - cae de guimarães || sem compromisso || semicírculo || sem pénis nem inveja || sem-se-ver || sound + vision || teatro anatómico || the ballad of the broken birdie || the sartorialist || theoria poiesis praxis || theatro circo || there's only 1 alice || torreão sul || ultraperiférico || um amor atrevido || um blog sobre kleist || um voo cego a nada || vida breve || vidro duplo || vodka 7 || vontade indómita || voz do deserto || we'll always have paris || zarp.blog

cultura e lazer

agenda cultural de braga || agenda cultura de évora || agenda cultural de lisboa || agenda cultural do porto || agenda cultural do ministério da cultura || agenda cultural da universidade de coimbra || agenda de concertos - epilepsia emocional || amo.te || biblioteca nacional || CAE figueira da foz || café guarany || café majestic || café teatro real feitorya || caixa de fantasia || casa agrícola || casa das artes de vila nova de famalicão || casa da música || centro cultural de belém || centro nacional de cultura || centro português de fotografia || cinecartaz || cinema 2000 || cinema passos manuel || cinema português || cinemas medeia || cinemateca portuguesa || clube de leituras || clube literário do porto || clube português artes e ideias || coliseu do porto || coliseu dos recreios || companhia nacional de bailado || culturgest || culturgest porto || culturporto [rivoli] || culturweb || delegação regional da cultura do alentejo || delegação regional da cultura do algarve || delegação regional da cultura do centro || delegação regional da cultura do norte || e-cultura || egeac || era uma vez no porto || europarque || fábrica de conteúdos || fonoteca || fundação calouste gulbenkian || fundação de serralves || fundação engenheiro antónio almeida || fundação mário soares || galeria zé dos bois || hard club || instituto das artes || instituto do cinema, audiovisual e multimédia || instituto português da fotografia || instituto português do livro e da biblioteca || maus hábitos || mercado das artes || mercado negro || museu nacional soares dos reis || o porto cool || plano b || porto XXI || rede cultural || santiago alquimista || são mamede - centro de artes e espectáculos de guimarães || sapo cultura || serviço de música da fundação calouste gulbenkian || teatro académico gil vicente || teatro aveirense || teatro do campo alegre || theatro circo || teatro helena sá e costa || teatro municipal da guarda || teatro nacional de são carlos || teatro nacional de são joão || teatropólis || ticketline || trintaeum. café concerto rivoli

leituras e informação

365 [revista] || a cabra - jornal universitário de coimbra || a oficina [centro cultural vila flor - guimarães] || a phala || afrodite [editora] || águas furtadas [revista] || angelus novus [editora] || arquitectura viva || arte capital || assírio & alvim [editora] || associação guilhermina suggia || attitude [revista] || blitz [revista] || bodyspace || book covers || cadernos de tipografia || cosmorama [editora] || courrier international [jornal] || criatura revista] || crí­tica || diário de notícias [jornal] || el paí­s [jornal] || el mundo [jornal] || entre o vivo, o não-vivo e o morto || escaparate || eurozine || expresso [jornal] || frenesi [editora] || goldberg magazine [revista] || granta [revista] || guardian unlimited [jornal] || guimarães editores [editora] || jazz.pt || jornal de negócios [jornal] || jornal de notí­cias [jornal] || jusjornal [jornal] || kapa [revista] || la insignia || le cool [revista] || le monde diplomatique [jornal] || memorandum || minguante [revista] || mondo bizarre || mundo universitário [jornal] || os meus livros || nada || objecto cardí­aco [editora] || pc guia [revista] || pnethomem || pnetmulher || poets [AoAP] || premiere [revista] || prisma.com [revista] || público pt [jornal] || público es [jornal] || revista atlântica de cultura ibero-americana [revista] || rezo.net || rolling stone [revista] || rua larga [revista] || sol [jornal] || storm magazine [revista] || time europe [revista] || trama [editora] || TSF [rádio] || vanity fair [revista] || visão [revista]

direitos de autor dos textos

Os direitos de autor dos textos publicados neste blogue, com excepção das citações com autoria devidamente identificada, pertencem a © 2008-2019 Marta Madalena Botelho. É proibida a sua reprodução, ainda que com referência à autoria. Todos os direitos reservados.

direitos de autor das imagens

Os direitos de autor de todas as imagens publicadas neste blogue cuja autoria ou fonte não sejam identificadas como pertencendo a outras pessoas ou entidades pertencem a © 2008-2019 Marta Madalena Botelho. É proibida a sua reprodução ainda que com referência à autoria. Todos os direitos reservados.

algumas notas importantes sobre os direitos de autor

» O âmbito do direito de autor e os direitos conexos incidem a sua protecção sobre duas realidades: a tutela das obras e o reconhecimento dos respectivos direitos aos seus autores.
» O direito de autor protege as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas.
» Obras originais são as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, qualquer que seja o seu género, forma de expressão, mérito, modo de comunicação ou objecto.
» Uma obra encontra-se protegida, logo que é criada e fixada sob qualquer tipo de forma tangível de modo directo ou com a ajuda de uma máquina.
» A protecção das obras não está sujeita a formalização alguma. O direito de autor constitui-se pelo simples facto da criação, independentemente da sua divulgação, publicação, utilização ou registo.
» O titular da obra é, salvo estipulação em contrário, o seu criador.
» A obra não depende do conhecimento pelo público. Ela existe independente da sua divulgação, publicação, utilização ou exploração, apenas se lhe impondo, para beneficiar de protecção, que seja exteriorizada sob qualquer modo.
» O direito de autor pertence ao criador intelectual da obra, salvo disposição expressa em contrário.