É frequente ouvir algumas pessoas tecerem juízos de valor sobre comportamentos alheios. Os assuntos podem até nem lhes dizer respeito, mas, ainda assim, acham que, do alto da sua sabedoria de vão-de-escada, lhes assiste o direito de aprovar ou reprovar o que os outros fazem e de os aconselhar assim ou assado. Os mais ousados, cuja sabedoria continua a ser de vão-de-escada mas usa uns fatinhos mais aprumados e põe água de colónia ao fim-de-semana, atrevem-se mesmo a fazer iluminadas interpretações sobre os motivos que levam as pessoas a fazer o que fazem ou a não fazer o que não fazem. Geralmente, concluem que os outros são sempre uns grandes palermas e que eles é que estão certos, que os outros andam sempre a fugir dos desafios da vida em vez de os enfrentarem, que os outros optam sempre pela solução menos trabalhosa em vez de arriscarem. São tão tolos, tão tolos, que até ousam saber o melhor para a vida dos outros e dar-lhes conselhos e, nos casos mais graves de tolice, até fazer comparações sobre o que desconhecem. E fazem-no porque acham que sabem tudo sobre tudo. Fazem-no porque acham que, se as coisas fossem consigo, teriam tudo sob controlo e saberiam sempre como agir e o que dizer, o que é o certo e o errado, onde é que a espada da Justiça tem de cortar para cortar bem. A verdade é que, as mais das vezes, os que tanto analisam a vida alheia e tão lampeiros são a julgar e condenar os outros, nem o que vai na sua cabecinha são capazes de entender. Andam tão ocupados a tentar perceber os outros que se esquecem de se perceber a si mesmos.
Curiosamente, é também frequente ver que as mesmas pessoas que criticaram os comportamentos alheios, acabam, mais tarde ou mais cedo, por adoptá-los, ainda que com contornos diferentes, que cada vida é uma história. E, ao fazerem-no, estão a sentar-se não no banco dos réus onde os outros que eles julgaram serão agora os seus juízes (os outros, se forem inteligentes, estão-se nas tintas para o julgamento), mas antes nos bancos da escola que é a vida, onde aprenderão preciosas lições. Uma chatice, pois, mas as lições de vida são absolutamente indispensáveis para mostrar aos que se acham muito inteligentes, perspicazes, seguros e bons ajuizadores que eles, tal como todos os outros seres humanos, afinal também fazem grandes disparates e se enganam e, às vezes, de que maneira! E quanto a isto não há volta a dar-lhe: a força da gravidade é um facto e quem cospe para o ar tem necessariamente de levar com a saliva de volta, em cheio, na testa, como o desgraçado Newton levou com a maçã enquanto pensava sabe-se lá em quê.
Se é verdade que, como dizia Oscar Wilde, «a vida imita a arte», também é verdade que às vezes as vidas imitam outras vidas. Quando estamos a fazer aquele exercício de nos pormos nos sapatos dos outros, aquele exercício que todos achamos que fazemos e fazemos bem (e que quase ninguém é capaz sequer de fazer, quanto mais de fazer bem), apontamos o dedinho ao parceiro, juramo-nos incapazes de fazer e dizer certas coisas, usamos palavras definitivas e implacáveis como «imperdoável» ou «nunca mais» e até levamos a mãozinha à boca quando pensamos no que os outros fizeram. «Eu, jamais!», dizemos, «Eu, nunca!». A grande maçada é que, às vezes, a vida prega-nos partidas, porque ainda o demo não esfregou um olho e já nós damos por nós a fazer a mesmíssima coisa que avidamente criticámos nos outros. Lá está: a vida imita a arte, mas a vida também imita a vida.
Nesses momentos, em que revelamos ao mundo que o que andamos a fazer é o mesmo que há pouco criticávamos nos outros, transformamo-nos em algo muito divertido de se ver de fora: desnorteados, tontinhos, incoerentes, à deriva, inconsistentes, dizendo uma coisa na segunda-feira e o seu contrário na quinta, quebrando todas as promessas e todos os «jamais», fazendo o que jurámos nunca fazer e proclamando as grandes intenções para o futuro, adiantando resoluções sobre tudo e sobre nada. Resoluções essas que, como o tempo se encarrega de demonstrar, são sol de pouca dura: não passa um mês (podia dizer uma semana, mas apetece-me ser generosa no espaço de tempo a referir) e já a banda toca outro pasodoble.
É por isso que o povo diz e com razão que «quem muito fala, pouco acerta» e que a minha Avó materna me repete, há décadas, que «só se sabe o que se diz e só se lê o que está escrito». Para viver sabiamente o melhor, mesmo, é, para não correr o risco de não se saber o que se está a dizer, estar caladinho. Porque tudo o que dissermos, desde as críticas aos conselhos, passando pelas juras, as promessas, os «jamais» e os cantares de galo e a esperteza saloia, haverão de transformar-se em enormes gotas quando a saliva que cuspimos para o ar iniciar o seu movimento descendente e ela inicia-o sempre. Então, haveremos de dar por nós, testa a escorrer de cuspo, a olhar para os pés cravados de balas que nós mesmos disparámos, comprometidos com o que dissemos quando, na realidade, não sabíamos o que estávamos a dizer. E a sentença que aplicámos ao outro, teremos coragem de a aplicar a nós? Era lindo, era, mas a maior parte de nós não tem porque, já se sabe, «ninguém é bom juiz em causa própria».
É claro que podemos sempre mudar de ideias e dizer o contrário do anteriormente dito a cada dia que passa, porque nós podemos tudo, sempre. Todavia, se as ideias não tiverem sido ditas, só nós é que daremos conta das nossas contradições, não os outros e, portanto, as nossas incoerências ficarão sempre só nossas. Existem, o que não é nada bom, mas pelo menos não são visíveis, não estão expostas, não serão motivo da troça de ninguém.
Não foi à toa que os romanos, creio, criaram três máximas que se encadeiam umas nas outras: 1. se pensares, não digas; 2. se disseres, não escrevas; 3. se escreveres, não assines. Foi precisamente para nos alertar que, porque a vida dá muitas voltas, nos devemos poupar à exibição das nossas incoerências e das nossas vacilações, porque todos as temos, mas só uns é que são totós ao ponto de as confessar publicamente. No fundo, é fazer o velho exercício do «pensar primeiro e falar depois», que é como quem diz falar só se valer a pena, se for para manter o que foi dito, se for para manter a face, se se tiver a certeza de que a situação, ainda que só seja eterna enquanto durar (a devida vénia ao Vinicius), que pelo menos dure um tempinho considerável que lhe dê ao menos a aparência de séria.
A essas incoerências expostas, a essa lastimosa revelação ao mundo de que o tabuleiro de jogo virou e nós perdemos as fichas (e com que rapidez ele vira e nós as perdemos!), a essas testas cheias de saliva cuspida para o ar, a esses tiros no pé disparados pelo próprio achando que fazia grande coisa, a tudo isso há quem chame «ironias do destino». Eu, que mesmo depois de estar tudo inventado desde a Babilónia Antiga tenho esta minha mania de tentar ser autêntica, prefiro chamar-lhes «ironias do desatino». Para mim, é só mesmo isso que são.
© [m.m. botelho]
Curiosamente, é também frequente ver que as mesmas pessoas que criticaram os comportamentos alheios, acabam, mais tarde ou mais cedo, por adoptá-los, ainda que com contornos diferentes, que cada vida é uma história. E, ao fazerem-no, estão a sentar-se não no banco dos réus onde os outros que eles julgaram serão agora os seus juízes (os outros, se forem inteligentes, estão-se nas tintas para o julgamento), mas antes nos bancos da escola que é a vida, onde aprenderão preciosas lições. Uma chatice, pois, mas as lições de vida são absolutamente indispensáveis para mostrar aos que se acham muito inteligentes, perspicazes, seguros e bons ajuizadores que eles, tal como todos os outros seres humanos, afinal também fazem grandes disparates e se enganam e, às vezes, de que maneira! E quanto a isto não há volta a dar-lhe: a força da gravidade é um facto e quem cospe para o ar tem necessariamente de levar com a saliva de volta, em cheio, na testa, como o desgraçado Newton levou com a maçã enquanto pensava sabe-se lá em quê.
Se é verdade que, como dizia Oscar Wilde, «a vida imita a arte», também é verdade que às vezes as vidas imitam outras vidas. Quando estamos a fazer aquele exercício de nos pormos nos sapatos dos outros, aquele exercício que todos achamos que fazemos e fazemos bem (e que quase ninguém é capaz sequer de fazer, quanto mais de fazer bem), apontamos o dedinho ao parceiro, juramo-nos incapazes de fazer e dizer certas coisas, usamos palavras definitivas e implacáveis como «imperdoável» ou «nunca mais» e até levamos a mãozinha à boca quando pensamos no que os outros fizeram. «Eu, jamais!», dizemos, «Eu, nunca!». A grande maçada é que, às vezes, a vida prega-nos partidas, porque ainda o demo não esfregou um olho e já nós damos por nós a fazer a mesmíssima coisa que avidamente criticámos nos outros. Lá está: a vida imita a arte, mas a vida também imita a vida.
Nesses momentos, em que revelamos ao mundo que o que andamos a fazer é o mesmo que há pouco criticávamos nos outros, transformamo-nos em algo muito divertido de se ver de fora: desnorteados, tontinhos, incoerentes, à deriva, inconsistentes, dizendo uma coisa na segunda-feira e o seu contrário na quinta, quebrando todas as promessas e todos os «jamais», fazendo o que jurámos nunca fazer e proclamando as grandes intenções para o futuro, adiantando resoluções sobre tudo e sobre nada. Resoluções essas que, como o tempo se encarrega de demonstrar, são sol de pouca dura: não passa um mês (podia dizer uma semana, mas apetece-me ser generosa no espaço de tempo a referir) e já a banda toca outro pasodoble.
É por isso que o povo diz e com razão que «quem muito fala, pouco acerta» e que a minha Avó materna me repete, há décadas, que «só se sabe o que se diz e só se lê o que está escrito». Para viver sabiamente o melhor, mesmo, é, para não correr o risco de não se saber o que se está a dizer, estar caladinho. Porque tudo o que dissermos, desde as críticas aos conselhos, passando pelas juras, as promessas, os «jamais» e os cantares de galo e a esperteza saloia, haverão de transformar-se em enormes gotas quando a saliva que cuspimos para o ar iniciar o seu movimento descendente e ela inicia-o sempre. Então, haveremos de dar por nós, testa a escorrer de cuspo, a olhar para os pés cravados de balas que nós mesmos disparámos, comprometidos com o que dissemos quando, na realidade, não sabíamos o que estávamos a dizer. E a sentença que aplicámos ao outro, teremos coragem de a aplicar a nós? Era lindo, era, mas a maior parte de nós não tem porque, já se sabe, «ninguém é bom juiz em causa própria».
É claro que podemos sempre mudar de ideias e dizer o contrário do anteriormente dito a cada dia que passa, porque nós podemos tudo, sempre. Todavia, se as ideias não tiverem sido ditas, só nós é que daremos conta das nossas contradições, não os outros e, portanto, as nossas incoerências ficarão sempre só nossas. Existem, o que não é nada bom, mas pelo menos não são visíveis, não estão expostas, não serão motivo da troça de ninguém.
Não foi à toa que os romanos, creio, criaram três máximas que se encadeiam umas nas outras: 1. se pensares, não digas; 2. se disseres, não escrevas; 3. se escreveres, não assines. Foi precisamente para nos alertar que, porque a vida dá muitas voltas, nos devemos poupar à exibição das nossas incoerências e das nossas vacilações, porque todos as temos, mas só uns é que são totós ao ponto de as confessar publicamente. No fundo, é fazer o velho exercício do «pensar primeiro e falar depois», que é como quem diz falar só se valer a pena, se for para manter o que foi dito, se for para manter a face, se se tiver a certeza de que a situação, ainda que só seja eterna enquanto durar (a devida vénia ao Vinicius), que pelo menos dure um tempinho considerável que lhe dê ao menos a aparência de séria.
A essas incoerências expostas, a essa lastimosa revelação ao mundo de que o tabuleiro de jogo virou e nós perdemos as fichas (e com que rapidez ele vira e nós as perdemos!), a essas testas cheias de saliva cuspida para o ar, a esses tiros no pé disparados pelo próprio achando que fazia grande coisa, a tudo isso há quem chame «ironias do destino». Eu, que mesmo depois de estar tudo inventado desde a Babilónia Antiga tenho esta minha mania de tentar ser autêntica, prefiro chamar-lhes «ironias do desatino». Para mim, é só mesmo isso que são.
© [m.m. botelho]