A morte senta-se sempre na primeira fila. Imóvel, impassível, impenetrável. Não cheira a nada e, no entanto, é como se lhe sentíssemos o odor a cada inspiração; não tem sabor, mas é como se lhe provássemos o gosto a cada garfada; não tem rosto, mas é como se a víssemos em todas as esquinas que dobramos. Está sentada na primeira fila, assistindo ao espectáculo da vida de cada um de nós. Em silêncio, presencia cada acontecimento marcante, cada grito, cada choro, cada beijo, cada gargalhada, todos os abraços que damos e todos os palavrões que dizemos. Vê-nos dormir, acordar, trabalhar, amar e odiar com a cumplicidade dos grandes amigos, dos grandes amores, da família mais próxima.
Desde a infância até à velhice, a percepção e a certeza da morte são companheiras permanentes de caminho. Sabemos que, mais cedo ou mais tarde, mas inevitavelmente, o confronto sucederá: infalível, inelutável, irrepetível.
Morrer pode ser libertador ou penalizador, dependendo daquilo que já fizemos e do que ainda queremos fazer e, é claro, da qualidade de vida ou falta dela. A consciência da morte apressa-nos, faz-nos sôfregos de ser e estar, empurra-nos para o vórtice das sensações e das emoções, conduz-nos ao excesso e ao desvario. Por outro lado, incute-nos o desejo de realização pessoal, de superação contínua e máxima, faz-nos ultrapassar limites, traçar alargados objectivos, progredir, desejar aproveitar do melhor modo possível cada minuto que passa.
A noção da finitude da vida, qual espada de Dâmocles que pende sobre todas as cabeças, pode surtir em nós os melhores ou os piores efeitos, dar-nos a melhor ou a pior perspectiva das coisas, ser factor de felicidade ou de desespero. Estar consciente de que se vai morrer e ter de ficar à espera que a morte venha ter connosco pode, contudo, ser angustiante. E, até, em certa medida, injusto.
Viver não deveria, nunca, ser uma obrigação, nem uma imposição de regimes políticos, religiões, concepções morais e/ou éticas. Morrer também não. Vida e morte não são valores absolutos, mas circunstâncias que dependem, as mais das vezes, do imprevisto (por acaso, ainda estou viva para escrever esta crónica, mas não sei se, igualmente por acaso, não estarei morta para a semana, mesmo a tempo de não escrever a próxima). Uma autêntica roleta russa, esta coisa da sucessão dos dias. Ora (ainda) se é, ora (já) não se é.
De cada vez que lançamos o olhar para o público, lá está ela. A morte continua ali, sentada na primeira fila, assistindo ao desenrolar dos nossos dias. Se não foi convidada por ninguém, então, certamente, pagou o justo preço do bilhete. Não defraudemos, pois, as suas elevadas expectativas. Até ao cair do pano, o espectáculo deve continuar e, no final, ouvir-se o som dos aplausos. Coloquemos a persona e prossigamos com a representação. A vida, afinal, é muito (d)isso.
[Também publicado em PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho
Desde a infância até à velhice, a percepção e a certeza da morte são companheiras permanentes de caminho. Sabemos que, mais cedo ou mais tarde, mas inevitavelmente, o confronto sucederá: infalível, inelutável, irrepetível.
Morrer pode ser libertador ou penalizador, dependendo daquilo que já fizemos e do que ainda queremos fazer e, é claro, da qualidade de vida ou falta dela. A consciência da morte apressa-nos, faz-nos sôfregos de ser e estar, empurra-nos para o vórtice das sensações e das emoções, conduz-nos ao excesso e ao desvario. Por outro lado, incute-nos o desejo de realização pessoal, de superação contínua e máxima, faz-nos ultrapassar limites, traçar alargados objectivos, progredir, desejar aproveitar do melhor modo possível cada minuto que passa.
A noção da finitude da vida, qual espada de Dâmocles que pende sobre todas as cabeças, pode surtir em nós os melhores ou os piores efeitos, dar-nos a melhor ou a pior perspectiva das coisas, ser factor de felicidade ou de desespero. Estar consciente de que se vai morrer e ter de ficar à espera que a morte venha ter connosco pode, contudo, ser angustiante. E, até, em certa medida, injusto.
Viver não deveria, nunca, ser uma obrigação, nem uma imposição de regimes políticos, religiões, concepções morais e/ou éticas. Morrer também não. Vida e morte não são valores absolutos, mas circunstâncias que dependem, as mais das vezes, do imprevisto (por acaso, ainda estou viva para escrever esta crónica, mas não sei se, igualmente por acaso, não estarei morta para a semana, mesmo a tempo de não escrever a próxima). Uma autêntica roleta russa, esta coisa da sucessão dos dias. Ora (ainda) se é, ora (já) não se é.
De cada vez que lançamos o olhar para o público, lá está ela. A morte continua ali, sentada na primeira fila, assistindo ao desenrolar dos nossos dias. Se não foi convidada por ninguém, então, certamente, pagou o justo preço do bilhete. Não defraudemos, pois, as suas elevadas expectativas. Até ao cair do pano, o espectáculo deve continuar e, no final, ouvir-se o som dos aplausos. Coloquemos a persona e prossigamos com a representação. A vida, afinal, é muito (d)isso.
[Também publicado em PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho