Quase todos os seres humanos, independentemente da sua idade, profissão, condição social e do espaço geográfico em que vivem, partilham entre si pequenos detalhes, alguns deles muito íntimos, muito privados e muito secretos. Porém, nem essa intimidade, essa privacidade ou esse secretismo os tornam singulares. Ao invés, são comuns e muito mais fáceis de encontrar do que, prima facie, se suporia. Entre esses detalhes, há um que tem estado muito presente na minha vida nos últimos tempos porque, involuntariamente, tem surgido em conversas com amigos, no que vou lendo por aí e até nos filmes que tenho visto. Talvez o objectivo de todo este acaso seja mesmo o de me fazer reflectir um pouco sobre o assunto.
Refiro-me ao medo que muitas pessoas têm de um dia virem a sentir que deixaram passar a vida sem terem feito tudo aquilo que queriam. Já todos, certamente, o sentimos e o sentiremos ainda até ao fim dos dias. De tempos a tempos e ao longo do nosso percurso pessoal, é altura de fazer balanços e em cada um desses momentos de auto-análise a angústia é sempre a mesma: «ainda não fiz o suficiente».
Para cada período da nossa vida, traçamos objectivos: abrir uma livraria, ganhar uma medalha, acabar o curso, casar, escrever um livro, adoptar um cão, concluir o doutoramento, ter o primeiro filho, ir aos Himalaias. Mas se um propósito não se cumpre no período a que o destinámos, nem por isso deixa de constar da lista, passando a fazer parte do rol de «must do» da próxima fase. Isto tudo para que aquela «angústia de ainda não ter feito o suficiente» não se torne em «certeza de que o suficiente nunca se fará».
Quase todos temos, portanto, uma tendência intrínseca e inegável para acharmos que se algo ainda não aconteceu nas nossas vidas quando deveria ter acontecido, ainda há-de acontecer, nem que seja quando já formos velhinhos. Mas isto, é claro, apenas enquanto ainda é possível que, em função do tempo, venha a acontecer. Transposta a barreira temporal, a definitiva, aquela a partir da qual já não nos assiste o direito de sonhar, e malogradas as metas traçadas, começa a ser cozinhado no íntimo de cada um esse prato tão difícil de digerir que dá pelo nome de "frustração", que coze no lume brando do desencanto e é temperado abundantemente com resignação e tristeza.
Acredito, porém, que não obstante todo o desalento que emerge assim que somos confrontados com o absoluto impedimento, é possível conviver saudavelmente com a frustração. Com efeito, ela faz tanto parte da vida como a realização e estará sempre presente, independentemente do modo como lidemos com ela. É certo que essa convivência saudável é mais facilmente alcançável quando a origem da frustração não tenha sido algo que dependia exclusivamente da nossa vontade ou da nossa acção. É caso para dizer que, nestas circunstâncias, a obra do acaso é tranquilizadora. Mas mesmo que os objectivos não tenham sido cumpridos porque nós não quisemos ou não dedicámos a eles todas as forças que tínhamos – mesmo que não tenhamos tido um filho porque decidimos apostar na carreira profissional, ou que não tenhamos feito o doutoramento porque escolhemos dedicar a juventude a viajar pelo mundo, ou mesmo que nunca tenhamos escrito um livro porque sempre achámos demasiado trabalhoso transformar as ideias em palavras, – é imperioso ter em mente que o único compromisso de felicidade que temos é connosco mesmos e que isso não se confunde com nenhuma forma de egoísmo, ainda que o politicamente correcto nos diga que sim.
É importante que nos esforcemos por concretizar o que idealizámos e que o façamos no tempo certo, mas é igualmente indispensável que estejamos sempre conscientes de que nem tudo o que idealizámos será concretizado. Se a sorte não estiver do nosso lado e, por obra única do acaso ou conjugada com a nossa vontade ou falta dela, algo ficar pelo caminho, deixemos, pacificamente, que fique mesmo para trás. O trilho adiante estará, certamente, cheio de estimulantes desafios. Gastar energias com objectivos passados é desperdiçar energias que poderiam ser aplicadas no cumprimento de objectivos futuros. Não perceber isto pode ser um erro crasso, daqueles que arrastam consigo muitos outros erros crassos, numa bola de neve que nos impede de nos sentirmos bem com quem somos. Sempre constou que o caminho é para a frente e que para trás... anda a burra. No plano dos desejos cabe imenso, mas no plano da realidade cabe muito pouco. Na verdade, nunca viveremos tudo. Importa é viver bem tudo o que vivermos.
Apenas mais duas notas finais. A primeira para explicar que o título desta crónica é uma tentativa de actualização aos tempos modernos da expressão «ter um filho, escrever um livro e plantar uma árvore»; a segunda para deixar uma sugestão que, de alguma forma, se prende com o tema deste texto: o filme «The Bucket List» («Nunca é Tarde Demais»), de Rob Reiner, ainda em exibição nas salas portuguesas (ver trailer).
[Também publicado em PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho
Refiro-me ao medo que muitas pessoas têm de um dia virem a sentir que deixaram passar a vida sem terem feito tudo aquilo que queriam. Já todos, certamente, o sentimos e o sentiremos ainda até ao fim dos dias. De tempos a tempos e ao longo do nosso percurso pessoal, é altura de fazer balanços e em cada um desses momentos de auto-análise a angústia é sempre a mesma: «ainda não fiz o suficiente».
Para cada período da nossa vida, traçamos objectivos: abrir uma livraria, ganhar uma medalha, acabar o curso, casar, escrever um livro, adoptar um cão, concluir o doutoramento, ter o primeiro filho, ir aos Himalaias. Mas se um propósito não se cumpre no período a que o destinámos, nem por isso deixa de constar da lista, passando a fazer parte do rol de «must do» da próxima fase. Isto tudo para que aquela «angústia de ainda não ter feito o suficiente» não se torne em «certeza de que o suficiente nunca se fará».
Quase todos temos, portanto, uma tendência intrínseca e inegável para acharmos que se algo ainda não aconteceu nas nossas vidas quando deveria ter acontecido, ainda há-de acontecer, nem que seja quando já formos velhinhos. Mas isto, é claro, apenas enquanto ainda é possível que, em função do tempo, venha a acontecer. Transposta a barreira temporal, a definitiva, aquela a partir da qual já não nos assiste o direito de sonhar, e malogradas as metas traçadas, começa a ser cozinhado no íntimo de cada um esse prato tão difícil de digerir que dá pelo nome de "frustração", que coze no lume brando do desencanto e é temperado abundantemente com resignação e tristeza.
Acredito, porém, que não obstante todo o desalento que emerge assim que somos confrontados com o absoluto impedimento, é possível conviver saudavelmente com a frustração. Com efeito, ela faz tanto parte da vida como a realização e estará sempre presente, independentemente do modo como lidemos com ela. É certo que essa convivência saudável é mais facilmente alcançável quando a origem da frustração não tenha sido algo que dependia exclusivamente da nossa vontade ou da nossa acção. É caso para dizer que, nestas circunstâncias, a obra do acaso é tranquilizadora. Mas mesmo que os objectivos não tenham sido cumpridos porque nós não quisemos ou não dedicámos a eles todas as forças que tínhamos – mesmo que não tenhamos tido um filho porque decidimos apostar na carreira profissional, ou que não tenhamos feito o doutoramento porque escolhemos dedicar a juventude a viajar pelo mundo, ou mesmo que nunca tenhamos escrito um livro porque sempre achámos demasiado trabalhoso transformar as ideias em palavras, – é imperioso ter em mente que o único compromisso de felicidade que temos é connosco mesmos e que isso não se confunde com nenhuma forma de egoísmo, ainda que o politicamente correcto nos diga que sim.
É importante que nos esforcemos por concretizar o que idealizámos e que o façamos no tempo certo, mas é igualmente indispensável que estejamos sempre conscientes de que nem tudo o que idealizámos será concretizado. Se a sorte não estiver do nosso lado e, por obra única do acaso ou conjugada com a nossa vontade ou falta dela, algo ficar pelo caminho, deixemos, pacificamente, que fique mesmo para trás. O trilho adiante estará, certamente, cheio de estimulantes desafios. Gastar energias com objectivos passados é desperdiçar energias que poderiam ser aplicadas no cumprimento de objectivos futuros. Não perceber isto pode ser um erro crasso, daqueles que arrastam consigo muitos outros erros crassos, numa bola de neve que nos impede de nos sentirmos bem com quem somos. Sempre constou que o caminho é para a frente e que para trás... anda a burra. No plano dos desejos cabe imenso, mas no plano da realidade cabe muito pouco. Na verdade, nunca viveremos tudo. Importa é viver bem tudo o que vivermos.
Apenas mais duas notas finais. A primeira para explicar que o título desta crónica é uma tentativa de actualização aos tempos modernos da expressão «ter um filho, escrever um livro e plantar uma árvore»; a segunda para deixar uma sugestão que, de alguma forma, se prende com o tema deste texto: o filme «The Bucket List» («Nunca é Tarde Demais»), de Rob Reiner, ainda em exibição nas salas portuguesas (ver trailer).
[Também publicado em PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho