Os factos ocorreram numa vivenda situada na Calle Oporto, cidade de Cangas, província de Vigo, Espanha e remontam a 12 de Julho de 2006. Nesse dia, Jacobo Piñeiro depois de ter consumido vários gramas de cocaína e ter bebido alguns copos de whisky em casa, foi para um bar onde conheceu Isaac Pérez, 27 anos, homossexual. Foram ambos para a casa de Isaac e passaram toda a tarde num quarto, consumindo cocaína. O brasileiro Júlio Anderson Luciano, de 32 anos, que vivia com Isaac, chegou por volta das 21h30 com amigos, que saíram por volta da 1h30.
Segundo as declarações que Jacopo prestou em julgamento, por volta das 4h00 Isaac despiu-se e começou a assediá-lo sexualmente, mas Jacopo ofereceu resistência às investidas do jovem. Perante a recusa, Isaac saiu do quarto e voltou empunhando uma faca, tendo-se debruçado sobre Jacobo. Este, de imediato, tirou a arma a Isaac e desferiu-lhe três facadas, duas no ventre e uma no ombro. Seguiram-se outras 33. Júlio, que entrou no quarto para socorrer Isaac, recebeu 22 punhaladas, algumas nas costas, e na sua maioria, de acordo com a acusação do Ministério Público, «desnecessárias para a consecução da sua morte, aumentando deliberada e desumanamente o seu sofrimento». Entretanto, Isaac tentou fechar-se no quarto para chamar a polícia, mas não conseguiu. Jacobo retirou-lhe o telemóvel antes de o apunhalar repetidamente no rosto.
Depois do duplo homicídio, Jacobo permaneceu na vivenda até às 9h00, à procura de algo que lhe permitisse atear um incêndio. Tomou um duche e fez os curativos das suas feridas. Fechou as janelas, abriu o gás e iniciou cinco focos de incêndio (dois dos quais sobre os cadáveres). Após recolher numa mala tudo o que encontrou que tivesse algum valor, saiu. Segundo a acusação, tudo foi «pensado e calculado friamente» com o propósito «de fazer crer que as vítimas tinham sido alvo de um assalto violento».
Embora o Ministério Público, que pugnou pela aplicação de uma pena de prisão de 60 anos, tenha tentado afastar a tese da legítima defesa, chamando a atenção para o facto de Jacobo ter estado «várias horas no piso inferior da casa e de ter causado intencionalmente um incêndio para excluir os indícios do que tinha provocado com o seu comportamento impiedoso», a defesa sustentou que o arguido actuou movido por «um medo insuperável de ser assassinado e violado, vítima do pânico, fora de si devido ao estado de intoxicação em que se encontrava».
Jacobo confessou a autoria dos crimes e, fazendo uso do direito à última palavra no julgamento, disse estar «arrependido de tudo». Depois de reconhecer que apunhalou as vítimas disse: «Não é culpa de ninguém. É culpa de como sou». Terá sido isto o que comoveu alguns dos nove jurados (de um grupo composto por sete mulheres e dois homens), dos quais três choraram ao ouvi-lo. Pouco depois, na passada sexta-feira, dia 20 de Fevereiro de 2009, Jacobo foi absolvido por esse júri, por uma votação de sete votos contra dois. Foi absolvido, repito. Não surpreende, pois, que a mãe de Isaac tenha gritado a plenos pulmões aos jurados: «Deixais livre um assassino confesso».
A história é, por si só, suficientemente macabra para deixar qualquer um em estado de choque. Porém, independentemente dos contornos específicos do caso, nomeadamente no que respeita à motivação (que se diria, sem margem para grandes dúvidas, ter tido por base um profundo sentimento de homofobia, isto é, ódio, aversão ou discriminação de uma pessoa com fundamento na sua orientação sexual), há alguns aspectos que não podem deixar de causar a qualquer pessoa, mas muito mais a um jurista, a mais admirada estupefacção. Com efeito, cabe perguntar:
- Como é possível que o júri tenha considerado que alguém que estava há horas a consumir cocaína com uma das vítimas de repente se tenha sentido com receio de que aquela o violasse?
- Como é possível que o júri tenha considerado que a legítima defesa como causa de exclusão da ilicitude tenha abrangido ambos os homicídios se a segunda vítima não agiu de modo a que o seu comportamento pudesse configurar qualquer ameaça para o arguido?
- Como é possível que o júri tenha considerado que o arguido agiu em legítima defesa se este, perante a possibilidade de fuga, preferiu reagir desferindo 57 facadas em duas pessoas?
- Como é possível que o júri tenha considerado legítima defesa um acto que não foi proporcional nem adequado ao alegado receio do arguido de ser violado, receio esse que, considerando a descrição dos factos feita pelo próprio, não era nem legítimo, nem iminente?
- Como é possível que o júri tenha considerado que 57 facadas possam configurar um acto de legítima defesa?
- Como é possível que o júri tenha considerado que alguém que, após o cometimento de dois crimes com os contornos bárbaros destes, permaneceu durante horas no local dos crimes, tomou banho, fez curativos nas suas próprias feridas, recolheu todos os objectos de valor que pôde e engenhosamente planeou e executou um incêndio, com vista a ocultar eficientemente os vestígios da sua actuação através do indiciamento de um assalto violento, tenha agido sob um forte estado de pânico, logo, em legítima defesa?
- Como é possível que um indivíduo que, imediatamente após o cometimento de dois crimes de homicídio, praticou um crime de furto, pelo qual também foi acusado (já que se trata de um evidente caso de concurso efectivo de crimes e não de um concurso aparente), tenha sido absolvido pela prática dos três crimes através da invocação da legítima defesa? É que ainda que possa admitir-se, embora não sem grande esforço de fantasia, que o arguido não agiu intencionalmente com o propósito de matar, tendo agido unicamente com vista a repelir um receio iminente e fundado de ser violado, não se vislumbra onde estejam preenchidos os pressupostos da legítima defesa no acto e na intenção de se apropriar de bens alheios como se de coisas suas se tratasse. Assim, a conduta posterior, autonomizada dos crimes de homicídio, e atento o facto de consubstanciar um crime de furto, jamais poderia ter sido justificada através da legítima defesa.
Certamente, muitas outras questões poderiam ser suscitadas a propósito deste caso. Importa, pois, reflectir sobre elas, mais que não seja para concluir que, ainda que todo este sucedido não sirva outro propósito, que sirva, pelo menos, para fazer repensar o modelo dos Tribunais de júri e a sua pertinência em face do actual panorama jurídico-criminal, bem como os aspectos relacionados com a sua composição, a sua competência, o seu grau de esclarecimento e de indispensável domínio de questões de Direito substantivo e os seus possíveis efeitos nefastos naquilo que é a primeira e a mais nobre função dos Tribunais: a aplicação da verdadeira e sã Justiça!
Notas:
1. O advogado da mãe de Isaac Pérez, uma das vítimas, informou a comunicação social de que irá recorrer desta decisão, por meio de uma apelación, que apresentará perante o Tribunal Superior de Xustiza de Galicia. Jacobo Piñeiro será agora julgado pelo crime de incêndio, pelo qual poderá ser punido com a pena máxima de vinte anos de prisão.
2. Os dados constantes deste artigo foram recolhidos das seguintes fontes: «Dejáis libre a un asesino confeso», gritó la madre de Isaac (notícia do jornal La Voz de Galicia, de 20.02.2009), ¿57 puñaladas en defensa propia? (notícia do jornal El País, de 24.02.4009) e Un jurado popular absuelve al autor del crimen de una pareja homosexual (notícia do jornal El Mundo, de 24.02.2009).
[Também publicado em PnetJuris.]
© Marta Madalena Botelho
Segundo as declarações que Jacopo prestou em julgamento, por volta das 4h00 Isaac despiu-se e começou a assediá-lo sexualmente, mas Jacopo ofereceu resistência às investidas do jovem. Perante a recusa, Isaac saiu do quarto e voltou empunhando uma faca, tendo-se debruçado sobre Jacobo. Este, de imediato, tirou a arma a Isaac e desferiu-lhe três facadas, duas no ventre e uma no ombro. Seguiram-se outras 33. Júlio, que entrou no quarto para socorrer Isaac, recebeu 22 punhaladas, algumas nas costas, e na sua maioria, de acordo com a acusação do Ministério Público, «desnecessárias para a consecução da sua morte, aumentando deliberada e desumanamente o seu sofrimento». Entretanto, Isaac tentou fechar-se no quarto para chamar a polícia, mas não conseguiu. Jacobo retirou-lhe o telemóvel antes de o apunhalar repetidamente no rosto.
Depois do duplo homicídio, Jacobo permaneceu na vivenda até às 9h00, à procura de algo que lhe permitisse atear um incêndio. Tomou um duche e fez os curativos das suas feridas. Fechou as janelas, abriu o gás e iniciou cinco focos de incêndio (dois dos quais sobre os cadáveres). Após recolher numa mala tudo o que encontrou que tivesse algum valor, saiu. Segundo a acusação, tudo foi «pensado e calculado friamente» com o propósito «de fazer crer que as vítimas tinham sido alvo de um assalto violento».
Embora o Ministério Público, que pugnou pela aplicação de uma pena de prisão de 60 anos, tenha tentado afastar a tese da legítima defesa, chamando a atenção para o facto de Jacobo ter estado «várias horas no piso inferior da casa e de ter causado intencionalmente um incêndio para excluir os indícios do que tinha provocado com o seu comportamento impiedoso», a defesa sustentou que o arguido actuou movido por «um medo insuperável de ser assassinado e violado, vítima do pânico, fora de si devido ao estado de intoxicação em que se encontrava».
Jacobo confessou a autoria dos crimes e, fazendo uso do direito à última palavra no julgamento, disse estar «arrependido de tudo». Depois de reconhecer que apunhalou as vítimas disse: «Não é culpa de ninguém. É culpa de como sou». Terá sido isto o que comoveu alguns dos nove jurados (de um grupo composto por sete mulheres e dois homens), dos quais três choraram ao ouvi-lo. Pouco depois, na passada sexta-feira, dia 20 de Fevereiro de 2009, Jacobo foi absolvido por esse júri, por uma votação de sete votos contra dois. Foi absolvido, repito. Não surpreende, pois, que a mãe de Isaac tenha gritado a plenos pulmões aos jurados: «Deixais livre um assassino confesso».
A história é, por si só, suficientemente macabra para deixar qualquer um em estado de choque. Porém, independentemente dos contornos específicos do caso, nomeadamente no que respeita à motivação (que se diria, sem margem para grandes dúvidas, ter tido por base um profundo sentimento de homofobia, isto é, ódio, aversão ou discriminação de uma pessoa com fundamento na sua orientação sexual), há alguns aspectos que não podem deixar de causar a qualquer pessoa, mas muito mais a um jurista, a mais admirada estupefacção. Com efeito, cabe perguntar:
- Como é possível que o júri tenha considerado que alguém que estava há horas a consumir cocaína com uma das vítimas de repente se tenha sentido com receio de que aquela o violasse?
- Como é possível que o júri tenha considerado que a legítima defesa como causa de exclusão da ilicitude tenha abrangido ambos os homicídios se a segunda vítima não agiu de modo a que o seu comportamento pudesse configurar qualquer ameaça para o arguido?
- Como é possível que o júri tenha considerado que o arguido agiu em legítima defesa se este, perante a possibilidade de fuga, preferiu reagir desferindo 57 facadas em duas pessoas?
- Como é possível que o júri tenha considerado legítima defesa um acto que não foi proporcional nem adequado ao alegado receio do arguido de ser violado, receio esse que, considerando a descrição dos factos feita pelo próprio, não era nem legítimo, nem iminente?
- Como é possível que o júri tenha considerado que 57 facadas possam configurar um acto de legítima defesa?
- Como é possível que o júri tenha considerado que alguém que, após o cometimento de dois crimes com os contornos bárbaros destes, permaneceu durante horas no local dos crimes, tomou banho, fez curativos nas suas próprias feridas, recolheu todos os objectos de valor que pôde e engenhosamente planeou e executou um incêndio, com vista a ocultar eficientemente os vestígios da sua actuação através do indiciamento de um assalto violento, tenha agido sob um forte estado de pânico, logo, em legítima defesa?
- Como é possível que um indivíduo que, imediatamente após o cometimento de dois crimes de homicídio, praticou um crime de furto, pelo qual também foi acusado (já que se trata de um evidente caso de concurso efectivo de crimes e não de um concurso aparente), tenha sido absolvido pela prática dos três crimes através da invocação da legítima defesa? É que ainda que possa admitir-se, embora não sem grande esforço de fantasia, que o arguido não agiu intencionalmente com o propósito de matar, tendo agido unicamente com vista a repelir um receio iminente e fundado de ser violado, não se vislumbra onde estejam preenchidos os pressupostos da legítima defesa no acto e na intenção de se apropriar de bens alheios como se de coisas suas se tratasse. Assim, a conduta posterior, autonomizada dos crimes de homicídio, e atento o facto de consubstanciar um crime de furto, jamais poderia ter sido justificada através da legítima defesa.
Certamente, muitas outras questões poderiam ser suscitadas a propósito deste caso. Importa, pois, reflectir sobre elas, mais que não seja para concluir que, ainda que todo este sucedido não sirva outro propósito, que sirva, pelo menos, para fazer repensar o modelo dos Tribunais de júri e a sua pertinência em face do actual panorama jurídico-criminal, bem como os aspectos relacionados com a sua composição, a sua competência, o seu grau de esclarecimento e de indispensável domínio de questões de Direito substantivo e os seus possíveis efeitos nefastos naquilo que é a primeira e a mais nobre função dos Tribunais: a aplicação da verdadeira e sã Justiça!
Notas:
1. O advogado da mãe de Isaac Pérez, uma das vítimas, informou a comunicação social de que irá recorrer desta decisão, por meio de uma apelación, que apresentará perante o Tribunal Superior de Xustiza de Galicia. Jacobo Piñeiro será agora julgado pelo crime de incêndio, pelo qual poderá ser punido com a pena máxima de vinte anos de prisão.
2. Os dados constantes deste artigo foram recolhidos das seguintes fontes: «Dejáis libre a un asesino confeso», gritó la madre de Isaac (notícia do jornal La Voz de Galicia, de 20.02.2009), ¿57 puñaladas en defensa propia? (notícia do jornal El País, de 24.02.4009) e Un jurado popular absuelve al autor del crimen de una pareja homosexual (notícia do jornal El Mundo, de 24.02.2009).
[Também publicado em PnetJuris.]
© Marta Madalena Botelho