O que têm em comum um escritório transformado em confessionário, as costas largas da crise, dois bilhetes para o teatro, a falta de exigência dos portugueses, uma sexta-feira à tarde, um telefonema em altos brados, vinte minutos de espera e dois cumprimentos sem resposta? Aparentemente nada, detalhadamente tudo.
Uma das vantagens de exercer a Advocacia em prática isolada é a possibilidade de estabelecer com o Cliente uma relação de proximidade. Quem sabe do que estou a falar imagina logo um escritório com mobiliário antigo, atulhado de livros e papéis por toda a parte, a indispensável lupa, o abre cartas, as canetas com as iniciais gravadas, em suma, todos os elementos indispensáveis à criação de um ambiente no qual o Cliente, sentado num confortável cadeirão, desfia, num frente-a-frente com o causídico, o rol das suas mágoas e preocupações.
O meu escritório é mais ou menos assim. As principais diferenças estão no mobiliário (que se fica pelo sóbrio) e nas canetas (muito poucas são as que têm as minhas iniciais gravadas). De resto, alguns dos meus Clientes também estão convictos de que o Advogado é um misto de confidente, psicólogo, pai, marido e amigalhaço que está sempre disponível para escutar os seus queixumes e para ser público das mais entediantes palestras dedicadas a assuntos que não interessam nem ao Menino Jesus. Às vezes, até podemos ser tudo isso e muito mais, mas nunca às 19h30 se formos possuidores de um par de bilhetes para «O Café», do Fassbinder, no TNSJ e ainda não tivermos sequer jantado. É mais ou menos nesse instante que a vantagem de que falava no início deste texto se torna um inconveniente.
Esta semana reuni com um Cliente que, muito desanimado, se lastimava do modo insensível como o patrão tinha dispensado alguns trabalhadores, tudo a coberto de uma rebuscada mentira ancorada nos efeitos da crise. Não obstante, dizia-me ele, ainda no mês anterior o mesmo patrão tinha comprado um Mercedes que exibia com ostentação. Queixava-se o meu Cliente, no fundo, da péssima gestão que o empresário fazia dos proventos do seu negócio e dizia que o que mais o aborrecia era a falta de modos do chefe, que passava pelos empregados sem os cumprimentar, com o pescoço muito esticado atrás do nó da gravata.
O cenário é, certamente, sobejamente conhecido por todos e profusamente ilustrado por esse Portugal fora. Com efeito, recomenda-se o uso de óculos de sol ao passar por uma qualquer "zona industrial" deste país, pois olhos desprotegidos são olhos que correm o risco de ficarem ofuscados pelo reluzir das ceras religiosamente aplicadas todas as semanas nas carroçarias dos veículos ditos "topos de gama" que, invariavelmente, ocupam os lugares destinados à gerência, devidamente reservados sob uma elucidativa placa quadrada azul forte, no parque de toda e qualquer fabriqueta.
Já mais do que em cima da hora para o teatro, tentei consolar o meu Cliente enquanto o acompanhava até à porta, dizendo-lhe que mais não se podia esperar de um país onde para ser empregado se exige a frequência, com aproveitamento, do 9.º ano de escolaridade mas, para ser patrão, não se exige absolutamente nada. Resta-nos paciência, portanto, enquanto esperamos que alguém se deixe iluminar pela luz do bom senso e, por meio da legislação laboral se de outro modo não for possível, obrigue os patrões, tal como obriga já os trabalhadores, a frequentarem formação, mais que não seja, na área da gestão.
O tema foi repescado em conversa entre amigos, sexta-feira ao final da tarde, mas eu estava longe de imaginar que uma evidência desta lacuna profunda na formação dos empresários portugueses me seria dada ali, num aparentemente inconsequente passeio pela baixa do Porto.
Nesse mesmo dia (12 de Fevereiro), cumpriam-se 200 anos sobre a data de nascimento de Charles Darwin. Provavelmente motivada por isso, a Lello Editores lançou uma reimpressão d’«A Origem das Espécies», obra cuja edição com tal estampa há muito se encontrava esgotada entre nós (embora a das Publicações Europa-América assegurasse as necessidades do mercado). O livro estava em grande destaque na montra da Livraria Lello (Prólogo Livreiros, S.A.), no Porto, que, por isso, captou a minha atenção. Há anos que eu corria alfarrabistas para adquirir esta edição, que até agora só tinha conseguido consultar em bibliotecas.
Entusiasmada, entrei na livraria e dirigi-me ao balcão onde o livro também dominava. Do outro lado, um homem na casa dos sessenta anos, de fato e gravata, falava com espalhafato ao telefone. «É uma questão de minutos», pensei, acreditando que, perante um cliente, o telefonema rapidamente teria fim. Enganei-me redondamente. Mais de dez minutos depois, a conversa sobre números de exemplares, margens de lucro e devoluções continuava a atordoar os dois andares da livraria mais antiga do Porto. Algumas pessoas, menos pacientes do que eu e sem disposição para esperar, acabaram por abandonar o espaço sem comprar o que pretendiam. Eu fiz o mesmo, mas depois de espreitar as primeiras páginas no quiosque do lado, regressei à livraria.
O indivíduo por detrás do balcão puxava agora umas fumaças do seu cigarro mas, dos males o menor, o telefonema era passado. Dou as boas tardes, ele não responde. Peço informações sobre um outro livro de que também estou (desesperadamente) à procura. Ainda ele me esclarecia que apesar de tal livro não estar nas estantes da Lello dispunha de um exemplar no armazém e já o telefone tocava de novo. Espantosamente, ele atendeu enquanto eu, mais de vinte minutos depois de ter entrado na livraria, fui novamente posta «em espera».
Entalando o auscultador entre o rosto e o ombro, segurando o cigarro entre os lábios ao canto da boca, o cavalheiro, sem me dirigir palavra, recolheu o exemplar d’«A Origem das Espécies» que eu segurava e passou-o na máquina. Esticou o braço na minha direcção e tirou-me da mão o cartão de débito. Passou o cartão e pôs-me na frente a maquineta. Eu, embora incrédula com o que sucedia, lá marquei o código. Segundos depois, ele arrancou o talão e entregou-mo, juntamente com o livro que entretanto tinha ensacado. Tudo isto, claro, entre nova dissertação sobre as dificuldades das vendas dos títulos da editora "X" e sobre as condições da Lello, que não aceita condicionamentos sobre a margem de lucro dos livros que vende. «Isso a mim não me interessa», troava o sujeito, esbracejando. Foi então que lhe pedi o recibo da minha compra. «Hã?!», perguntou ele, voz fanhosa, a cinza do cigarro a cair sobre o balcão, os dentes mal cuidados dentro da boca. «O recibo, se faz favor», repeti eu. Com cara de poucos amigos, lá pôs a registadora a cuspir o comprovativo dos 27,00€ que eu lá deixara. «Obrigada e boa tarde», disse eu, antes de sair, mas escusado será dizer que não obtive qualquer resposta.
A Lello, como disse, é a livraria mais antiga do Porto. Além dos livros, cativa pela arquitectura, a decoração e o traço que mantém características que não se vêem frequentemente em locais similares. Em certa medida, conserva o aspecto dos vetustos escritórios de Advogados que os Clientes rapidamente transformam em confessionário. Mas a Lello cativa também, claro, pela confiança que os clientes nela foram depositando ao longo de anos, confiança essa alicerçada num tratamento cordial, eficiente e célere. Os clientes da Lello acreditam que, assim que entram pela porta, serão condignamente tratados. Eu acreditava piamente nisso até ao dia em que se cumpriram 200 anos sobre o nascimento de Darwin e eu mesma, sem necessidade de grandes teorias, constatei que, naquele mesmo lugar, tinha havido uma involução na espécie humana. Atrás do balcão da Lello, sei-o agora, nem sempre se honra o peso dos anos, a sobriedade e a gentileza.
O que tem isto a ver com a conversa com o meu Cliente? Aparentemente nada, detalhadamente tudo. Tal como qualquer patrão de qualquer fabriqueta por esse país fora, no coração do Porto, atrás do balcão da livraria Lello, reside uma bela prova de que para se ser empresário em Portugal não é preciso sequer ter boa educação, quanto mais estudos. Daquela visita à Lello salvou-se a almejada reedição d’«A Origem das Espécies» que agora, depois de longa espera, repousa finalmente entre os títulos da minha biblioteca.
[Também publicado em PnetCrónicas.]
© Marta Madalena Botelho
Uma das vantagens de exercer a Advocacia em prática isolada é a possibilidade de estabelecer com o Cliente uma relação de proximidade. Quem sabe do que estou a falar imagina logo um escritório com mobiliário antigo, atulhado de livros e papéis por toda a parte, a indispensável lupa, o abre cartas, as canetas com as iniciais gravadas, em suma, todos os elementos indispensáveis à criação de um ambiente no qual o Cliente, sentado num confortável cadeirão, desfia, num frente-a-frente com o causídico, o rol das suas mágoas e preocupações.
O meu escritório é mais ou menos assim. As principais diferenças estão no mobiliário (que se fica pelo sóbrio) e nas canetas (muito poucas são as que têm as minhas iniciais gravadas). De resto, alguns dos meus Clientes também estão convictos de que o Advogado é um misto de confidente, psicólogo, pai, marido e amigalhaço que está sempre disponível para escutar os seus queixumes e para ser público das mais entediantes palestras dedicadas a assuntos que não interessam nem ao Menino Jesus. Às vezes, até podemos ser tudo isso e muito mais, mas nunca às 19h30 se formos possuidores de um par de bilhetes para «O Café», do Fassbinder, no TNSJ e ainda não tivermos sequer jantado. É mais ou menos nesse instante que a vantagem de que falava no início deste texto se torna um inconveniente.
Esta semana reuni com um Cliente que, muito desanimado, se lastimava do modo insensível como o patrão tinha dispensado alguns trabalhadores, tudo a coberto de uma rebuscada mentira ancorada nos efeitos da crise. Não obstante, dizia-me ele, ainda no mês anterior o mesmo patrão tinha comprado um Mercedes que exibia com ostentação. Queixava-se o meu Cliente, no fundo, da péssima gestão que o empresário fazia dos proventos do seu negócio e dizia que o que mais o aborrecia era a falta de modos do chefe, que passava pelos empregados sem os cumprimentar, com o pescoço muito esticado atrás do nó da gravata.
O cenário é, certamente, sobejamente conhecido por todos e profusamente ilustrado por esse Portugal fora. Com efeito, recomenda-se o uso de óculos de sol ao passar por uma qualquer "zona industrial" deste país, pois olhos desprotegidos são olhos que correm o risco de ficarem ofuscados pelo reluzir das ceras religiosamente aplicadas todas as semanas nas carroçarias dos veículos ditos "topos de gama" que, invariavelmente, ocupam os lugares destinados à gerência, devidamente reservados sob uma elucidativa placa quadrada azul forte, no parque de toda e qualquer fabriqueta.
Já mais do que em cima da hora para o teatro, tentei consolar o meu Cliente enquanto o acompanhava até à porta, dizendo-lhe que mais não se podia esperar de um país onde para ser empregado se exige a frequência, com aproveitamento, do 9.º ano de escolaridade mas, para ser patrão, não se exige absolutamente nada. Resta-nos paciência, portanto, enquanto esperamos que alguém se deixe iluminar pela luz do bom senso e, por meio da legislação laboral se de outro modo não for possível, obrigue os patrões, tal como obriga já os trabalhadores, a frequentarem formação, mais que não seja, na área da gestão.
O tema foi repescado em conversa entre amigos, sexta-feira ao final da tarde, mas eu estava longe de imaginar que uma evidência desta lacuna profunda na formação dos empresários portugueses me seria dada ali, num aparentemente inconsequente passeio pela baixa do Porto.
Nesse mesmo dia (12 de Fevereiro), cumpriam-se 200 anos sobre a data de nascimento de Charles Darwin. Provavelmente motivada por isso, a Lello Editores lançou uma reimpressão d’«A Origem das Espécies», obra cuja edição com tal estampa há muito se encontrava esgotada entre nós (embora a das Publicações Europa-América assegurasse as necessidades do mercado). O livro estava em grande destaque na montra da Livraria Lello (Prólogo Livreiros, S.A.), no Porto, que, por isso, captou a minha atenção. Há anos que eu corria alfarrabistas para adquirir esta edição, que até agora só tinha conseguido consultar em bibliotecas.
Entusiasmada, entrei na livraria e dirigi-me ao balcão onde o livro também dominava. Do outro lado, um homem na casa dos sessenta anos, de fato e gravata, falava com espalhafato ao telefone. «É uma questão de minutos», pensei, acreditando que, perante um cliente, o telefonema rapidamente teria fim. Enganei-me redondamente. Mais de dez minutos depois, a conversa sobre números de exemplares, margens de lucro e devoluções continuava a atordoar os dois andares da livraria mais antiga do Porto. Algumas pessoas, menos pacientes do que eu e sem disposição para esperar, acabaram por abandonar o espaço sem comprar o que pretendiam. Eu fiz o mesmo, mas depois de espreitar as primeiras páginas no quiosque do lado, regressei à livraria.
O indivíduo por detrás do balcão puxava agora umas fumaças do seu cigarro mas, dos males o menor, o telefonema era passado. Dou as boas tardes, ele não responde. Peço informações sobre um outro livro de que também estou (desesperadamente) à procura. Ainda ele me esclarecia que apesar de tal livro não estar nas estantes da Lello dispunha de um exemplar no armazém e já o telefone tocava de novo. Espantosamente, ele atendeu enquanto eu, mais de vinte minutos depois de ter entrado na livraria, fui novamente posta «em espera».
Entalando o auscultador entre o rosto e o ombro, segurando o cigarro entre os lábios ao canto da boca, o cavalheiro, sem me dirigir palavra, recolheu o exemplar d’«A Origem das Espécies» que eu segurava e passou-o na máquina. Esticou o braço na minha direcção e tirou-me da mão o cartão de débito. Passou o cartão e pôs-me na frente a maquineta. Eu, embora incrédula com o que sucedia, lá marquei o código. Segundos depois, ele arrancou o talão e entregou-mo, juntamente com o livro que entretanto tinha ensacado. Tudo isto, claro, entre nova dissertação sobre as dificuldades das vendas dos títulos da editora "X" e sobre as condições da Lello, que não aceita condicionamentos sobre a margem de lucro dos livros que vende. «Isso a mim não me interessa», troava o sujeito, esbracejando. Foi então que lhe pedi o recibo da minha compra. «Hã?!», perguntou ele, voz fanhosa, a cinza do cigarro a cair sobre o balcão, os dentes mal cuidados dentro da boca. «O recibo, se faz favor», repeti eu. Com cara de poucos amigos, lá pôs a registadora a cuspir o comprovativo dos 27,00€ que eu lá deixara. «Obrigada e boa tarde», disse eu, antes de sair, mas escusado será dizer que não obtive qualquer resposta.
A Lello, como disse, é a livraria mais antiga do Porto. Além dos livros, cativa pela arquitectura, a decoração e o traço que mantém características que não se vêem frequentemente em locais similares. Em certa medida, conserva o aspecto dos vetustos escritórios de Advogados que os Clientes rapidamente transformam em confessionário. Mas a Lello cativa também, claro, pela confiança que os clientes nela foram depositando ao longo de anos, confiança essa alicerçada num tratamento cordial, eficiente e célere. Os clientes da Lello acreditam que, assim que entram pela porta, serão condignamente tratados. Eu acreditava piamente nisso até ao dia em que se cumpriram 200 anos sobre o nascimento de Darwin e eu mesma, sem necessidade de grandes teorias, constatei que, naquele mesmo lugar, tinha havido uma involução na espécie humana. Atrás do balcão da Lello, sei-o agora, nem sempre se honra o peso dos anos, a sobriedade e a gentileza.
O que tem isto a ver com a conversa com o meu Cliente? Aparentemente nada, detalhadamente tudo. Tal como qualquer patrão de qualquer fabriqueta por esse país fora, no coração do Porto, atrás do balcão da livraria Lello, reside uma bela prova de que para se ser empresário em Portugal não é preciso sequer ter boa educação, quanto mais estudos. Daquela visita à Lello salvou-se a almejada reedição d’«A Origem das Espécies» que agora, depois de longa espera, repousa finalmente entre os títulos da minha biblioteca.
[Também publicado em PnetCrónicas.]
© Marta Madalena Botelho