Espremeu o pano várias vezes, ora para um lado, ora para o outro. Tinha os dedos vermelhos da força que fizera. Num gesto decidido, sacudiu a camisa e mirou-a a contraluz. Nem uma nódoa. Enquanto a prendia no estendal com as velhas molas de roupa – tão velhas que quase se desfaziam, apertadas no ferro enferrujado – reparou no colarinho puído. Amanhã, quando a camisa estivesse seca, antes de a engomar ia descosê-lo e virá-lo. Ainda estava boa, a camisa e, além disso, era do uniforme. Eram caras, as camisas do uniforme. Contas feitas à vida e numa camisa daquelas gastava-se metade do governo de um mês.
Entrou em casa. O sol batia no vidro da porta que a força e a alegria do filho mais novo, numa tarde de correrias no quintal com um primo, haviam estalado. Ainda tinha bem presente na memória o «não» que o senhorio lhe dera quando, há uns meses, lhe pediu que mandasse pintar o tecto da cozinha que as manchas de bolor haviam enegrecido, por isso, nem se atreveu a mencionar o vidro quando, esta manhã, fora pagar a renda.
Não gostava de se levantar de manhã, mas mais do que um hábito, isso era há muito imperioso. Era preciso limpar a casa-de-banho, tratar dos pequenos-almoços, esfregar a roupa e estendê-la ao sol, fazer as camas, lavar a loiça e deixar o almoço meio adiantado. Apesar de tudo, já era Março e os dias estavam mais quentes e um pouco maiores. Ainda o dia não raiara e já os pássaros lhe faziam companhia.
Era sempre a primeira a levantar-se e a última a deitar-se. Fazia questão de deitar os filhos, de lhes entalar com força os cobertores debaixo do queixo. Juntos rezavam o Pai-Nosso, muito depressa, para não espantar o sono, mais de uma dúzia de palavras trocadas pelo meio. Gostava de pensar que o que interessa é a devoção com que se reza e não o teor do que se diz. Cedo se deu conta que não tinha muita coisa a dizer entre a casa e o trabalho, entre os queijos que passavam sobre o tabuleiro na queijaria e os carros parados no semáforo, entre os minutos que o arroz demorava a cozer e as esfregadelas enérgicas com que punha as panelas a brilhar.
Ainda nessa semana ouvira dizer a alguém na queijaria que tinha o corpo coberto de nódoas negras, tantas tinham sido as pancadas do marido. Enquanto punha as etiquetas nos requeijões ergueu os olhos e, à sua maneira, como que deu graças por ter um santo marido, seu amigo e amigo dos filhos a quem queria mais do que ao vinho e ao jogo, ao contrário de muitos. Viviam com os tostões contados, era certo, e muitas eram as noites em que ela tinha de tirar minutos ao sono para aceder aos seus desejos, mas sentia-se amada e estimada. Acima de tudo, emocionava-a o riso dele sempre que o filho mais novo lhe arrancava as divisas, todos os dias, mal chegava a casa.
Naquela noite, quando voltou do trabalho, encontrou-os a todos em redor do fogão. As panelas fumegavam e cheirava ao que lhe parecia ser refogado de carne. Quando a viram, os filhos correram a entregar-lhe flores apanhadas no jardim da praceta do bairro, algumas já partidas, outras tantas amassadas. Cobriram-na de beijos e tiraram-lhe do ombro a mala quase tão velha como as molas com que prendia a roupa. Obrigaram-na a sentar-se à mesa e a esperar. «Hoje não podes trabalhar porque é Dia da Mulher», segredou-lhe o mais pequeno ao ouvido, quando ela lhe perguntou a que se devia tudo aquilo.
Comeu, riu, brincou. Por uma noite, não pensou nas panelas que era preciso arear, na roupa que era preciso apanhar, nos pequenos-almoços do dia seguinte. Por uma noite não quis pensar em mais nada senão no que lhe havia dito o filho ao ouvido: «Hoje não podes trabalhar».
Deitou os filhos, rezaram o Pai-Nosso e desejou-lhes boa noite. No corredor, a caminho do quarto, interrogou-se sobre o que seria o «Dia da Mulher». Não sabia o que era, nunca tinha ouvido falar de tal coisa. Antes de adormecer, foi ao porta-moedas buscar um calendário e, com uma caneta, em torno do dia 8 de Março fez um círculo. Embora não estivesse bem certa do significado daquela data, certo era que fazia intenção de nunca mais a esquecer. Depois, apagou a luz e, finalmente, dormiu.
[Também publicado em PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho
Entrou em casa. O sol batia no vidro da porta que a força e a alegria do filho mais novo, numa tarde de correrias no quintal com um primo, haviam estalado. Ainda tinha bem presente na memória o «não» que o senhorio lhe dera quando, há uns meses, lhe pediu que mandasse pintar o tecto da cozinha que as manchas de bolor haviam enegrecido, por isso, nem se atreveu a mencionar o vidro quando, esta manhã, fora pagar a renda.
Não gostava de se levantar de manhã, mas mais do que um hábito, isso era há muito imperioso. Era preciso limpar a casa-de-banho, tratar dos pequenos-almoços, esfregar a roupa e estendê-la ao sol, fazer as camas, lavar a loiça e deixar o almoço meio adiantado. Apesar de tudo, já era Março e os dias estavam mais quentes e um pouco maiores. Ainda o dia não raiara e já os pássaros lhe faziam companhia.
Era sempre a primeira a levantar-se e a última a deitar-se. Fazia questão de deitar os filhos, de lhes entalar com força os cobertores debaixo do queixo. Juntos rezavam o Pai-Nosso, muito depressa, para não espantar o sono, mais de uma dúzia de palavras trocadas pelo meio. Gostava de pensar que o que interessa é a devoção com que se reza e não o teor do que se diz. Cedo se deu conta que não tinha muita coisa a dizer entre a casa e o trabalho, entre os queijos que passavam sobre o tabuleiro na queijaria e os carros parados no semáforo, entre os minutos que o arroz demorava a cozer e as esfregadelas enérgicas com que punha as panelas a brilhar.
Ainda nessa semana ouvira dizer a alguém na queijaria que tinha o corpo coberto de nódoas negras, tantas tinham sido as pancadas do marido. Enquanto punha as etiquetas nos requeijões ergueu os olhos e, à sua maneira, como que deu graças por ter um santo marido, seu amigo e amigo dos filhos a quem queria mais do que ao vinho e ao jogo, ao contrário de muitos. Viviam com os tostões contados, era certo, e muitas eram as noites em que ela tinha de tirar minutos ao sono para aceder aos seus desejos, mas sentia-se amada e estimada. Acima de tudo, emocionava-a o riso dele sempre que o filho mais novo lhe arrancava as divisas, todos os dias, mal chegava a casa.
Naquela noite, quando voltou do trabalho, encontrou-os a todos em redor do fogão. As panelas fumegavam e cheirava ao que lhe parecia ser refogado de carne. Quando a viram, os filhos correram a entregar-lhe flores apanhadas no jardim da praceta do bairro, algumas já partidas, outras tantas amassadas. Cobriram-na de beijos e tiraram-lhe do ombro a mala quase tão velha como as molas com que prendia a roupa. Obrigaram-na a sentar-se à mesa e a esperar. «Hoje não podes trabalhar porque é Dia da Mulher», segredou-lhe o mais pequeno ao ouvido, quando ela lhe perguntou a que se devia tudo aquilo.
Comeu, riu, brincou. Por uma noite, não pensou nas panelas que era preciso arear, na roupa que era preciso apanhar, nos pequenos-almoços do dia seguinte. Por uma noite não quis pensar em mais nada senão no que lhe havia dito o filho ao ouvido: «Hoje não podes trabalhar».
Deitou os filhos, rezaram o Pai-Nosso e desejou-lhes boa noite. No corredor, a caminho do quarto, interrogou-se sobre o que seria o «Dia da Mulher». Não sabia o que era, nunca tinha ouvido falar de tal coisa. Antes de adormecer, foi ao porta-moedas buscar um calendário e, com uma caneta, em torno do dia 8 de Março fez um círculo. Embora não estivesse bem certa do significado daquela data, certo era que fazia intenção de nunca mais a esquecer. Depois, apagou a luz e, finalmente, dormiu.
[Também publicado em PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho