É lugar-comum dizer-se que a democracia, tal como tudo o resto em Portugal, está em crise. Mas todos nós sabemos que dizer, sem mais, que a democracia está em crise, não é nada a não ser uma frase genérica que, as mais das vezes, tem como resultado a instalação de um confortável estado geral letárgico e asténico entre aqueles que são os únicos que poderiam fazer alguma coisa.
A crise é um bicho papão e desmotivador, que leva à rendição e ao abanar de cabeças resignado. Diz-se por aí que o jeito é deixá-la passar, o que, dependendo do lugar que se ocupa no Parlamento, ou seja, consoante se integre o partido do governo ou um dos partidos da oposição, acontecerá a curto prazo ou não acontecerá nunca! Não é, portanto, uma questão de perspectivas, nem sequer de análise séria das coisas, mas sim de cor (política) que faz ver a crise – qualquer crise – como coisa preta e definitiva ou imaculada e transitória.
Tenho as maiores reservas em admitir que a democracia possa estar em crise. Foram anos e anos a levar com a «tese do Contrato Social», com a «Teoria Geral do Estado», a sustentar que o regime democrático é o melhor sistema de organização política, a acreditar que o único meio de governar é através do povo, para o povo e pelo povo. Ora, um sistema que atravessou séculos de História e me tem sido inculcado ao longo da vida não pode entrar em crise! A união entre o povo e a democracia ainda é dos poucos casamentos nos quais eu consigo acreditar, um dos poucos que eu sei que será indissolúvel para todo o sempre, tal como o do café com o leite, o do melão com o presunto e o do Doutor Garcia Pereira com (tod)as candidaturas.
Não me venham com coisas. O que está em crise não é o sistema democrático, mas sim os partidos políticos. Como o próprio nome indica, a maior parte deles está... partida, que é como quem diz dividida em facções e os que não estão só à custa de muita perseguição, da expulsão dos elementos dissonantes, do aniquilamento de quaisquer correntes de pensamento internas que divirjam da dos dirigentes é que mantêm essa podre aparência de unidade, que não é exactamente o mesmo que união, mas parece.
A desagregação dentro dos clãs partidários salta à vista sempre que há eleições para os órgãos. As posições endurecem e distanciam-se, as diferenças ideológicas – que afinal são mais do que muitas – não deixam margem para dúvidas e os até então fraternos companheiros de luta tornam-se ferozes opositores. Claro que todo este arrazoado vem a reboque da actual situação interna do PSD, que embora seja apenas mais um processo eleitoral dentro da máquina partidária, não deixa de ter as suas especificidades e os seus aspectos dignos de caricatura.
Leio as notícias dos jornais e não consigo deixar de sorrir. Com efeito, há cerca de meio ano, o PSD estava em situação similar à presente, discutindo ideias para definir a linha estratégica que correspondia à vontade dos militantes e que melhor convinha ao partido. Então, se bem me lembro, surgiram só dois confrontos de ideias, apenas duas posições com capacidade e condições para avançar para a disputa. Nestas condições inclua-se a vontade de ir à luta, afinal, o mais importante, já que ninguém «sobe ao ringue» se não quiser e a julgar pelo panorama actual, há muito quem há seis meses não tenha querido e agora considere imperioso avançar. Seis meses, apenas cerca de seis meses depois, são várias as candidaturas, muito diferentes, segundo apregoam e cada uma delas muito boa, se comparada com as outras (todas elas muito más, obviamente). Cabe, então, indagar: em apenas seis meses, o que é que mudou assim tanto dentro do PSD? Que cenário é este tão inesperado que levou tantos candidatos a perfilarem-se como os salvadores do partido?
Segundo eles nos querem fazer crer, não obstante o calendário ter avançado do Inverno para a Primavera, o nevoeiro laranja adensou-se. E nisto o coro é afinado: urgem medidas renovadoras que unam o partido e as suas bases, que reaproximem os cidadãos da política, que façam os portugueses acreditar que há alternativa viável ao PS, que deixem claro quais as diferenças de posição entre sociais democratas e socialistas,
etc.,
etc.,
etc., já todos sabemos a ladainha de cor. No fundo, importa renovar, reaproximar, acreditar de novo, esclarecer para, em suma, apresentar aos portugueses um novo partido... velho. Novo apenas no plano das intenções e velho, muito velho porque ancorado nas mesmas pessoas, nas mesmas posturas políticas, nos mesmos grupos de interesses, no mesmo objectivo de, em alternância com o PS, governar de tempos a tempos e vetusto também nos seus pressupostos ideológicos (este será, porventura, o aspecto menos negativo).
O PSD, tal como todos os partidos políticos portugueses – mesmo os mais recentes –, não precisa de se renovar. Precisa, isso sim, de se reconstruir. E, se necessário for, demolir para voltar a erguer. Mais do que necessário – imprescindível! – é que se redefina enquanto microestrutura política dentro de um sistema que não acabou de implantar-se como sucedeu no tempo em que foi criado, mas que tem já trinta e quatro anos de existência e um inteiramente novo contexto dentro do país e fora dele.
Olhando para os partidos portugueses, não consigo ver mais do que colectividades de indivíduos que, na sua esmagadora maioria, andam no palco político desde que caiu a ditadura; indivíduos que se revezam nos cargos a cada passo – alguns deles saltitando até de partido em partido –; indivíduos que já tiveram mais oportunidades do que as que mereciam para demonstrar que sabiam fazer alguma coisa se, de facto, soubessem; indivíduos que continuam a proclamar que a democracia está em crise, já não porque tem tenra idade, como no pós-25 de Abril, mas porque está "descaracterizada e desajustada".
Já o disse e repito: não me venham com coisas. A crise é das ideologias que já foram testadas e falharam, das pessoas que já governaram e levaram cartão vermelho dos eleitores, dos partidos que estão totalmente descredibilizados perante a opinião pública e dos modos de actuação política que tresandam a luta de interesses económicos e pessoais, mas não só. Recorrendo à metáfora, diria que a crise não está na forma onde se coze o bolo, mas sim nos ingredientes da massa. Os portugueses estão fartos de comer mal, de comer sempre do mesmo, de que lhes impinjam gato por lebre, de que lhes prometam algo novo que, afinal, é mais do que velho, é caquéctico.
Sem surpresas, no dia 31 de Maio, o candidato vencedor das directas será somente o novo líder do PSD, mas não o líder do novo PSD. E é pena, porque a oportunidade é única e excelente e não é nada inteligente desperdiçá-la.
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PNETcrónicas.]
© Marta Madalena Botelho