Bernard Henri-Lévy publicou hoje, no jornal "
i", uma crónica intitulada «
As três estações da via-sacra de Michael Jackson». O artigo, ao invés de filosófico e reflexivo, como tem pretensão de considerar-se, é digno de tablóides no seu melhor.
Praticamente toda a informação nele contida é falsa. E como sabemos que é falsa? Em primeiro lugar, porque foi veiculada por um certo tipo de comunicação social que jamais primou pela lisura e pela objectividade. Depois, porque nunca foram sequer indiciadas as fontes de tais informações (como poderiam, se as mesmas são falsas?). Por último, porque foram sistematicamente negadas pelo próprio Michael Jackson em vida.
Estes "boatos" que distorcem a realidade foram ainda negados por outras pessoas envolvidas, como, por exemplo, os médicos do cantor. Com efeito, não há sequer um médico (ou uma clínica) no mundo que confirme e tenha provas de ter realizado uma operação cirúrgica a Michael Jackson para além das duas - ao nariz e de reconstrução aquando do incidente que lhe provocou queimaduras graves durante a gravação de um anúncio da «Pepsi» - que o próprio sempre admitiu ter feito.
O tão falado facto de o tom de pele do cantor ter mudado ao longo da vida não tem nada de extraordinário, ao contrário do que a crónica de Henri-Lévy, tal como tantos outros artigos mal-intencionados, pretende dar a entender. A razão afecta 2% da população mundial e chama-se Vitiligo, é uma doença de pele não-contagiosa que se caracteriza pela perda da pigmentação da pele e tanto Jackson como os seus médicos afirmaram que o cantor padecia dela. Michael Jackson tentou ocultar a doença durante um longo período da sua vida e fê-lo enquanto a maior extensão da sua pele não estava ainda despigmentada. A partir de certa altura, praticamente todo o rosto foi afectado pela despigmentação, o que levou Jackson a optar pela maquilhagem (indispensável para proteger quem tem a doença) de tom mais claro. Isto justifica também o tom "de porcelana", característico dos doentes com Vitiligo, bem como as máscaras, já que a doença aumenta em larga escala o risco de cancro de pele.
É também por isso que as acusações de ódio racial de que Jackson foi alvo são apenas uma tentativa de denegrir a sua imagem, já que, inegavelmente, ele fez mais pelos negros na história da música do que anos e anos de blues e jazz. Os mais atentos certamente não precisarão de recordar «They don’t care about us» (curiosamente, uma canção também usada para distorcer as verdadeiras intenções do cantor) para confirmar o enorme comprometimento de Jackson com diversas questões sociais controversas.
A referência à câmara de oxigénio onde, supostamente, o cantor dormia só pode ser considerada leviana, já que foi desmentida pelo próprio (como se o ridículo não bastasse já para a pôr em causa!). Quanto ao formato do rosto e às mudanças que o mesmo foi evidenciando ao longo do tempo, compare-se com o de sua mãe e talvez as diferenças não sejam assim tão grandes (mesmo no que toca ao nariz).
Outro aspecto incompreensível da crónica de Henri-Lévy é a afirmação que Jackson tinha horror ao ser humano. Ele, como nenhuma outra figura pública da sua dimensão (haverá alguma, além de Madonna?), sempre se quis rodeado de gente. Escolheu as crianças porque não o criticavam, porque não o viam como objecto a explorar para fazer dinheiro às custas de fotografias ou como um bom alvo para uma difamação através de um artigo de jornal. Escolheu o seu mundo (Neverland) porque só ali se sentia em paz, longe dos olhares curiosos e maldosos que em tudo o que fazia buscavam oportunidade para o acusar, criticar, atingir. Quem poderá censurá-lo por isso?
Sobre a concepção dos filhos, todos parecem saber mais do que o próprio Jackson e a mãe das crianças. Mesmo não tendo que o fazer (chega a ser ofensivo pôr a questão em causa), ambos afirmaram repetidamente que as crianças foram concebidas naturalmente, através de relações sexuais. De resto, não consta que o cantor tivesse algum problema nesse aspecto, atendendo a que foi casado duas vezes e outros relacionamentos mais ou menos sérios lhe foram conhecidos.
Em suma, de uma ponta à outra, a crónica de Henri-Lévy está baseada em inverdades e afirmações nunca confirmadas, em menções infundadas, em considerações que roçam o insulto, daquelas que o hábito de ler em certo tipo de "imprensa" já quase nos anestesiou a indignação, mas que não deixam de ser chocantemente lamentáveis quando publicadas noutros suportes e subscritas por certos nomes.
Michael Jackson, como todos os seres ímpares e geniais, será sempre um bom tópico de reflexão sobre o ser humano, especialmente no que respeita à possibilidade de ultrapassar a própria dimensão da materialidade e da temporalidade e de se tornar eterno. Por isso, a maior evidência do tremendo erro em que incorreu a crónica de Henri-Lévy é a frase com que a mesma termina. Afirmar que alguém como Michael Jackson morre só pode ser visto como ingenuidade. Uma ingenuidade de certo modo só equiparável à crença em todas as incorrecções em que o resto do texto se ancorou.
[Ver e ouvir:
Michael Jackson. «They don't care about us». 1996. Versão não censurada (contém cenas de violência).]
[Também publicado em
PnetCrónicas.]
© Marta Madalena Botelho