Faço questão de que a minha crónica de hoje comece com uma afirmação ou, como dizem os nossos queridos amigos ingleses (lembremo-nos do Tratado de Methuen e logo se avivará em nós a memória de tão profunda e profícua amizade), um statement: a palavra favorita dos portugueses é «crise». Pede-se uma opinião a um português sobre o estado do seu país e a primeira palavra que lhe vem à boca é crise. É imediato, é irreflectido, é tão evidente que até nem é preciso perguntar: crise, crise, crise.
Ainda me lembro, era eu gaiata (gosto tanto da palavra «gaiata»!), já a Ivone Silva e o Camilo de Oliveira apregoavam na televisão (eram os tempos em que eu ainda tinha televisão), de garrafa na mão: «isto é que vai uma crise!». Já passaram mais de vinte anos e o discurso poderia ser exactamente o mesmo, não fosse a grande actriz já nos ter deixado.
Aliás, diga-se em abono da verdade, os portugueses são tão profícuos em crises como em opiniões. Eu diria mesmo que a segunda palavra favorita dos portugueses é «opinião». Os portugueses adoram dar a sua opinião e entenda-se «dar» na verdadeira acepção da palavra: o português adora dar o seu parecer sobre tudo quanto é assunto, motu proprio, sem que ninguém lhe peça, sem que venha ao caso. Ah, o português, esse abnegado cidadão do mundo que, consciente do seu papel determinante no rumo de todas as questões e mais alguma, nunca teme nem se abstém de dar a sua opinião, numa demonstração de esforço e sacrifício pelo seu país!
E eis-me chegada à terceira palavra favorita dos portugueses: «país». Os portugueses gostam tanto da sua nação que não deve haver um único que não tenha a bandeira de Portugal em casa (nem que seja daquelas que em vez dos castelos que D. Afonso Henriques tanto se esfalfou a conquistar aos mouros tenha pagodes chineses). Português que se preze ama a pátria mais do que a própria mãe. Por exemplo, se, numa casa portuguesa com certeza, a mãe pedir ao filho que desça três andares, pegue na botija do gás que está na garagem e a traga para cima para que ela possa cozinhar o almoço que ele haverá de comer, o filho responderá que agora não pode ir porque está num momento decisivo do jogo na PSP (leia-se Playstation Portable). Mas se um dos senhores da bola pedir aos portugueses que coloquem a bandeira nacional por tudo quanto é lado, eles largam tudo e não se importam de andar a fazer figurinhas ridículas com uma bandeira espetada numa haste de plástico na janela do seu Fiat Punto branco, desde que seja em nome da nação.
Assim sendo, aos portugueses interessa, acima de tudo, resolver a crise que, em sua opinião, assola este país. Tudo o mais é fait diver. Os portugueses querem lá bem saber do debate mensal na Assembleia da República, do «Magalhães», da visita de Hugo Chavez ou da exposição de Picasso no Algarve. E nem lhes falem do casamento entre pessoas do mesmo sexo porque, como diria Manuel Alegre, já chega de andarmos a falar de assuntos menos importantes só porque são fracturantes e estão na moda.
Os portugueses já têm muito em que pensar! Logo a começar, na malfadada Euribor e nas comissões da banca e, depois, na Justiça e na atribuição das indemnizações a Paulo Pedroso e Pinto da Costa, no aumento da criminalidade, nos números do Euromilhões e no apuramento da selecção nacional para o Mundial 2010. E depois há as notícias do Público, do Portugal Diário e do Correio da Manhã onde é imperioso que cada português deixe expressa a sua opinião...
Portugal é, diz-se, um país de brandos costumes. Sim, sem dúvida, um país de costumes. Portugal, o «meu país de marinheiros, o meu país das naus, de esquadras e de frotas» de que falava António Nobre, agora só gosta de navegar em águas conhecidas, em águas tranquilas, em segurança. Portugal quase já só vai onde lhe mandam, só faz o que lhe deixam fazer, só arrisca se outros lhe garantirem o apoio (financeiro e político, na maior parte dos casos).
Não é por acaso que, mesmo tendo passado tanto tempo, os textos que a Ivone Silva interpretou no Sabadabadu continuam tão actuais (tão assustadoramente actuais!), mas sim porque as prioridades dos portugueses são sempre as mesmas (as tais palavras favoritas) e, à luz da emergência dessas preocupações, todas as outras questões se tornam inoportunas.
Algo sobressai no meio de tudo isto: Portugal está desfasado da realidade em que, por força das circunstâncias, é obrigado a movimentar-se. Por isso, chega com décadas de atraso a locais de onde os outros já partiram, simplesmente porque se recusa a pegar no leme do seu próprio destino, a tomar decisões por si mesmo, a escolher quais são, de facto, as suas prioridades.
Ah, se ao menos os costumes fossem menos brandos!...
[Também publicado em PNETmulher]
© Marta Madalena Botelho
Ainda me lembro, era eu gaiata (gosto tanto da palavra «gaiata»!), já a Ivone Silva e o Camilo de Oliveira apregoavam na televisão (eram os tempos em que eu ainda tinha televisão), de garrafa na mão: «isto é que vai uma crise!». Já passaram mais de vinte anos e o discurso poderia ser exactamente o mesmo, não fosse a grande actriz já nos ter deixado.
Aliás, diga-se em abono da verdade, os portugueses são tão profícuos em crises como em opiniões. Eu diria mesmo que a segunda palavra favorita dos portugueses é «opinião». Os portugueses adoram dar a sua opinião e entenda-se «dar» na verdadeira acepção da palavra: o português adora dar o seu parecer sobre tudo quanto é assunto, motu proprio, sem que ninguém lhe peça, sem que venha ao caso. Ah, o português, esse abnegado cidadão do mundo que, consciente do seu papel determinante no rumo de todas as questões e mais alguma, nunca teme nem se abstém de dar a sua opinião, numa demonstração de esforço e sacrifício pelo seu país!
E eis-me chegada à terceira palavra favorita dos portugueses: «país». Os portugueses gostam tanto da sua nação que não deve haver um único que não tenha a bandeira de Portugal em casa (nem que seja daquelas que em vez dos castelos que D. Afonso Henriques tanto se esfalfou a conquistar aos mouros tenha pagodes chineses). Português que se preze ama a pátria mais do que a própria mãe. Por exemplo, se, numa casa portuguesa com certeza, a mãe pedir ao filho que desça três andares, pegue na botija do gás que está na garagem e a traga para cima para que ela possa cozinhar o almoço que ele haverá de comer, o filho responderá que agora não pode ir porque está num momento decisivo do jogo na PSP (leia-se Playstation Portable). Mas se um dos senhores da bola pedir aos portugueses que coloquem a bandeira nacional por tudo quanto é lado, eles largam tudo e não se importam de andar a fazer figurinhas ridículas com uma bandeira espetada numa haste de plástico na janela do seu Fiat Punto branco, desde que seja em nome da nação.
Assim sendo, aos portugueses interessa, acima de tudo, resolver a crise que, em sua opinião, assola este país. Tudo o mais é fait diver. Os portugueses querem lá bem saber do debate mensal na Assembleia da República, do «Magalhães», da visita de Hugo Chavez ou da exposição de Picasso no Algarve. E nem lhes falem do casamento entre pessoas do mesmo sexo porque, como diria Manuel Alegre, já chega de andarmos a falar de assuntos menos importantes só porque são fracturantes e estão na moda.
Os portugueses já têm muito em que pensar! Logo a começar, na malfadada Euribor e nas comissões da banca e, depois, na Justiça e na atribuição das indemnizações a Paulo Pedroso e Pinto da Costa, no aumento da criminalidade, nos números do Euromilhões e no apuramento da selecção nacional para o Mundial 2010. E depois há as notícias do Público, do Portugal Diário e do Correio da Manhã onde é imperioso que cada português deixe expressa a sua opinião...
Portugal é, diz-se, um país de brandos costumes. Sim, sem dúvida, um país de costumes. Portugal, o «meu país de marinheiros, o meu país das naus, de esquadras e de frotas» de que falava António Nobre, agora só gosta de navegar em águas conhecidas, em águas tranquilas, em segurança. Portugal quase já só vai onde lhe mandam, só faz o que lhe deixam fazer, só arrisca se outros lhe garantirem o apoio (financeiro e político, na maior parte dos casos).
Não é por acaso que, mesmo tendo passado tanto tempo, os textos que a Ivone Silva interpretou no Sabadabadu continuam tão actuais (tão assustadoramente actuais!), mas sim porque as prioridades dos portugueses são sempre as mesmas (as tais palavras favoritas) e, à luz da emergência dessas preocupações, todas as outras questões se tornam inoportunas.
Algo sobressai no meio de tudo isto: Portugal está desfasado da realidade em que, por força das circunstâncias, é obrigado a movimentar-se. Por isso, chega com décadas de atraso a locais de onde os outros já partiram, simplesmente porque se recusa a pegar no leme do seu próprio destino, a tomar decisões por si mesmo, a escolher quais são, de facto, as suas prioridades.
Ah, se ao menos os costumes fossem menos brandos!...
[Também publicado em PNETmulher]
© Marta Madalena Botelho