O assunto é recorrente. No início de cada ano lectivo, recoloca-se a questão: deve ou não pôr-se termo às praxes académicas? Falamos, claro, da praxe académica que pode ser sucintamente definida como um conjunto de práticas, usos e tradições a que se sujeitam os estudantes que acabam de ingressar na universidade (vulgo «caloiros») por imposição dos alunos que já lá andam (vulgo «doutores»).
Começo por fazer uma declaração de interesses: fui estudante universitária (em Coimbra), fui «pela praxe», e praxei, mas já que se impõe a verdade absoluta dos factos, importa ainda dizer que apesar de ter sido «pela praxe», nunca fui praxada. Valeu-me a sempre providencial «protecção de sangue» da minha irmã ou, quando não foi isso, a minha distinta lata que me levava ao atrevimento de me fazer passar por «doutora» quando ainda era caloira. Nunca menti dizendo ser o que não era, mas respondi duas ou três vezes com um «O que é que tu achas?» em tom intimidatório a algumas «doutoras» que queriam saber se eu era caloira. Era remédio santo para me deixarem em paz.
Ainda assim, se tivesse sido praxada, não teria alterado a minha posição em face da praxe. Não querendo parecer parcial mas estando consciente desse risco, continuo ainda hoje a defender que a praxe coimbrã é diferente. Em primeiro lugar, em Coimbra há segregação de géneros na praxe: «doutor» só praxa caloiro e «doutora» só praxa caloira. Em segundo lugar, há (ou, pelo menos, no meu tempo havia) um Concílio de Veteranos muitíssimo atento ao que se vai fazendo e que não tem (pelo menos, no meu tempo não tinha) pejo nenhum em punir «doutores» que violem o Código da Praxe. Em terceiro lugar há naquela Academia um profundo respeito pelo caloiro, a quem o «padrinho» ou a «madrinha» devem proteger de todas as tentativas de humilhação, punição desmesurada e abusos. E vigora até a proibição de pintar os caloiros, sob o lema «os caloiros não são palhaços».
Desconfio que se tivesse estudado em Évora, seria anti-praxe. E quem diz Évora, diz Bragança e umas quantas outras cidades onde a praxe não é praxe nem é nada. E por um simples motivo: defendo quem é anti-praxe e eu mesma seria anti-praxe em todas as academias em que não há respeito pela dignidade humana e onde a praxe é vista como o passaporte para humilhar o outro e provocar-lhe sofrimento físico e psicológico. Em face disto, os argumentos sempre prontos da tradição e da integração são facilmente rebatíveis. A verdadeira praxe nada tem que ver com subjugação, humilhação e desrespeito, mas antes com acolhimento, boa-disposição e, acima de tudo, liberdade de adesão ou não sem represálias. Quanto à integração diga-se já que ela não se faz, certamente, recorrendo a indescritíveis rituais de gosto discutível, para não lhe chamar soez, como sejam o rastejar na lama, beber urina, simular orgasmos ou andar pela rua com palavras ordinárias escritas nas camisolas e na cara.
As tradições não podem ser estáticas e o costume não pode ser invocado para legitimar aquilo que nem sequer corresponde aos usos praxísticos, como temos vindo a observar em Portugal. Há cem anos já havia praxe, mas não havia sete noites de Queima nem milhares de litros de cerveja para consumir sem regro e, no entanto, ninguém parece importunado com as alterações que a festa de Maio sofreu, com óbvio sacrifício da tradição. Se assim é, parece-me claro que não pode invocar-se a manutenção da tradição para umas coisa dispensando-a para outras.
A verdade, sem mais, é que o tempo passa e as coisas, felizmente, mudam (o que não é novidade nenhuma, bem sei, pois Camões já o disse com brilhantismo há quase cinco séculos). Não pode comparar-se a pressão existente hoje sobre os estudantes universitários com aquela que existia no tempo em que um Hilário estudante de Medicina conseguia conciliar o curso com os fados e as guitarradas à janela das donzelas. O mercado pressiona, a família pressiona, a economia pressiona, a auto-estima pressiona. O mesmo se diga em relação ao tempo de estudo. Quantos foram os que fizeram o curso «por correspondência», deslocando-se às faculdades apenas para realizar os exames? Inúmeros, como se sabe. E depois de Bolonha, continua a ser assim? Claro que não. A avaliação contínua obriga a abandonar a concepção do ano lectivo em picos de produtividade e estudo (as épocas de frequências) e arrasta consigo um modelo de aplicação a tempo inteiro. Cabe, então, perguntar: e a praxe, o que fez para se adaptar a estas mudanças? A resposta é óbvia: nada.
O assunto dava pano para mangas e não se compadece com o espaço de uma crónica, mas é incontornável dedicar umas palavras à tão falada integração. Longe vão os tempos em que os caloiros eram o fiel retrato do saloio que chegava à cidade universitária montado num burriquito e com uma malinha na mão, ignorante sobre tudo o que se passava fora da sua aldeia e ávido de descobrir um novo mundo que se abria com o ingresso na faculdade. Os caloiros de hoje não precisam de quem os leve a correr a cidade cantando e dançando, não precisam de quem os leve às tascas para apanharam a primeira bebedeira (que aconteceu já nos tempos de liceu) e muito menos precisam de meios de integração que se limitem a desconsiderá-los e a sujeitá-los a tratamentos degradantes. A integração de que tanto se fala deveria passar pela praxe para aqueles a quem ela satisfaça e por alternativas à praxe, com diversas vertentes (cultural, académica, desportiva ou de mero lazer) para aqueles que a ela não queiram aderir (e aqui deixo uma crítica também aos que se proclamam anti-praxe: não basta que nos queixemos do que existe porque não nos agrada, também é necessário criar alternativas e contribuir activamente para a mudança).
Discutir se a praxe deve ou não fazer-se parece-me uma questão de segundo plano. Antes de tudo, julgo, deveria discutir-se a praxe que temos, se ela serve os objectivos a que se propõe, se ela tem de facto as vantagens que se arroga. Depois desta reflexão cumprida, então sim, talvez estejamos em condições de optar por mantê-la ou não, consoante se conclua ou não que a sua existência continua, de facto, a valer a pena.
[Também publicado em
PnetMulher]
© Marta Madalena Botelho