18.5.08

um pássaro no chão do meu terraço

Até ao final da tarde de sábado, eu não tinha escolhido o tema para esta crónica. Não tinha, sequer, alinhavado uma ideia que fosse. Absolutamente nada. Como acontece sempre que tenho um prazo para concretizar uma tarefa a aproximar-se e não estou a ver qual seja a solução para o meu problema, descalcei os sapatos, arregacei os jeans e fui para o terraço estender-me ao sol debaixo do céu azul. As nuvens pareciam mover-se em câmara lenta, o que até nem é muito vulgar para estes lados onde o vento, para além de torturar as pessoas que, como eu, têm os cabelos compridos, costuma empurrar o algodão celeste a todo o vapor. Só isto já fazia antever que algo de especial haveria de acontecer. E aconteceu mesmo.

Fechei os olhos por alguns instantes. Apesar da hora, a luz do sol ainda era intensa e a claridade incomodava-me. Deixei tombar a cabeça na espreguiçadeira e fiquei assim por uns instantes, até ficar tudo vermelho por dentro das pálpebras, como se uma mancha de sangue alastrasse à minha frente. Voltei o rosto de lado e abri os olhos. À minha frente, no chão, um passarinho. Calculei que estivesse apenas a fazer uma breve pausa no seu voo. Olhei de novo para cima. Acima da minha casa mas, especialmente, sobre o meu terraço esvoaçavam outros pássaros igual àquele que ali havia pousado, e uma mão cheia de gaivotas. «Tempestade no mar», pensei, e cerrei os olhos. Quando tudo voltou a arder de vermelhidão, abri-os e olhei novamente em direcção ao pássaro parado no meu terraço. Ali continuava ele, inerte, no mesmíssimo sítio.

Ergui-me e caminhei na sua direcção, convicta de que, assim que eu me aproximasse, ele levantaria voo. Mas não. Agachei-me junto dele, ele nem se moveu. Pude ver, então, que respirava descompassadamente, que parecia demasiadamente inchado e que fitava sempre o mesmo ponto, sem dar por nada à sua volta. Fiquei ali, a seu lado, durante algum tempo. Aproximei-me até quase lhe tocar. A cabeça começava a pender-lhe para um dos lados e às vezes fechava os olhos com muita força. Foi então que me ocorreu que talvez aquele passarinho estivesse em agonia.

Deixei-o em paz. Voltei para a minha espreguiçadeira e deitei-me, voltada para ele. Tinha muito em que pensar. Afinal de contas, ainda não tinha tema para a crónica. De onde eu estava, já quase não via a cabeça do pássaro. Fechei os olhos por instantes mas estranhei não ver a mancha vermelha. De repente, o sol havia ficado encoberto. Procurei, então, o passarinho frágil, indefeso, moribundo que havia deixado no chão do meu terraço. Olhei na sua direcção, mas ele já não estava lá. Havia voado, talvez, ou então foi colhido por alguma mão invisível que o resgatou.

Não sei porquê, aquele pássaro fez questão de pousar no meu terraço para despedir-se de mim. E também não sei porquê, não quis morrer naquele chão. Por obra do acaso, ou não, cruzei-me com ele nesta sua última viagem. E ele, corajoso, não fugiu de mim.

Foi então que percebi que o pássaro não viera só para eu ter tema para esta crónica. Viera também, e principalmente, para invocar toda a gente que nunca me disse adeus antes de partir da minha vida e tanta outra que optou por fugir em vez de ficar. Gente de quem senti, naquele instante, saudades. Gente que acabou por desaparecer, assim, entre um fechar e abrir de olhos, enquanto o sol se escondia atrás das nuvens num final de tarde estranhamente sem vento.

[Também publicado em PNETcrónicas.]

© Marta Madalena Botelho

eu

[m.m. botelho] || Marta Madalena Botelho
blogues: viagens interditas [textos] || vermelho.intermitente [textos]
e-mail: viagensinterditas @ gmail . com [remover os espaços]

blogues

os meus refúgios || 2 dedos de conversa || 30 and broke || a causa foi modificada [off] || a cidade dos prodígios || a cidade surpreendente || a curva da estrada || a destreza das dúvidas || a dobra do grito || a livreira anarquista || a mulher que viveu duas vezes || a outra face da cidade surpreendente || a minha vida não é isto || a montanha mágica || a namorada de wittgenstein || a natureza do mal || a tempo e a desmodo || a terceira noite || as folhas ardem || aba da causa || adufe || ágrafo || ainda não começámos a pensar || albergue dos danados || alexandre soares silva [off] || almocreve das petas [off] || animais domésticos || associação josé afonso || ana de amsterdam || antónio sousa homem || atum bisnaga || avatares de um desejo || beira-tejo || blecaute-boi || bibliotecário de babel || blogtailors || blogue do jornal de letras || bolha || bomba inteligente || cadeirão voltaire || café central || casadeosso || causa nossa || ciberescritas || cibertúlia || cine highlife || cinerama || coisas do arco da velha || complexidade e contradição || córtex frontal [off] || crítico musical [off] || dados pessoais || da literatura || devaneios || diário de sombras || dias assim || dias felizes || dias im[perfeitos] || dias úteis || educação irracional || entre estantes || explodingdog > building a world || f, world [guests only] || fogo posto || francisco josé viegas - crónicas || french kissin' || gato vadio [livraria] || guilhermina suggia || guitarra de coimbra 4 [off] || húmus. blogue rascunho.net || il miglior fabbro || imitation of life || indústrias culturais || inércia introversão intusiasmo || insónia || interlúdio || irmão lúcia || jugular || lei e ordem || lei seca [guests only] || leitura partilhada || ler || literatura e arte || little black spot || made in lisbon || maiúsculas [off] || mais actual || medo do medo || menina limão || menino mau || miss pearls || modus vivendi || monsieur|ego || moody swing || morfina || mundo pessoa || noite americana || nuno gomes lopes || nu singular || o amigo do povo || o café dos loucos || o mundo de cláudia || o que cai dos dias || os livros ardem mal || os meus livros || oldies and goldies || orgia literária || ouriquense || paulo pimenta diários || pedro rolo duarte || pequenas viagens || photospathos || pipoco mais salgado || pó dos livros || poesia || poesia & lda. || poetry café || ponto media || poros || porto (.) ponto || postcard blues [off] || post secret || p.q.p. bach || pura coincidência || quadripolaridades || quarta república || quarto interior || quatro caminhos || quintas de leitura || rua da judiaria || saídos da concha || são mamede - cae de guimarães || sem compromisso || semicírculo || sem pénis nem inveja || sem-se-ver || sound + vision || teatro anatómico || the ballad of the broken birdie || the sartorialist || theoria poiesis praxis || theatro circo || there's only 1 alice || torreão sul || ultraperiférico || um amor atrevido || um blog sobre kleist || um voo cego a nada || vida breve || vidro duplo || vodka 7 || vontade indómita || voz do deserto || we'll always have paris || zarp.blog

cultura e lazer

agenda cultural de braga || agenda cultura de évora || agenda cultural de lisboa || agenda cultural do porto || agenda cultural do ministério da cultura || agenda cultural da universidade de coimbra || agenda de concertos - epilepsia emocional || amo.te || biblioteca nacional || CAE figueira da foz || café guarany || café majestic || café teatro real feitorya || caixa de fantasia || casa agrícola || casa das artes de vila nova de famalicão || casa da música || centro cultural de belém || centro nacional de cultura || centro português de fotografia || cinecartaz || cinema 2000 || cinema passos manuel || cinema português || cinemas medeia || cinemateca portuguesa || clube de leituras || clube literário do porto || clube português artes e ideias || coliseu do porto || coliseu dos recreios || companhia nacional de bailado || culturgest || culturgest porto || culturporto [rivoli] || culturweb || delegação regional da cultura do alentejo || delegação regional da cultura do algarve || delegação regional da cultura do centro || delegação regional da cultura do norte || e-cultura || egeac || era uma vez no porto || europarque || fábrica de conteúdos || fonoteca || fundação calouste gulbenkian || fundação de serralves || fundação engenheiro antónio almeida || fundação mário soares || galeria zé dos bois || hard club || instituto das artes || instituto do cinema, audiovisual e multimédia || instituto português da fotografia || instituto português do livro e da biblioteca || maus hábitos || mercado das artes || mercado negro || museu nacional soares dos reis || o porto cool || plano b || porto XXI || rede cultural || santiago alquimista || são mamede - centro de artes e espectáculos de guimarães || sapo cultura || serviço de música da fundação calouste gulbenkian || teatro académico gil vicente || teatro aveirense || teatro do campo alegre || theatro circo || teatro helena sá e costa || teatro municipal da guarda || teatro nacional de são carlos || teatro nacional de são joão || teatropólis || ticketline || trintaeum. café concerto rivoli

leituras e informação

365 [revista] || a cabra - jornal universitário de coimbra || a oficina [centro cultural vila flor - guimarães] || a phala || afrodite [editora] || águas furtadas [revista] || angelus novus [editora] || arquitectura viva || arte capital || assírio & alvim [editora] || associação guilhermina suggia || attitude [revista] || blitz [revista] || bodyspace || book covers || cadernos de tipografia || cosmorama [editora] || courrier international [jornal] || criatura revista] || crí­tica || diário de notícias [jornal] || el paí­s [jornal] || el mundo [jornal] || entre o vivo, o não-vivo e o morto || escaparate || eurozine || expresso [jornal] || frenesi [editora] || goldberg magazine [revista] || granta [revista] || guardian unlimited [jornal] || guimarães editores [editora] || jazz.pt || jornal de negócios [jornal] || jornal de notí­cias [jornal] || jusjornal [jornal] || kapa [revista] || la insignia || le cool [revista] || le monde diplomatique [jornal] || memorandum || minguante [revista] || mondo bizarre || mundo universitário [jornal] || os meus livros || nada || objecto cardí­aco [editora] || pc guia [revista] || pnethomem || pnetmulher || poets [AoAP] || premiere [revista] || prisma.com [revista] || público pt [jornal] || público es [jornal] || revista atlântica de cultura ibero-americana [revista] || rezo.net || rolling stone [revista] || rua larga [revista] || sol [jornal] || storm magazine [revista] || time europe [revista] || trama [editora] || TSF [rádio] || vanity fair [revista] || visão [revista]

direitos de autor dos textos

Os direitos de autor dos textos publicados neste blogue, com excepção das citações com autoria devidamente identificada, pertencem a © 2008-2019 Marta Madalena Botelho. É proibida a sua reprodução, ainda que com referência à autoria. Todos os direitos reservados.

direitos de autor das imagens

Os direitos de autor de todas as imagens publicadas neste blogue cuja autoria ou fonte não sejam identificadas como pertencendo a outras pessoas ou entidades pertencem a © 2008-2019 Marta Madalena Botelho. É proibida a sua reprodução ainda que com referência à autoria. Todos os direitos reservados.

algumas notas importantes sobre os direitos de autor

» O âmbito do direito de autor e os direitos conexos incidem a sua protecção sobre duas realidades: a tutela das obras e o reconhecimento dos respectivos direitos aos seus autores.
» O direito de autor protege as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas.
» Obras originais são as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, qualquer que seja o seu género, forma de expressão, mérito, modo de comunicação ou objecto.
» Uma obra encontra-se protegida, logo que é criada e fixada sob qualquer tipo de forma tangível de modo directo ou com a ajuda de uma máquina.
» A protecção das obras não está sujeita a formalização alguma. O direito de autor constitui-se pelo simples facto da criação, independentemente da sua divulgação, publicação, utilização ou registo.
» O titular da obra é, salvo estipulação em contrário, o seu criador.
» A obra não depende do conhecimento pelo público. Ela existe independente da sua divulgação, publicação, utilização ou exploração, apenas se lhe impondo, para beneficiar de protecção, que seja exteriorizada sob qualquer modo.
» O direito de autor pertence ao criador intelectual da obra, salvo disposição expressa em contrário.