28.9.09

outras impressões sobre as eleições legislativas 2009

1. Pela 1.ª vez em Portugal, um partido que é reconduzido no governo passou de uma situação de maioria absoluta para uma de maioria relativa. Será interessante assistir aos esforços de José Sócrates para ser mais dialogante, menos irascível e menos arrogante.

2. Todos os partidos reclamaram para si o estatuto de responsáveis pela retirada da maioria absoluta ao PS. Parece-me excessivo que se possa dizer isso, já que os portugueses consideraram que nenhum outro partido estava à altura da tarefa de substituir o PS à frente dos destinos do país. Na verdade, quem retirou a maioria absoluta ao PS foram os portugueses e não os partidos. O povo a deu, o povo a tirou: tão simples quanto isto.

3. São lamentáveis as declarações de certos sociais-democratas que criticam Ferreira Leite. Manuela Ferreira Leite só perdeu em relação a um aspecto: ganhar eleições. De resto, o PSD cumpriu dois objectivos: teve mais votos e conseguiu mais deputados. Será mesmo que outro líder teria conseguido outros resultados? E mais: será que a responsabilidade pela perda das eleições é só de Manuela Ferreira Leite ou deve-se também a outros factores do PSD e, até, a factores externos ao partido? Em todo o caso, é tempo de reunir esforços em torno de um novo combate eleitoral (as Autárquicas, que decorrerão dentro de duas semanas). Se outros motivos não houvesse, sempre o bom-senso recomendaria que os ataques não viessem do interior do próprio partido, muito menos a meio de um ciclo eleitoral do qual o PSD (e Manuela Ferreira Leite) ainda pode(m) tirar bons proventos.

© Marta Madalena Botelho

os resultados das eleições legislativas 2009 em frases de 140 caracteres (mais coisa, menos coisa)

1. Ironicamente, o vencedor destas eleições é também o perdedor: o PS perdeu a maioria absoluta e tem menos 24 deputados, dados que não podem ser ignorados.

2. Sócrates adjectivou a vitória do PS de "extraordinária". O PS perdeu meio milhão de votos. O que é que isso tem de extraordinário?

3. O PSD ganhou 6 deputados e ganhou votantes. Só não chegou ao governo. Não diria que perdeu, diria que frustrou as suas expectativas.

4. O CDS-PP é o único que pode cantar vitória em todas as vertentes: mais votos, mais deputados, subida de 4.º para 3.º partido mais votado.

5. A CDU ficou longe de um bom resultado. Teve mais votos e mais deputados, mas passou de 3.ª para 5.ª força política e foi o partido que menos cresceu.

6. O BE duplicou o número de deputados, mas fica com duas espinhas atravessadas na garganta: não chegou aos 10% nem passou a 3.º partido mais votado, cedendo esse estatuto a um partido de direita.

Em suma: uma votação boa para o CDS, menos boa para PSD, CDU e BE e (eu diria) má para o PS (apesar de ter sido o partido mais votado).

Nota: Nisto, como em tudo o resto, a "doutrina" divide-se. Estas são só as minhas impressões, a minha análise pessoal, tentando ser tão imparcial quanto possível.

© Marta Madalena Botelho

24.9.09

passeio alegre

Lá vão, lado a lado, mão na mão, caminhando a par ao longo do Passeio Alegre. Olham de vez em quando o mar, sorriem muito entre si, encostando as cabeças, trocando mimos. Conhecem-se há cinco anos e namoram há quatro. Na semana passada, dizia-me ela ter encontrado o homem da sua vida. Ele, logo no início da relação, confidenciou-me que lhe custava acreditar que tudo pudesse ser tão perfeito, tão pacífico, tão intenso.

Atravessam a estrada, cumprimentam-me entusiasticamente (já não nos víamos há uns tempos) e contam-me que estão, finalmente – advérbio usado por eles mesmos –, noivos. A notícia deixa-me feliz e, simultaneamente, preocupada: por um lado, fico satisfeita por saber que mais um par de pessoas (re)encontrou a tranquilidade amorosa depois de relacionamentos falhados; por outro lado, preocupa-me a toilette para a cerimónia do «nó», agora que as estações já não são o que eram e no Outono há dias mais quentes do que em Agosto.

Quando seguiram caminho, dei por mim a pensar com os meus botões, a propósito do casamento: nestas coisas do amor é tudo tão simples que ninguém resiste a complicar.

© [m.m. botelho]

17.9.09

primeira página

Esta é a indescritível primeira página do Jornal de Notícias de hoje: ver imagem. Nela aparece, em primeiro plano, um dos feridos no acidente que ocorreu ontem em Penafiel (a jovem com a cabeça envolta numa ligadura). Em segundo plano surge o inenarrável: a carrinha onde seguiam as sete jovens vítimas e, sentadas no lugar do condutor e do passageiro, duas das vítimas mortais, na exacta posição em que ficaram após o acidente, envoltas em poças de sangue.

O que parece inacreditável não é o facto de alguém ter fotografado o momento. Ao fotojornalismo devemos (e agradecemos) a denúncia de muitas situações e a perpetuação de muitas imagens que ninguém deverá esquecer. O que choca é o facto de esta fotografia - especificamente esta fotografia - ter aparecido na primeira página do jornal.

Imagens do género são geralmente usadas para denunciar situações, para fazer alertas, para mostrar aquilo que às vezes as palavras não são capazes de concretizar. Neste caso, questiona-se o que se pretende transmitir. Se é o horror do acidente, para tanto bastaria uma imagem dos veículos, suficientemente danificados para dar a entender a gravidade e a proporção do embate. Mas não. Estão lá também os corpos ensanguentados de duas das vítimas mortais. Pergunta-se: com que propósito?

Esta primeira página do Jornal de Notícias (bem como esta ligação para a página online do jornal, onde esta e outras fotografias do acidente podem ser vistas em maior resolução) evidencia total desconsideração pela tragédia que constituiu este acidente, particularmente lamentável pelo facto de as vítimas serem todas muito jovens. Essa desconsideração não tem que ver com a dor dos familiares, mas sim com a insensibilidade demonstrada pelo uso de uma imagem onde aparecem duas vítimas mortais ainda encarceradas, o que acaba por redundar numa instrumentalização daqueles dois seres humanos que ali aparecem como objectos inanimados, como se de coisa de menor importância se tratasse.

Pergunto-me onde terá ficado o bom senso quando esta imagem do acidente (atendendo a que o jornal tinha outras) foi a escolhida para figurar na primeira página. Na gaveta, certamente.

[Também publicado em PnetCrónicas.]

© Marta Madalena Botelho

«maybe not»

«Maybe Not», de Cat Power, é uma canção cuja música é construída a partir de (apenas) quatro acordes, na mesma sequência de ritmo igual e constante, ao som solitário do piano. E, contudo, a melodia não se torna repetitiva para o ouvinte, porque sobre ela está a mensagem da letra, que prende do princípio ao fim. A tudo isto soma-se a voz inigualável de Cat Power, pincelada por ela mesma também em «backing vocals» com passagens, diga-se, de uma beleza rara e inesperada. «Maybe Not» não é só uma grande canção; é um hino à simplicidade e ao desejo.

© Marta Madalena Botelho


Cat Power. «Maybe not».
Do álbum «You are free» [2000].

there's a dream that I see
I pray it can be
look cross the land
shake this land
a wish or a command

a dream that I see
don't kill it, it's free
you're just a man
you get what you can
we all do what we can

so we can do just one more thing
we can all be free
maybe not in words
maybe not with a look
but with your mind

listen to me
don't walk that street
there's always an end to it
come and be free
you know who I am
we're just living people
we won't have a thing
so we've got nothing to lose
we can all be free
maybe not with words
maybe not with a look
but with your mind

you've got to choose
a wish or command
at the turn of the tide
is withering thee
remember one thing
the dream you can see
pray to be, shake this land

we all do what we can
so we can do just one more thing
we won't have a thing
so we've got nothing to lose
we can all be free
maybe not with words
maybe not with a look
but with your mind
but with your mind

15.9.09

hoje (e basta)

Daqui a uns tempos (anos, talvez), sei-o bem, eu vou querer voltar aqui e recordar que hoje foi o primeiro dia de qualquer coisa. Eu sei que vou querer, portanto, o melhor é registar aqui que foi hoje que uma espécie de montanha russa começou. Quando voltar a ler estas linhas hei-de lembrar-me do que quero dizer com isto, portanto, não vale a pena escrever muito mais. Começou hoje (e basta).

© [m.m. botelho]

a "falta de sexo" e a falta de qualidade jornalística

Foi publicada hoje no jornal «Correio da Manhã» uma notícia com o título seguinte: «Casal recebe 667 mil euros por falta de sexo». O mesmo título foi adoptado pelo jornal «i» para noticiar o mesmo assunto.

A notícia refere-se ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 08/09/2009. Tal acórdão debruça-se sobre o direito de indemnização decorrente da incapacidade parcial permanente de uma mulher que lhe foi causada por um acidente de viação.

Para se compreender a decisão, antes de a comentar (como pretende fazer a notícia), importa ter presente que do referido acidente de viação resultaram, entre outros, os seguintes danos, que o Tribunal deu como provados, e cito (sublinhados meus):

«(...) 32) Em virtude das lesões sofridas passou à situação de apatia total.
33) Perdeu a força do seu braço direito, sendo dextra.
34) Passou a padecer de contínuas quedas de cabelo.
35) A não poder caminhar porque lhe incha a perna direita.
36) Ficou a padecer de dores nas costas e no corpo.
37) O corpo da autora ficou marcado com diversas cicatrizes na perna, braço e cotovelo direitos.
38) Apresenta uma cicatriz no ombro direito.
39) A Autora perde a noção do lugar onde se encontra, ao ponto de se perder das pessoas.
40) Serve-se de qualquer lugar como se de um quarto de banho se tratasse.
41) Acende o fogão, permitindo fugas de gás e queima as próprias roupas da casa.
42) Em virtude do embate deixou de confeccionar as refeições para si e para a sua família e de arrumar a casa.
43) Esconde-se da filha P... C... quando a mesma vem de fim-de-semana, tratando-a às vezes como uma intrusa.
44) Não presta a atenção e os cuidados ao filho P..., que frequenta o ensino secundário, e a quem afasta da sua presença.
45) Quando tem períodos de lucidez, começa a pensar em toda a situação que lhe adveio, recolhendo-se em choro compulsivo, irritação e gritaria.
46) A situação descrita causa à autora transtornos, incómodos, tristeza e ansiedade.
47) A Autora terá de ser acompanhada por profissionais de saúde das espe­cialidades de neurologia, psiquiatria, fisioterapia, urologia e oftalmologia e demais especialidades que advirão da incerteza do seu estado físico. (...)
50) À data do embate, a autora era saudável e alegre, vivia em harmonia com o marido, filhos e demais pessoas do meio e era voluntariosa no trabalho.
51) Era capaz de tratar de si própria e acompanhava a educação dos filhos, mantendo-se sempre atenta ao futuro destes.
52) Projectava a construção da sua casa e acompanhava a carreira profissional do marido.
56) Como consequência do embate a autora ficou com uma incapacidade permanente para o trabalho de 100%. (...)
60) A Autora e o Autor acompanhavam-se mutuamente no dia a dia, com mani­festações de carinho, solidariedade, amizade e boa e sã convivência.
61) Desde a data do embate a autora rejeita toda e qualquer relação sexual, seja pelas dores que sente, seja pela falta de reacção a qualquer estímulo.
63) A autora nasceu em 17.11.62 (certidão do assento de nascimento de folhas 120). (...)»
.

Como facilmente se deduz, a questão sobre a qual o STJ se debruçou foi a da impossibilidade da vítima deste acidente, por causa desse mesmo acidente, cumprir o débito conjugal (ou seja, ter relações sexuais com o cônjuge) que, como é consabido, é um dever decorrente do contrato de casamento civil.

Ao contrário do que o lamentável título da notícia do «Correio da Manhã» pretende dar a entender, o STJ não se pronunciou sobre a "falta de sexo" entre o casal, mas sim sobre a impossibilidade de qualquer tipo de relação sexual entre o casal na sequência dos danos causados por aquele referido acidente de viação.

O título do «Correio da Manhã» tem, claramente, dois propósitos: por um lado, pretende criar uma falsa polémica em torno de uma decisão judicial; por outro lado, pretende descredibilizar não só esta decisão, em particular, mas também a postura do STJ em relação às questões que o próprio «Correio da Manhã», assumindo uma evidente perspectiva reducionista da matéria, conota com «dinheiro» e «sexo».

O título da notícia dá a entender que o STJ terá atribuído uma indemnização (relativamente elevada) a um casal simplesmente porque... tinham «falta de sexo». Ora, na realidade, da leitura do acórdão resulta que essa indemnização se encontra plenamente justificada por se destinar à reparação dos danos reflexos causados por um acidente de viação do qual resultaram sequelas permanentes que impedem a vítima e o seu cônjuge de realizarem plenamente o projecto de «comunhão de vida» que serve de base ao casamento civil (e que inclui a prática de relações sexuais entre os cônjuges).

Deste título não pode dizer-se apenas que é tendencioso e incorrecto. Na verdade, quase roça o insultuoso:
1. em relação ao casal em questão, que vê um dolorosíssimo aspecto da sua vida íntima assim levianamente tratado pela imprensa;
2. em relação ao STJ e ao Relator do acórdão, o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Dr. Nuno Cameira que, refira-se, é um Juíz Conselheiro de elevado mérito, cujas decisões são reconhecidamente tidas como justas, sensatas e ponderadas;
3. em relação à justiça portuguesa, pois o STJ é a última instância decisória e instrumentalizar deste modo as suas decisões poderá lesar o bom nome da instituição e, consequentemente, pôr em causa a justiça praticada;
3. e, finalmente, em relação ao leitor do «Correio da Manhã», que assim se vê induzido em erro por um jornalismo de péssima qualidade.

_________________

Nota: o presente texto foi remetido por e-mail à Direcção do «Correio da Manhã» em 15/09/2009.
O Exmo. Senhor Director do «Correio da Manhã» teve a amabilidade de responder em poucas horas. Uma vez que se tratou de uma comunicação pessoal, entendo não ser adequada a sua publicação no blogue, sendo certo que em nada violarei o devido sigilo ao esclarecer que, alegando a necessidade de síntese nos títulos, saiu em defesa do título da notícia, rejeitando a qualificação «jornalismo de má qualidade».

glossocátoco

Glossocátoco
do grego glóssokatokhos, -ou
substantivo masculino

Na medicina: instrumento usado para manter a boca aberta e a língua baixa, a fim de examinar a boca e a garganta. O mesmo que «abaixa-língua».

11.9.09

«kronos»

Tenho ouvido «Kronos», o último trabalho de Cristina Branco. É uma das sonoridades mais interessantes que ouvi em 2009 e só posso lamentar não ter dado a esta gravação a atenção que ela merece antes. Obviamente, quem ficou a perder fui eu.


Uma das «canções» do álbum chama-se «Tango».

Um tango
que é um fado
que é uma canção
que é um poema
que é simplesmente magnífico.


Cristina Branco. «Tango».
Do álbum «Kronos» [2009].

© [m.m. botelho]

10.9.09

ela, que (aparentemente) quer ser como os demais

Quando, há semanas, venceu a prova dos 800 metros nos Campeonatos do Mundo de Atletismo, em Berlim, a sul-africana Caster Semenya voltou para si os holofotes não só pelo feito impressionante, mas também porque o seu aspecto (e as suas capacidades desportivas) pareceram demasiado másculas a algumas pessoas, nomeadamente, aos dirigentes da Federação Internacional de Atletismo (IAAF), que decidiram submeter o género de Semenya a análise (alegadamente devido a dúvidas suscitadas sobre a sua identidade sexual) o que, independentemente dos resultados a que venha a conduzir, é merecedor de total repúdio, por atentar contra a dignidade da atleta.

Agora, sob a pressão desses mesmo holofotes, Semenya, senhora de uns evidentemente ingénuos 18 anos, sujeita-se a envergar um vestido preto sem mangas, a pentear-se e maquilhar-se para aparecer na capa de uma revista do seu país ao lado de um título que tem tanto de insultuoso como de desprezível: «Wow, look at Caster now!» («Uau, vejam como está a Caster agora!») (fonte).


Perante isto cabe perguntar se serão as roupas, os penteados e as maquilhagens o que importa numa pessoa. Questiono-me se será Semenya "mais" ou "menos" mulher (fechando os olhos ao ridículo que é pensar-se que alguém possa ser "mais" ou "menos" mulher) consoante use vestido ou fato-de-treino. Gostava de saber o que leva Semenya a sujeitar-se a este tipo de instrumentalização, tal como gostava de saber o que passa pela cabeça dos responsáveis por esta revista para a submeterem a este tratamento humilhante. E ainda me resta uma dúvida: porque é que Semenya, uma atleta fora de série, que alcançou feitos até agora únicos, cede tão despudoradamente às pressões dos padrões convencionais, do politicamente correcto, da homogenia visual e comportamental? Afinal de contas, o que leva Semenya a sentir esta necessidade de justificação tão forte, ao ponto de a fazer suprimir a sua individualidade? Por que razão Semenya, a quem, pelo seu talento desportivo, foi dada a hipótese de ser diferente de todos os outros, quer ser enfadonhamente como os demais?

Todas estas perguntas poderão muito bem estar mal-formuladas. Talvez não seja Semenya, que sempre viveu a sua vida com o aspecto que entendeu (tendo afirmado que aceitou fazer estas fotografias não para provar nada, mas apenas para se divertir), que ser como os demais. Muito provavelmente, são os demais que querem que ela seja como eles. No entanto, Semenya comete o mais lamentável dos erros: permitir que tal aconteça.

Adenda [em 11.09.2009]

Os testes requeridos pela IAAF concluíram que Caster Semenya é portadora de uma deficiência cromossomática apresentando, simultaneamente, características masculinas e femininas. Semenya não tem útero nem ovários e possui testículos ocultos internamente. É, por isso, do ponto de vista clínico, considerada pseudo-hermafrodita. O facto de ter testículos ocultos justifica o resultado dos testes preliminares, nos quais apresentou níveis de testosterona três vezes superiores aos níveis padrão para os organismos femininos (fonte).
Como é óbvio, nada disto invalida o que deixei dito acima. Embora estes resultados possam produzir algum efeito no que toca à validação da obtenção do título de campeã do mundo da prova de 800 metros ou de futuras participações de Semenya em provas desportivas, em nada eles alteram as considerações que teci. Seja Semenya como for, continua a não ter de provar nada a ninguém, continua a ter o direito de se vestir e comportar do modo que entender que lhe é mais confortável, não precisando de assumir posturas mais ou menos "femininas" e sacramentadas por esteriótipos. Em suma, é um imperativo de dignidade que humana que lhe confere o direito ao respeito pela sua individualidade e pela sua singularidade, antes e acima de tudo.

© Marta Madalena Botelho

9.9.09

a proibição da venda de «A Verdade da Mentira» e a liberdade de expressão e de opinião: impressões

O livro «A Verdade da Mentira», de Gonçalo Amaral, que se debruça sobre o desaparecimento de Madeleine McCann, ocorrido em Maio de 2007 na Praia da Luz, no Algarve, vai ser retirado do mercado na sequência de uma decisão do Tribunal Cível de Lisboa que proíbe a venda da obra.


Em «A Verdade da Mentira», Gonçalo Amaral subscreve a tese de que os pais terão estado envolvidos no desaparecimento da menina inglesa, conclusão essencialmente ancorada no facto de os cães da PJ terem detectado odor a sangue e a cadáver no interior do apartamento de onde a criança desapareceu e no interior do veículo automóvel que os McCann alugaram já depois do desaparecimento.

Insatisfeitos com a publicação do livro em Portugal - e, muito provavelmente, tentando a todo o custo impedir que a obra fosse traduzida e publicada no estrangeiro, principalmente no Reino Unido - os McCann, em seu nome e em nome dos filhos (Madeleine incluída), intentaram um procedimento cautelar contra Gonçalo Amaral e as editoras Guerra e Paz, Editores, SA (do livro) e VC-Valentim de Carvalho Filmes, Audiovisuais (do vídeo entretanto realizado a partir daquela obra), quase dois anos após a publicação e a venda de 175 mil exemplares (só em Portugal).

Na sua decisão, o Tribunal acolheu a posição dos requerentes. Assim, de acordo com a sentença tornada pública hoje, ficam proibidas sob qualquer forma quaisquer expressões da teoria da morte da menina e ocultação do cadáver com envolvimento dos pais. O autor do livro e as editoras ficam proibidos de «procederem à citação, análise ou comentário expressos, verbalmente ou por escrito, de partes do livro ou do vídeo que defendam a tese da morte ou da ocultação do corpo», bem como de «procederem à reprodução ou comentário, opinião ou entrevista, onde tal tese seja defendida ou de onde possa inferir-se».

A decisão vai mais longe e não se limita a impedir a venda dos exemplares que restem ou novas edições daquela obra, proibindo igualmente a edição de «outros livros e/ou vídeos que defendam a mesma tese e que sejam destinados à comercialização ou divulgação por qualquer meio em Portugal». De modo a obstar a que quer o livro, quer o vídeo sejam publicitados no estrangeiro, o autor e as editoras estão também proibidos de vender os direitos sobre o livro e o vídeo (fonte).

Ora, em «A Verdade da Mentira», Gonçalo Amaral descreveu a investigação, enunciou as provas recolhidas e, com base nelas, elaborou uma tese e apresentou as suas próprias conclusões. Ou seja, poderá resumir-se este livro a um exercício livre de opinião, divulgada ao abrigo da liberdade de expressão reconhecida e garantida constitucionalmente entre nós.

No fundo, afigura-se que Gonçalo Amaral mais não faz do que emitir um parecer sobre aquilo que acredita ser o cenário mais provável para o desaparecimento de Madeleine. Segundo as impressões que colheu, crê que as provas apontam no sentido de que a criança terá morrido dentro do apartamento, colocando a hipótese de os pais poderem ter tido algum tipo de intervenção directa ou indirecta na ocultação do cadáver.

Não parece, pois, que daqui possa inferir-se que o ex-inspector afirma que são os pais os responsáveis pelo desaparecimento. Trata-se, tão somente, de uma construção mental com base na investigação efectuada, ou seja, um exercício de (livre) opinião sobre determinados factos.

Ao impedir a divulgação de qualquer opinião que estabeleça a conexão entre os McCann e o desaparecimento de Madeleine, o Tribunal acaba por coarctar a liberdade de expressão não só de Gonçalo Amaral, mas de todas as pessoas que cheguem à mesma conclusão. Ao proibir a publicação e divulgação em Portugal de quaisquer livros e/ou vídeos que defendam a mesma tese, o Tribunal está a limitar o direito a emitir opinião sobre determinados factos. Outra coisa não parece estar em causa senão a censura do que é pensado e expresso sobre o caso «Madeleine McCann» em Portugal.

Segundo o entendimento do Tribunal, trata-se de uma situação de conflito de direitos fundamentais: por um lado, o direito à liberdade de expressão de Gonçalo Amaral, por outro, os direitos de personalidade dos McCann. Nessa situação de conflito, entendeu o Tribunal deverem prevalecer os direitos de personalidade.

Todavia, importa apurar se é mesmo de uma questão de direitos fundamentais conflituantes que se trata, ou seja, é absolutamente essencial analisar se aqui estarão a ser prejudicados os direitos de personalidade dos McCann, já que dúvidas não existem de que o livro foi publicado ao abrigo da liberdade de expressão do seu autor.

É neste ponto que estou em discordância com a decisão do Tribunal. Limitando-se Gonçalo Amaral a expressar convicções pessoais sobre determinados factos que ocorreram, daí se limitando a tirar conclusões pessoais e não a fazer acusações, isto é, tendo-se Gonçalo Amaral limitado a emitir uma opinião devidamente fundamentada, afigura-se que, embora possa admitir-se que a situação seja desconfortável para os McCann, ela não é lesiva dos seus direitos de personalidade. Lesiva seria se as conclusões fossem despropositadas ou não fundamentadas; contudo, uma vez que o autor do livro elabora um raciocínio lógico e fundamenta as suas conclusões em factos, o que poderá dizer-se é que as conclusões poderão estar erradas, mas não que sejam gratuitas e, portanto, que tenham como propósito atingir os direitos fundamentais de personalidade dos McCann. [Com efeito, o objectivo de Gonçalo Amaral não é pôr em causa a honra e o bom nome dos McCann, mas sim esclarecer as circunstâncias do desaparecimento de Madeleine.]

A meu ver, diria que não foram, neste caso, violados os direitos fundamentais de personalidade dos McCann e que, ao invés, a decisão do Tribunal atenta contra a liberdade de expressão de Gonçalo Amaral.

A título de hipótese [meramente académica], e elevando a questão a extremos, atrevo-me a dizer que proibir a emissão de um exercício livre de opinião, de lógica e de argumentação como o que foi feito por Gonçalo Amaral é abrir a porta à admissibilidade de considerar lesiva dos direitos de personalidade, por exemplo, uma acusação deduzida pelo Ministério Público que venha a ser considerada improcedente por não provada. [No fundo, o que o Ministério Público faz quando acusa é um exercício de lógica tendo por base as provas recolhidas durante a investigação, raciocínio esse idêntico ao que Gonçalo Amaral faz no livro. Obviamente, as situações são apenas análogas e não idênticas, já que uma acusação reveste uma importância e um objectivo muito diferentes da mera opinião e, por outro lado, uma acusação é feita no exercício do poder judicial de uma magistratura, o que não sucede num mero exercício de opinião. A dignidade dos actos não é, pois comparável. Trata-se, repito, apenas de um exemplo levado a extremos e não de uma equiparação de situações, a qual não pode ser feita pelas razões invocadas.] Excessivo, talvez, mas possível, usando um raciocínio similar ao desta decisão judicial.

Uma vez que tudo indicia que Gonçalo Amaral e/ou as editoras interporão recurso desta decisão, vejamos se as instâncias superiores estão de acordo com a visão expressa na sentença da 1.ª instância. De todo o modo, resta saber se, havendo, pelo menos, oposição e seguindo o processo para julgamento, o Tribunal manterá a opinião ora expressa.

[Ressalva importante: Este texto não constitui, de nenhum modo, uma crítica à decisão judicial, já que a minha divergência de opinião se verifica em momento anterior ao da decisão propriamente dita. Com efeito, a diferença entre mim e o tribunal diz respeito à classificação desta situação como uma situação de «conflito de direitos fundamentais», que o tribunal considerou existir aqui e que eu creio não existir.
Se se considerasse ter havido aqui um conflito de direitos fundamentais seria forçoso concluir que o Tribunal decidiu bem ao sacrificar a liberdade de expressão perante o direito à honra e ao bom nome. Sucede que, neste caso, entendo não havido qualquer ofensa à honra e ao bom nome e, portanto, entendo que não há qualquer conflito de direitos fundamentais. É somente nesse sentido que refiro que a decisão surpreende: porque julgo não existir aqui o referido conflito.]


Nota 1: Texto editado em 18.09.2009. Os excertos a azul escuro e entre parênteses rectos foram aditados, por necessidade de esclarecimento dos aspectos neles focados.

Nota 2: A versão anterior aos aditamentos de 18.09.2009 foi gentilmente traduzida para língua por Joana Morais, a quem agradeço, e encontra-se publicada no seu site [ligação].
Fui posteriormente informada de que versão traduzida para inglês foi também publicada num site britânico [ligação].
Este texto foi, ainda, traduzido para espanhol e publicado no site «Hasta que se sepa la verdad» [ligação].

[Também publicado em PNETjuris].

© Marta Madalena Botelho

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» O âmbito do direito de autor e os direitos conexos incidem a sua protecção sobre duas realidades: a tutela das obras e o reconhecimento dos respectivos direitos aos seus autores.
» O direito de autor protege as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas.
» Obras originais são as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, qualquer que seja o seu género, forma de expressão, mérito, modo de comunicação ou objecto.
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» A obra não depende do conhecimento pelo público. Ela existe independente da sua divulgação, publicação, utilização ou exploração, apenas se lhe impondo, para beneficiar de protecção, que seja exteriorizada sob qualquer modo.
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