29.6.08

direitos "deles", deveres de todos

O tema foi lançado por Paulo Simões Mendes no PnetHomem. Uns dias depois, transitou para o PnetMulher pela mão de Paula Capaz. Se me dão licença, agora sou eu quem vai meter a colherada.

Felizmente, entre todos os colaboradores dos referidos sites impera a liberdade de opinião, de expressão, de comentário e, obviamente, de discordância. Delas pretendo fazer uso. Contudo, limitar-me-ei a fazê-lo na estrita medida em que sirvam para expressar a minha opinião em relação a este assunto que, penso, diz respeito a todos aqueles que se preocupam com os direitos das pessoas, de todas as pessoas.

Li atentamente os textos de ambos os distintos cronistas. Com o devido respeito, considero que o raciocínio expresso por Paula Capaz no seu texto «Desfiles e paradas» parte de vários pressupostos que estão errados, o mesmo se aplicando a alguns comentários que foram feitos quer a essa crónica, quer à crónica de Paulo Simões Mendes. Seguem as razões porque assim considero (em articulado, por defeito de profissão mas, acima de tudo, por facilidade de exposição).

1. Escreve Paula Capaz: «Que eu saiba, ser hetero ou gay, não é um direito, não se adquire nem se escolhe (...). Reclamar o direito a ser gay é uma redundância.». Ora, sucede que as marchas LGBT não têm como objectivo reclamar "o direito a ser gay". Eu confesso que nunca ouvi fosse quem fosse reclamar para si esse direito em lado nenhum. Ao contrário, para mim é clara a ideia de que as marchas LGBT são acções de protesto públicas, nas quais as pessoas (de todas as orientações sexuais) que nela participam reclamam o direito que os cidadãos LGBT têm a receber, por parte do Estado e da Lei, o mesmo tratamento (o que é dizer, os mesmos direitos) que tem qualquer cidadão que não seja LGBT. Ou seja, nas marchas LGBT reivindica-se o fim de todos os actos que estabeleçam diferenças entre os cidadãos com o fundamento único da sua orientação sexual.

2. O que as pessoas reclamam, portanto, é o direito a serem tratadas pela Lei, pelo Estado e pelos outros em condições de igualdade com os outros cidadãos, o que, como toda a gente sabe, não acontece a muitos níveis. São precisos exemplos? Eu dou alguns. Os cidadãos homossexuais não podem casar com a pessoa que amam, o que tem implicações a vários níveis: o parceiro nunca será herdeiro legítimo nas mesmas condições dos cônjuges, um parceiro não pode visitar o outro no hospital nas mesmas condições dos cônjuges, os casais de pessoas homossexuais não podem usufruir da aplicação do coeficiente conjugal em matéria de impostos, nem no que toca aos empréstimos bancários. Além disso, os parceiros homossexuais não podem fazer seguros de saúde familiares porque o Estado diz que eles não são uma família. Os casais constituídos por pessoas do mesmo sexo não podem adoptar. Do mesmo modo, não são beneficiários da procriação medicamente assistida. Uma mulher lésbica também não. E todas estas diferenças têm como único fundamento o quê? A orientação sexual dessas pessoas, ou melhor, o facto de elas não serem heterossexuais, o que é ainda mais esclarecedor. Serão precisos mais exemplos?

3. É muitíssimo recorrente este argumento que também Paula Capaz invoca no seu texto e que cito: «(...) uma parada gay assume uma forma carnavalesca e pouco digna quando pretende a demonstração da intimidade». Mas, então, cabe perguntar: acaso os afectos têm apenas uma dimensão interior, entre as quatro paredes de uma casa ou de um quarto? Os afectos não são, também eles, uma dimensão da existência das pessoas? Não têm, portanto, prospecção pública e social? As pessoas não se beijam e abraçam em público, não passeiam de mãos dadas, não usam alianças nos dedos, não apresentam o parceiro como "meu marido" e "minha mulher", não se comportam socialmente como um casal? A ideia de que a sexualidade do ser humano só se vive na intimidade é redutora e perniciosa. O casamento, por exemplo, é uma das manifestações legislativas, religiosas e sociais da sexualidade das pessoas – senão, mesmo, a mais expressiva –, e ninguém poderá negar isso. Por que razão, então, quando se fala em homo ou bissexualidade, se invoca que “isso” é para ser vivido na intimidade?

4. Quanto ao último parágrafo da crónica, no qual Paula Capaz escreve «Daí a minha indignação, repito, quando vejo alguns gays fazerem questão de falar de um assunto que nem devia ser objecto de discussão, um assunto tão natural quanto sair à noite para jantar fora», apenas dois apontamentos. O primeiro para dizer que concordo que ser homossexual, tal como ter olhos verdes, não se discute. Contudo, não creio que o assunto de que se fala seja o ser-se homossexual. Discute-se – e isso sim, é altamente discutível – é que alguém veja serem-lhe negados direitos apenas (e sublinho o apenas) porque é homossexual. O segundo apontamento versa a comparação invocada na crónica, pois não vislumbro o que tenha que ver «a bota com a perdigota». Talvez ninguém discuta jantares fora de casa porque, por exemplo, ninguém utiliza epítetos "simpáticos" como "paneleiro", "fressureira" ou "rabeta" para designar as pessoas que jantam fora de casa. Já para se referir os homossexuais... E "anedotas" sobre gente que janta no restaurante, alguém conhece? É que sobre homossexuais eu já ouvi um par delas. Talvez não seja por acaso que nunca em Portugal houve uma manifestação da extrema-direita contra as pessoas que jantam fora de casa, mas já houve pelo menos uma contra as pessoas homossexuais. Tudo isto para dizer que os assuntos não são comparáveis e compará-los, para além de parecer ingénuo, é reduzir ambos os temas ao âmbito do corriqueiro, quando não o são. Talvez jantar fora até seja algo trivial, mas, o que afecta diariamente a vida das pessoas não deve ser, não pode ser.

5. Por último, uma referência ao terceiro parágrafo do texto em causa. Diz Paula Capaz: «Percebo que se grite contra uma injustiça social, que se desça a avenida porque os salários são de miséria, que se faça greve porque não há pagamentos, que se use o luto porque somos escravizados, enfim, que se reclamem os direitos que nos são negados.». Então, pergunto: se «percebe» que se reclamem direitos que são negados seja por que meio for (e cito: «que se grite», «que se desça a avenida», «que se faça greve», «que se use o luto»), porque é que não é capaz de perceber que os homossexuais «gritem», «desçam a avenida» e, se preciso for, «usem o luto» se a Lei, o Estado e os outros, todos os dias, lhes negam direitos? Onde está a diferença, por exemplo, entre os professores, os estudantes universitários, os sindicalistas, os que passam recibo verde, os polícias e os LGBT quando descem avenidas empunhando cartazes, gritando palavras de ordem, desfilando com faixas e entoando slogans? Não estão todos eles a lutar pelos seus direitos? Não estão todos eles a defender aquilo em que acreditam? Não estão todos eles a mostrar ao Governo, ao País e ao Mundo que existem e que merecem respeito por parte de toda a gente? Não estão todos eles a fazer valer direitos das pessoas?

6. Em suma e concluindo: quer se trate de professores ou de LGBT, de maiorias ou de minorias, de marchas em luto ou envoltas em cores alegres e garridas, trata-se, em primeira instância, de pessoas, de direitos e da defesa da dignidade humana. Marchas de orgulho LGBT são, portanto, marchas de orgulho humano e, consequentemente, um assunto que diz respeito a toda a gente, sem excepção. A sua existência faz e fará todo o sentido enquanto essas pessoas, esses direitos e essa dignidade não forem integralmente respeitados.


[Também publicado em PNETmulher.]

© Marta Madalena Botelho

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