Gosto muito de escrever. Do acto de escrever, propriamente dito. De pegar na caneta e no papel e traçar letras. Por isso, também gosto muito de canetas e papéis. E de lápis. Gosto tanto de canetas, papéis e lápis que acho que posso dizer que são os meus objectos favoritos. Isto se é que se pode dizer que se tem objectos favoritos sem parecer muito ridículo.
Guardo meia dúzia de canetas e pequenos cadernos de anotações com muito carinho no meu coração e na minha memória. Alguns deles ocupam esse espaço não apenas porque me fascinam, mas também por causa das pessoas que mos ofertaram. Guardá-los religiosamente é quase como guardar um pouco dessas pessoas. Como se, de cada vez que pego neles e lhes dou uso, garatujando nem que seja a maior das tontarias ou a frase mais desprovida de sentido, estivesse a tocar nessas pessoas, a senti-las mesmo ali ao pé, ao alcance da minha mão. Como se, escrevendo, agitasse a minha relação com elas e juntas andássemos para aí aos traços, que é como quem diz às voltas com as palavras, aos rodopios, numa roda de emoções e caracteres. Mas o Tempo e a Distância – e a modorra que nos impede de os diminuir – têm-se encarregado de manter a caneta dentro do copo
que repousa sobre a secretária e os caderninhos brancos imaculados, as folhas muito certinhas e alinhadas, sem sinais de terem sido tocados. O que (não) escrevo são as nossas conversas, aquelas conversas que não temos porque deixaram de ter sentido, porque as palavras entre nós deixaram de ter o mesmo significado e a transmissão da informação passou a ter ruído, prejudicando a mensagem. Aos poucos, fomos deixando de ter assunto, do mesmo modo que a tinta se acaba nas cargas das canetas.
Cada vez mais uso o teclado do computador em vez das minhas próprias mãos para escrever. Julgo até que a minha caligrafia é cada vez menos acessível à leitura dos outros. Logo a minha caligrafia, tão esmerada na escola primária, por meio da qual granjeei tantos elogios, agora simplesmente esguia e impetuosa, demasiado indefinida, sempre vestida de preto, quase defunta.
Nesta chamada «sociedade da tecnologia e informação» tudo tem de ser normalizado, estilizado, uniformizado, até o desenho das letras. Os cadernos e as canetas caíram em desuso, e em desuso caiu também o hábito de guardar dentro de grandes caixas de papelão as cartas e os postais que em tempos recebemos e que tinham cor, cheiro e textura, cada um deles diferente, único e irrepetível.
Fica tanto por manuscrever. Fica tanto por dizer.
[Também publicado em PNETmulher.]
© Marta Madalena Botelho
Guardo meia dúzia de canetas e pequenos cadernos de anotações com muito carinho no meu coração e na minha memória. Alguns deles ocupam esse espaço não apenas porque me fascinam, mas também por causa das pessoas que mos ofertaram. Guardá-los religiosamente é quase como guardar um pouco dessas pessoas. Como se, de cada vez que pego neles e lhes dou uso, garatujando nem que seja a maior das tontarias ou a frase mais desprovida de sentido, estivesse a tocar nessas pessoas, a senti-las mesmo ali ao pé, ao alcance da minha mão. Como se, escrevendo, agitasse a minha relação com elas e juntas andássemos para aí aos traços, que é como quem diz às voltas com as palavras, aos rodopios, numa roda de emoções e caracteres. Mas o Tempo e a Distância – e a modorra que nos impede de os diminuir – têm-se encarregado de manter a caneta dentro do copo
que repousa sobre a secretária e os caderninhos brancos imaculados, as folhas muito certinhas e alinhadas, sem sinais de terem sido tocados. O que (não) escrevo são as nossas conversas, aquelas conversas que não temos porque deixaram de ter sentido, porque as palavras entre nós deixaram de ter o mesmo significado e a transmissão da informação passou a ter ruído, prejudicando a mensagem. Aos poucos, fomos deixando de ter assunto, do mesmo modo que a tinta se acaba nas cargas das canetas.
Cada vez mais uso o teclado do computador em vez das minhas próprias mãos para escrever. Julgo até que a minha caligrafia é cada vez menos acessível à leitura dos outros. Logo a minha caligrafia, tão esmerada na escola primária, por meio da qual granjeei tantos elogios, agora simplesmente esguia e impetuosa, demasiado indefinida, sempre vestida de preto, quase defunta.
Nesta chamada «sociedade da tecnologia e informação» tudo tem de ser normalizado, estilizado, uniformizado, até o desenho das letras. Os cadernos e as canetas caíram em desuso, e em desuso caiu também o hábito de guardar dentro de grandes caixas de papelão as cartas e os postais que em tempos recebemos e que tinham cor, cheiro e textura, cada um deles diferente, único e irrepetível.
Fica tanto por manuscrever. Fica tanto por dizer.
[Também publicado em PNETmulher.]
© Marta Madalena Botelho