19.4.09

a bela e os monstros


«Diz-me os teus preconceitos, dir-te-ei quem és.»

Se há uma semana me perguntassem se o nome Susan Boyle me dizia alguma coisa, provavelmente, não hesitaria muito mais do que trinta segundos antes de responder «não». Hoje, não só sei quem é Susan Boyle como já ouvi várias conversas em torno da sua descoberta.

Invariavelmente, a primeira referência fica-se pelo aspecto físico. Não há quem não realce o facto de Boyle ostentar um mais que visível buço abaixo do nariz. O choque aumenta quando se diz que ela nem sequer se dá ao trabalho de o descolorar.

A pergunta que se segue é se depila as sobrancelhas, mas também aqui a resposta é negativa. Exibindo um par de farfalhudas tiras de pêlo sobre os olhos, Boyle, uma vez mais, revela-se indisposta a ceder a suplícios faciais. É fácil antever onde a conversa conduz: bocas escancaradas, esgares de nojo, drama.

Ao que parece, uma mulher do século XXI simplesmente não pode optar livremente por não se depilar. Caso opte, para além de ser vista como se de extra-terrestre se tratasse, é imediatamente catalogada de feia, já para não falar de mimos como desleixada e masculina. Segundo consta, nos tempos que correm, os pêlos são privilégio masculino mas, mesmo assim, apenas de alguns homens, isto porque até eles devem submeter-se ao laser, à cera ou à pinça se os pêlos não tiverem um crescimento homogéneo e orientado na mesma direcção (de acordo com os doutos ensinamentos que colhi numa revista dita «fashion»).

Não estou certa de que a palavra «ridículo» seja suficiente para caracterizar o que penso de tudo isto. Às vezes dou por mim a pensar nos sacrifícios tremendos – que fazem o arrancar dos pêlos parecer o maior dos prazeres – que foram necessários para chegarmos onde estamos em matéria de liberdade. O ser humano passou séculos a lutar contra qualquer forma de opressão, quer ela viesse do Estado, quer do seu semelhante. Alguns seres humanos continuam a ter de travar essa luta todos os dias. Mas por cá, no mundo dito «civilizado», a opressão deixou de ser externa para passar a ser interna, porque as mulheres e os homens dos nossos dias, tão seguros de si se encontravam que transferiram os aguilhões que condicionam os seus movimentos, as suas escolhas e o seu tempo para dentro de si mesmos. Outra coisa não são os preconceitos, os complexos e os esteriótipos a que, sem nos darmos conta, nos vergamos diariamente. Da depilação ao vestuário, da linguagem à decoração das casas, tudo parece obedecer a regras bem delimitadas que ninguém viola sob pena de ser excluído do «grupo». Na ânsia de se manter dentro de um (cada vez mais pequeno) rectângulo identitário, um esmagador número de pessoas toma determinado perfil como sendo o ideal e tenta a todo o custo reproduzi-lo em si mesmo (nem que para isso tenha de padecer torturas que nem sempre são físicas), reduzindo assim a sua autonomia e a expressão da sua individualidade à mera imitação.

Quem não se enquadra é relegado para plano inferior e depreciado. Só isso, aliás, poderá explicar as caras de espanto que uma voz como a de Susan Boyle provocou, só porque não era suposto que alguém com o seu aspecto pudesse cantar tão maravilhosamente. Isto, claro, como se a voz dependesse da aparência das pessoas...

O essencial continua e haverá de ser sempre invisível aos olhos. Não depende, por isso, do tratamento que damos ao nosso exterior, dos esteriótipos a que os nossos preconceitos nos submetem. Talvez o fenómeno Boyle tenha surgido não apenas para deleite musical, mas também para nos fazer pensar um pouco mais sobre isso.

[É irónico o facto de o momento televisivo em que Susan Boyle derrubou preconceitos ter tido início com as estas palavras «There was a time when men were kind».]

[Texto integral publicado em PnetCrónicas.]

© Marta Madalena Botelho

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