Já não me lembro ao certo quando, mas creio que em finais de 2008, comprei numa loja pequenina cujo nome também já não recordo e que ficava numa das ruas comerciais do centro de Viana do Castelo, um dos objectos que mais satisfação me deu comprar, não só pela utilidade, mas porque o achei muito bonito e porque tinha muito que ver com a fase de vida em que me encontrava então: um dispensador daqueles círculos de algodão que usamos para fazer a limpeza do rosto e aplicar tónicos e bases.
Em acrílico incolor e translúcido, tinha umas aplicações com flores e borboletas ao lado e no fundo, junto à abertura, o que lhe conferia um toque de inocência, alegria e cor, tudo coisas que sentia em abundância naquela altura. Recordo-me que, antes de o embrulhar, o rapaz que estava na loja, onde também comprei um par de pegas de cozinha e cabides, ligou para a Mãe, que tinha saído por instantes, e perguntou-lhe se os círculos de algodão que estavam dentro do dispensador também se incluíam no preço final, muito embora eu lhe tenha dito repetidas vezes que não os queria. Do lado de lá do telemóvel, a Mãe respondeu-lhe que os círculos não eram para venda, pelo que ele os deveria retirar antes de embrulhar o dispensador, o que o rapaz, algo embaraçado, fez.
Mal cheguei a casa, enchi-o de algodão e fui colocá-lo na parede da casa-de-banho, imediatamente abaixo de uma folha da Liga Portuguesa Contra o Cancro com instruções sobre a palpação da mama que já lá estava colada. Humedeci as duas ventosas e pressionei o dispensador contra a parede, que se fixou nela até ao dia de ontem.
Estava eu a escovar os dentes quando, sem que nada o provocasse ou fizesse prever, as ventosas se desprenderam da parede e o dispensador caiu no chão, com estrondo. Ainda de escova dentro da boca, baixei-me de imediato para o apanhar. Foi então que vi que se havia quebrado em ambas as extremidades. Procurei os dois pedaços de acrílico na casa-de-banho, mas só encontrei um. Saí para o quarto e lá dei com o outro, muito longe do local da queda. Peguei em ambos e encaixei-os no dispensador. Com efeito, encaixavam, mas as linhas das quebras eram evidentes e faltava um vértice, muito pequenino, num dos pedaços. Era impossível recuperá-lo sem mazelas.
Gostava a sério daquele objecto. Hesitei um pouco na altura de o comprar, porque custou nada menos do que 25 Euros, mas acabei por me decidir rapidamente, cativada que fiquei pelos desenhos e cor que apresentava. Ao longo de quase dois anos, vi-o diariamente na minha casa-de-banho, toda ela profundamente convencional, de loiças brancas esmaltadas e azulejos bege sem grande graça. Gostava de o ver ali, fixado na parede, sendo útil e, ao mesmo tempo, belo.
Até há uns meses, o dispensador fazia um belo trio colorido com quatro sapos de borracha verde que estavam colados na parede, os quais foram, carinhosamente, baptizados de "xapinhos", e com um rádio que comprei na loja da Universidade do Porto, no Natal de 2007, que tem a forma de uma lágrima e um único botão redondo no centro, de um verde muito bonito e incomum.
No Verão, vi-me forçada (não importa já porquê) a retirar os "xapinhos" da parede da casa-de-banho e a guardá-los numa caixa na despensa, lá bem no fundo de tudo o que consegui colocar-lhe em cima. Ontem, o dispensador que optei por não retirar partiu-se em três. Resiste o rádio que, provavelmente, um destes dias o acaso se encarregará de fazer cair do sítio que o segura, para que não reste mais nada daquele trio.
Aos poucos, as paredes vão-se despindo, os objectos vão desaparecendo, a casa volta a exibir as paredes nuas que tinha quando para cá vim morar. Na porta do combinado já não resta nada, nenhum bilhete, nenhum recado, nenhum poema, nem o programa do Festival do Sudoeste 2008. Na porta da despensa, o mesmo. Tudo limpo e imaculado, sem memórias de nenhum momento, de nenhuma passagem, de nenhum encontro. Porque teve de ser, porque continua a ter de ser.
Lentamente, a minha casa torna ao que era. Eu é que - sei-o - jamais voltarei a ser igual.
© [m.m. botelho]
Em acrílico incolor e translúcido, tinha umas aplicações com flores e borboletas ao lado e no fundo, junto à abertura, o que lhe conferia um toque de inocência, alegria e cor, tudo coisas que sentia em abundância naquela altura. Recordo-me que, antes de o embrulhar, o rapaz que estava na loja, onde também comprei um par de pegas de cozinha e cabides, ligou para a Mãe, que tinha saído por instantes, e perguntou-lhe se os círculos de algodão que estavam dentro do dispensador também se incluíam no preço final, muito embora eu lhe tenha dito repetidas vezes que não os queria. Do lado de lá do telemóvel, a Mãe respondeu-lhe que os círculos não eram para venda, pelo que ele os deveria retirar antes de embrulhar o dispensador, o que o rapaz, algo embaraçado, fez.
Mal cheguei a casa, enchi-o de algodão e fui colocá-lo na parede da casa-de-banho, imediatamente abaixo de uma folha da Liga Portuguesa Contra o Cancro com instruções sobre a palpação da mama que já lá estava colada. Humedeci as duas ventosas e pressionei o dispensador contra a parede, que se fixou nela até ao dia de ontem.
Estava eu a escovar os dentes quando, sem que nada o provocasse ou fizesse prever, as ventosas se desprenderam da parede e o dispensador caiu no chão, com estrondo. Ainda de escova dentro da boca, baixei-me de imediato para o apanhar. Foi então que vi que se havia quebrado em ambas as extremidades. Procurei os dois pedaços de acrílico na casa-de-banho, mas só encontrei um. Saí para o quarto e lá dei com o outro, muito longe do local da queda. Peguei em ambos e encaixei-os no dispensador. Com efeito, encaixavam, mas as linhas das quebras eram evidentes e faltava um vértice, muito pequenino, num dos pedaços. Era impossível recuperá-lo sem mazelas.
Gostava a sério daquele objecto. Hesitei um pouco na altura de o comprar, porque custou nada menos do que 25 Euros, mas acabei por me decidir rapidamente, cativada que fiquei pelos desenhos e cor que apresentava. Ao longo de quase dois anos, vi-o diariamente na minha casa-de-banho, toda ela profundamente convencional, de loiças brancas esmaltadas e azulejos bege sem grande graça. Gostava de o ver ali, fixado na parede, sendo útil e, ao mesmo tempo, belo.
Até há uns meses, o dispensador fazia um belo trio colorido com quatro sapos de borracha verde que estavam colados na parede, os quais foram, carinhosamente, baptizados de "xapinhos", e com um rádio que comprei na loja da Universidade do Porto, no Natal de 2007, que tem a forma de uma lágrima e um único botão redondo no centro, de um verde muito bonito e incomum.
No Verão, vi-me forçada (não importa já porquê) a retirar os "xapinhos" da parede da casa-de-banho e a guardá-los numa caixa na despensa, lá bem no fundo de tudo o que consegui colocar-lhe em cima. Ontem, o dispensador que optei por não retirar partiu-se em três. Resiste o rádio que, provavelmente, um destes dias o acaso se encarregará de fazer cair do sítio que o segura, para que não reste mais nada daquele trio.
Aos poucos, as paredes vão-se despindo, os objectos vão desaparecendo, a casa volta a exibir as paredes nuas que tinha quando para cá vim morar. Na porta do combinado já não resta nada, nenhum bilhete, nenhum recado, nenhum poema, nem o programa do Festival do Sudoeste 2008. Na porta da despensa, o mesmo. Tudo limpo e imaculado, sem memórias de nenhum momento, de nenhuma passagem, de nenhum encontro. Porque teve de ser, porque continua a ter de ser.
Lentamente, a minha casa torna ao que era. Eu é que - sei-o - jamais voltarei a ser igual.
© [m.m. botelho]