Sábado à tarde. Ontem, portanto. Acabara de sair de um compromisso. No caminho de regresso, passei por um café com esplanada em frente ao mar. Arrumei o carro e dirigi-me para lá.
Embora as mesas da esplanada estivessem secas, as cadeiras aparentavam estarem molhadas. Como não sou de "arrumar as botas" facilmente, inspeccionei-as uma a uma. Resignada perante o facto de não poder beber um café na esplanada, acabei por entrar e pedir a bebida ao balcão.
Eis senão quando tive a pior ideia daquele dia: «Têm copos de plástico? Apetece-me beber isto a olhar o mar, não enfiada aqui dentro». Tinham. Serviram-me, paguei e caminhei em direcção à saída.
Atravessei o café com o copo de plástico na mão direita, mala ao ombro, cachecol descaído para a esquerda. Estava eu a empurrar a porta para sair quando dois miúdos arrancaram disparados de uma mesa e passaram à minha frente. Eu, que, para além de tudo o mais, sou também bastante crédula, achei que a última criancinha a sair ia ter a delicadeza de segurar a porta, visto que se atravessaram no meu caminho e bem viram que eu ia sair no momento em que eles decidiram ultrapassar-me pela direita, sem sequer sinalizarem a marcha. Achei mal, claro, e por isso, cometi a imprudência de manter o braço esticado para tentar segurar a porta, que não só não foi amparada pelo puto, como ainda foi objecto da acção do vento que se fazia sentir. Resultado: três dedos da mão esquerda entalados, boa parte do café que eu segurava na mão direita entornado no chão, sobre a minha mala que descaíra do ombro, sobre o punho da camisa branco imaculado que eu vestia e, claro, sobre a minha mão. Café quente, refira-se.
A criancinha voltou-se e mirou a bela cena que ajudou a criar. Abriu a porta e disse um sumido «desculpe», antes de voltar costas e correr para o amigo. Eu respondi que não tinha importância, tratei-o o mais cínica e contidamente que consegui por «pequenino» (teria uns doze anos?) e fui pousar o copo de plástico e a mala a pingar café em cima de uma das mesas da esplanada. Como seria de esperar, nem os pais da criança, nem qualquer empregado ou cliente me perguntou se precisava de ajuda. Toda a gente sabe como é: não se usa.
Procurei um lenço de papel. Enxuguei o café da mão, limpei o melhor que pude a mala e, quando dou por mim, estava a dar graças por ter pedido um café curto (e não haver assim tanto líquido no copo para entornar), por não ter caído café nos sapatos (que eram de camurça), por não ter sujado o cachecol (que entretanto havia, providencialmente, descaído para o lado esquerdo) e por só ter entalado três dedos da mão esquerda e não os cinco possíveis.
Sei que há uns tempos eu teria, de igual modo, desculpado imediatamente o miúdo, pois bem vi que saiu a correr porque ia em brincadeira com o amigo e não antecipou o que sucederia, logo, não agiu com intenção de causar aqueles danos e dores. Todavia, também sei que, provavelmente, ia ficar pior do que estragada por ter dado cabo de uma mala (que ainda não sei se vou conseguir recuperar), ainda por cima daquela mala, que tem um significado especial para mim, e, quem sabe, de uma camisa (pois ainda não sei se conseguirei remover aquela nódoa). Em suma, iria ficar o resto do dia aborrecida. Provavelmente, nem beberia o café, sairia dali a maldizer o mau tempo e o acaso, porque, antigamente, eu pensava que estas coisas aconteciam a toda a gente, mas achava sempre que aconteciam com muito maior frequência a mim.
Ontem não foi assim. Não vou dizer que achei hilariante o que me sucedeu, ou que não fiquei preocupada com a possibilidade da perda da mala e da camisa. Não vou dizer que não me doeu horrores ter entalado os dedos (a porta tinha uma mola, por isso é fácil imaginar a dor que terei sentido) ou suportar a temperatura do café na pele. Porém, apesar disso, no meio da adversidade consegui ver que poderia ter sido um pouco pior.
Não sei se a isto se chama relativizar, ser optimista ou outra coisa qualquer. Sei é que pode resumir-se em ter uma perspectiva diferente - e melhor - daquela que há uns tempos eu teria de um acontecimento semelhante. Se a perspectiva é melhor, isso só pode ser um bom sinal: só pode ser sinal de evolução.
Graças a este episódio, posso ter perdido uma mala e uma camisa, mas ganhei a consciência de que em certos pormenores da minha vida tenho hoje uma outra reacção e isso dá-me uma sensação de satisfação. Uma sensação muitíssimo mais valiosa do que o preço daqueles dois ou de quaisquer outros objectos.
© [m.m. botelho]
Embora as mesas da esplanada estivessem secas, as cadeiras aparentavam estarem molhadas. Como não sou de "arrumar as botas" facilmente, inspeccionei-as uma a uma. Resignada perante o facto de não poder beber um café na esplanada, acabei por entrar e pedir a bebida ao balcão.
Eis senão quando tive a pior ideia daquele dia: «Têm copos de plástico? Apetece-me beber isto a olhar o mar, não enfiada aqui dentro». Tinham. Serviram-me, paguei e caminhei em direcção à saída.
Atravessei o café com o copo de plástico na mão direita, mala ao ombro, cachecol descaído para a esquerda. Estava eu a empurrar a porta para sair quando dois miúdos arrancaram disparados de uma mesa e passaram à minha frente. Eu, que, para além de tudo o mais, sou também bastante crédula, achei que a última criancinha a sair ia ter a delicadeza de segurar a porta, visto que se atravessaram no meu caminho e bem viram que eu ia sair no momento em que eles decidiram ultrapassar-me pela direita, sem sequer sinalizarem a marcha. Achei mal, claro, e por isso, cometi a imprudência de manter o braço esticado para tentar segurar a porta, que não só não foi amparada pelo puto, como ainda foi objecto da acção do vento que se fazia sentir. Resultado: três dedos da mão esquerda entalados, boa parte do café que eu segurava na mão direita entornado no chão, sobre a minha mala que descaíra do ombro, sobre o punho da camisa branco imaculado que eu vestia e, claro, sobre a minha mão. Café quente, refira-se.
A criancinha voltou-se e mirou a bela cena que ajudou a criar. Abriu a porta e disse um sumido «desculpe», antes de voltar costas e correr para o amigo. Eu respondi que não tinha importância, tratei-o o mais cínica e contidamente que consegui por «pequenino» (teria uns doze anos?) e fui pousar o copo de plástico e a mala a pingar café em cima de uma das mesas da esplanada. Como seria de esperar, nem os pais da criança, nem qualquer empregado ou cliente me perguntou se precisava de ajuda. Toda a gente sabe como é: não se usa.
Procurei um lenço de papel. Enxuguei o café da mão, limpei o melhor que pude a mala e, quando dou por mim, estava a dar graças por ter pedido um café curto (e não haver assim tanto líquido no copo para entornar), por não ter caído café nos sapatos (que eram de camurça), por não ter sujado o cachecol (que entretanto havia, providencialmente, descaído para o lado esquerdo) e por só ter entalado três dedos da mão esquerda e não os cinco possíveis.
Sei que há uns tempos eu teria, de igual modo, desculpado imediatamente o miúdo, pois bem vi que saiu a correr porque ia em brincadeira com o amigo e não antecipou o que sucederia, logo, não agiu com intenção de causar aqueles danos e dores. Todavia, também sei que, provavelmente, ia ficar pior do que estragada por ter dado cabo de uma mala (que ainda não sei se vou conseguir recuperar), ainda por cima daquela mala, que tem um significado especial para mim, e, quem sabe, de uma camisa (pois ainda não sei se conseguirei remover aquela nódoa). Em suma, iria ficar o resto do dia aborrecida. Provavelmente, nem beberia o café, sairia dali a maldizer o mau tempo e o acaso, porque, antigamente, eu pensava que estas coisas aconteciam a toda a gente, mas achava sempre que aconteciam com muito maior frequência a mim.
Ontem não foi assim. Não vou dizer que achei hilariante o que me sucedeu, ou que não fiquei preocupada com a possibilidade da perda da mala e da camisa. Não vou dizer que não me doeu horrores ter entalado os dedos (a porta tinha uma mola, por isso é fácil imaginar a dor que terei sentido) ou suportar a temperatura do café na pele. Porém, apesar disso, no meio da adversidade consegui ver que poderia ter sido um pouco pior.
Não sei se a isto se chama relativizar, ser optimista ou outra coisa qualquer. Sei é que pode resumir-se em ter uma perspectiva diferente - e melhor - daquela que há uns tempos eu teria de um acontecimento semelhante. Se a perspectiva é melhor, isso só pode ser um bom sinal: só pode ser sinal de evolução.
Graças a este episódio, posso ter perdido uma mala e uma camisa, mas ganhei a consciência de que em certos pormenores da minha vida tenho hoje uma outra reacção e isso dá-me uma sensação de satisfação. Uma sensação muitíssimo mais valiosa do que o preço daqueles dois ou de quaisquer outros objectos.
© [m.m. botelho]