Como a vida ultrapassa em muito a capacidade imaginativa de todos nós, de vez em quando surgem nos tribunais assuntos cuja apreciação não é óbvia, nem sequer comum.
Alertada para o facto por uma notícia do Diário de Notícias, li o texto integral deste acórdão.
Resumindo os factos ao que interessa, um Cabo da GNR solicitou uma troca de serviço, a qual não foi autorizada. Em reacção, o referido Cabo, dirigindo-se a um 2.º Sargento proferiu, entre outras, a expressão "vá p'ró caralho". Em seguimento disto, o 2.º Sargento participou do Cabo. Tendo sido deduzida acusação, o arguido requereu a abertura de instrução. A decisão instrutória foi de não pronúncia. Inconformado com a mesma, o Ministério Público recorreu. A decisão do tribunal superior (a Relação de Lisboa) é a que consta do já referido acórdão.
No texto do acórdão pode ler-se o seguinte: «Para alguns, tal como no Norte de Portugal com a expressão popular de espanto, impaciência ou irritação "carago", não há nada a que não se possa juntar um "caralho", funcionando este como verdadeira muleta oratória» (sublinhados meus).
Confesso que me causa enorme espanto esta ideia generalizada (e infundada) de que no Norte do país se utiliza este tipo de linguagem com mais desenvoltura do que no Sul. Tal não é verdade. É, no mínimo, uma generalização rejeitável, alicerçada num preconceito de que, pelos vistos, o Relator do acórdão padece.
Quase inacreditável é, ainda, esta passagem do acórdão: «Por exemplo "p'ra caralho" é usado para representar algo excessivo. Seja grande ou pequeno demais. Serve para referenciar realidades numéricas indefinidas (ex: "chove p'ra caralho"; "o Cristiano Ronaldo joga p'ra caralho"; "moras longe p'ra caralho"; "o ácaro é um animal pequeno p'ra caralho"; "esse filme é velho p'ra caralho").
Por seu turno, quem nunca disse ou pelo menos não terá ouvido dizer para apreciar que uma coisa é boa ou lhe agrada: "isto é mesmo bom, caralho"?
Por outro lado, se alguém fala de modo ininteligível poder-se-á ouvir: "não percebo um caralho do que dizes" e se A aborrece B, B dirá para A "vai p'ró caralho" e se alguma coisa não interessa: "isto não vale um caralho" e ainda se a forma de agir de uma pessoa causa admiração: "este gajo é do caralho" e até quando alguém encontra um amigo que há muito tempo não via "como vai essa vida, onde caralho te meteste?"».
Pergunto - retoricamente - se seriam necessários tantos exemplos ou se estes seriam sequer necessários para fundamentar a decisão do Tribunal. Pergunto, ainda, o que será isso de «virilidade verbal», expressão que consta do sumário do acórdão. Por outro lado, não faço ideia de qual seja o nível de expressão verbal a que algumas pessoas estão habituadas, mas posso dizer que, sendo eu do Norte do país, está léguas abaixo do meu.
Como nortenha, posso afirmar, convictamente, que algumas das expressões que são referidas como exemplos no acórdão não são correntemente utilizadas nesta região do país, a não ser - admito - em contextos muito específicos de intimidade e brejeirice em que, contudo, dificilmente posso aceitar se inclua a relação entre agentes e/ou oficiais da GNR, mas nisto, como em tudo o resto e como dizem os juristas, a doutrina diverge.
Se me é permitido, esclareço que, no Norte do país, por exemplo:
1. quando algo é velho, não é necessariamente "velho p'ra c******", mas sim "mais velho do que a Sé de Braga";
2. quando alguém mora longe, não mora necessariamente "longe p'ra c******", mas sim "onde Judas perdeu as botas";
3. quando chove muito, não chove necessariamente "p'ra c******", mas sim "a cântaros".
E outros, muitos outros exemplos poderiam ser dados, embora me seja um pouco difícil imaginar o que um nortenho diria a propósito do tamanho do ácaro...
Sem me pronunciar sobre a bondade da decisão, o que não pretendi fazer em nenhum momento deste texto, digo apenas que este tipo de fundamentação é, a meu ver, espantosa, preconceituosa e, acima de tudo, desnecessária. Em suma, diria que é capaz de não valer um c******* (leia-se "chavelho", que é o que no Norte se diz).
© [m.m. botelho]
Alertada para o facto por uma notícia do Diário de Notícias, li o texto integral deste acórdão.
Resumindo os factos ao que interessa, um Cabo da GNR solicitou uma troca de serviço, a qual não foi autorizada. Em reacção, o referido Cabo, dirigindo-se a um 2.º Sargento proferiu, entre outras, a expressão "vá p'ró caralho". Em seguimento disto, o 2.º Sargento participou do Cabo. Tendo sido deduzida acusação, o arguido requereu a abertura de instrução. A decisão instrutória foi de não pronúncia. Inconformado com a mesma, o Ministério Público recorreu. A decisão do tribunal superior (a Relação de Lisboa) é a que consta do já referido acórdão.
No texto do acórdão pode ler-se o seguinte: «Para alguns, tal como no Norte de Portugal com a expressão popular de espanto, impaciência ou irritação "carago", não há nada a que não se possa juntar um "caralho", funcionando este como verdadeira muleta oratória» (sublinhados meus).
Confesso que me causa enorme espanto esta ideia generalizada (e infundada) de que no Norte do país se utiliza este tipo de linguagem com mais desenvoltura do que no Sul. Tal não é verdade. É, no mínimo, uma generalização rejeitável, alicerçada num preconceito de que, pelos vistos, o Relator do acórdão padece.
Quase inacreditável é, ainda, esta passagem do acórdão: «Por exemplo "p'ra caralho" é usado para representar algo excessivo. Seja grande ou pequeno demais. Serve para referenciar realidades numéricas indefinidas (ex: "chove p'ra caralho"; "o Cristiano Ronaldo joga p'ra caralho"; "moras longe p'ra caralho"; "o ácaro é um animal pequeno p'ra caralho"; "esse filme é velho p'ra caralho").
Por seu turno, quem nunca disse ou pelo menos não terá ouvido dizer para apreciar que uma coisa é boa ou lhe agrada: "isto é mesmo bom, caralho"?
Por outro lado, se alguém fala de modo ininteligível poder-se-á ouvir: "não percebo um caralho do que dizes" e se A aborrece B, B dirá para A "vai p'ró caralho" e se alguma coisa não interessa: "isto não vale um caralho" e ainda se a forma de agir de uma pessoa causa admiração: "este gajo é do caralho" e até quando alguém encontra um amigo que há muito tempo não via "como vai essa vida, onde caralho te meteste?"».
Pergunto - retoricamente - se seriam necessários tantos exemplos ou se estes seriam sequer necessários para fundamentar a decisão do Tribunal. Pergunto, ainda, o que será isso de «virilidade verbal», expressão que consta do sumário do acórdão. Por outro lado, não faço ideia de qual seja o nível de expressão verbal a que algumas pessoas estão habituadas, mas posso dizer que, sendo eu do Norte do país, está léguas abaixo do meu.
Como nortenha, posso afirmar, convictamente, que algumas das expressões que são referidas como exemplos no acórdão não são correntemente utilizadas nesta região do país, a não ser - admito - em contextos muito específicos de intimidade e brejeirice em que, contudo, dificilmente posso aceitar se inclua a relação entre agentes e/ou oficiais da GNR, mas nisto, como em tudo o resto e como dizem os juristas, a doutrina diverge.
Se me é permitido, esclareço que, no Norte do país, por exemplo:
1. quando algo é velho, não é necessariamente "velho p'ra c******", mas sim "mais velho do que a Sé de Braga";
2. quando alguém mora longe, não mora necessariamente "longe p'ra c******", mas sim "onde Judas perdeu as botas";
3. quando chove muito, não chove necessariamente "p'ra c******", mas sim "a cântaros".
E outros, muitos outros exemplos poderiam ser dados, embora me seja um pouco difícil imaginar o que um nortenho diria a propósito do tamanho do ácaro...
Sem me pronunciar sobre a bondade da decisão, o que não pretendi fazer em nenhum momento deste texto, digo apenas que este tipo de fundamentação é, a meu ver, espantosa, preconceituosa e, acima de tudo, desnecessária. Em suma, diria que é capaz de não valer um c******* (leia-se "chavelho", que é o que no Norte se diz).
© [m.m. botelho]