«Se o grão de trigo que cai na terra não morre, continua só
um grão de trigo; mas, se morre, então produz muito fruto.»
«Bíblia», Evangelho Segundo S. João 12, 24
um grão de trigo; mas, se morre, então produz muito fruto.»
«Bíblia», Evangelho Segundo S. João 12, 24
Há uma frase que tenho ouvido muitas vezes nos últimos tempos, não necessariamente dirigida a mim: «Quem não se sente não é filho de boa gente». Um dia, retorqui: «Porque é que diz isso tão repetidamente quando está a conversar comigo? Acha que eu sou naïf? Acha que eu sou "banana", é?». Responderam-me: «Não, não acho, mas não é isso que importa. O que importa é perguntar se a Marta acha isso de si mesma. Importa perguntar se aos outros lhes ocorre que a Marta é "banana" e perguntar que importância é que isso tem para si, se é que tem alguma». Eu, menina bem comportada que sou, pergunto. Pergunto tudo.
I – Achas que eu sou "banana"?
Falei com os que me são próximos. Pedi-lhes que me dissessem se acham que sou "banana" e porquê. Obtive respostas para todos os gostos: há quem ache que sou completamente "banana"; há quem ache que sou "banana" em determinadas circunstâncias e quando estão envolvidas determinadas pessoas; há quem ache que não sou nada "banana", muito pelo contrário. Os motivos para tão diversas opiniões são variados, como se compreende: são muitos olhos a ver o mesmo, mas cada par deles de uma perspectiva própria.
Durante muito tempo, dei relevo ao que os outros pensavam sobre mim. Não que me fosse essencial que os outros só tecessem boas considerações quando o assunto era eu. Como qualquer outra pessoa, cativei o afecto de uns e granjeei o ódio de outros e sempre fui muito consciente disso. Contudo, a esmagadora maioria das pessoas com quem me cruzei na vida sempre me apreciaram e eu gostava do conforto que o afecto dos outros me dava. Foi esse conforto que me habituei a sentir que fez com que para mim se tornasse importante que as pessoas me considerassem. Era bom, e do que é bom todos gostam.
Esse conforto nunca me foi difícil de alcançar. De facto, não me recordo de ter engolido grandes sapos para agradar fosse a quem fosse. Também é verdade que isso nunca me foi exigido, porque sempre tive muita sorte nos encontros e na retribuição dos afectos: aqueles de quem eu gostei, gostaram sempre muito de mim. Por outro lado, tenho também a felicidade de ter prazer em fazer muitas coisas muito diferentes, mantendo preferências, mas sem que isso implique sacrifícios: posso deleitar-me tanto num concerto de Mahler como num bailarico de S. João, apreciar tornedó em redução de vinho do Porto com chalota e batatas confitadas tanto como uma boa bifana no pão, viajar de avião com o mesmo entusiasmo com que viajo de comboio. Em suma, não me é difícil adaptar a um sem número de ambientes e circunstâncias – e, porque não, de pessoas – , o que é tremendamente facilitador quando se trata de colher a simpatia dos outros. Talvez por isso, por saber que me era fácil, eu gozasse de uma íntima certeza de que, quando uma pessoa me interessasse o suficiente para eu querer incluí-la no meu universo, seria capaz de o fazer. Talvez por isso, por saber que tinha tudo para o conseguir, me incomodasse um pouco quando o não conseguia, ou não conseguia logo, mesmo quando não tinha a menor intenção de manter a pessoa na minha vida. E talvez por isso eu desse tanta importância ao que outros pensavam sobre mim.
Porém, quando me pus a pensar no que ganhava ou perdia com a importância que dava ao facto de as pessoas pensarem que eu poderia ser "banana", percebi que a resposta é «nada». Na realidade, o que me pode importar que os outros achem que eu sou demasiado permissiva, demasiado liberal, demasiado «deixa arder que o meu pai é bombeiro», ou mesmo que eu sou demasiado rígida, demasiado racional, demasiado preocupada? Nada! O que interessa é o modo como eu uso as minhas características para trilhar o meu percurso com vista a ser feliz. Isso não depende do que os outros pensam sobre mim, mas sim do que eu penso sobre mim, porque o modo como eu me vejo é que me permite não desperdiçar nada do que sou, é que me permite investir tudo o que tenho em mim mesma, de modo a poder proporcionar a melhor pessoa possível primeiro a mim e depois aos que me rodeiam e me amam.
Assim, concluí que, em rigor e agora, estou-me nas tintas para o que os outros pensam sobre mim, o que inclui o facto de eu ser ou não ser "banana" na forma como lido com as frustrações, os fracassos e as desolações. Estou-me literalmente nas tintas, porque a verdade é que cada um lida com isto como pode e como sabe. Há quem seja sempre muito seguro de si e passe pelas coisas como cão por vinha vindimada; há quem se deixe tomar pela tristeza e depois se erga estruturado; há quem se deixe afundar e ande anos até conseguir levantar-se, se conseguir. São inúmeras as formas de reagir a isto e de agir depois disto, umas eventualmente mais "banana" do que outras. A minha é tão-somente isso: a minha. O método de cada um aplica-se exclusivamente a esse um. Como em tudo, nestas coisas cada um sabe de si e, para os crentes, Deus sabe de todos. Assim sendo, quero lá bem saber das opiniões alheias sobre o modo como eu – e só eu – posso conduzir a minha existência. Não significa isto que desconsidere as pessoas. Simplesmente, não lhes concedo um papel que só eu é que posso ter na minha vida: o de ditar o modo como eu devo vivê-la.
II – E eu, acho que sou "banana"?
Depois de ponderar sobre a importância que tem o que outros pensam sobre a minha eventual "bananice", questionei se eu mesma penso que padeço de tal maleita. Antes de mais, reflecti sobre variadíssimos acontecimentos da minha vida. Sobretudo, sobre a última década da minha vida. E sucedeu-me tanta coisa, nesta última década! Tive uns vinte muito plenos, incrivelmente plenos, de coisas boas e de coisas más. Foquei-me, essencialmente, no modo como reagi às coisas más, como geri a minha vida imediatamente a seguir a esses acontecimentos, como passei a viver depois de eles terem tido lugar, como passei a encarar-me depois de eles fazerem parte de mim, do meu passado. E cheguei a uma conclusão.
Não, não acho que seja "banana". Seria "banana", porventura, se, de cada vez que a vida me traz um revés, ficasse cheia de auto-comiseração e não saísse desse registo. Seria "banana" se, de cada vez que me sinto magoada por alguém ou por alguma situação, ficasse afundada naquela mágoa, sem reacção, limitando-me a pensar que não teria de estar a sofrer se houvesse um pouco mais de tacto, um pouco mais de consideração, um pouco mais de maturidade, um pouco mais de qualquer outra coisa. Não o faço. Quando levo um abanão, ando uns tempos a ver estrelas, com a cabeça à roda, com a sensação de que o chão me falta sob os pés. Afortunadamente, não tenho qualquer prurido em deixar que a tristeza tome conta de mim, mas só durante o tempo estritamente necessário. Choro. Baba e ranho, mesmo. Sinto-me miserável e até sou capaz de me permitir ter um pouco de pena de mim mesma, «coitadinha de mim, que estou a sofrer tanto!». Mas esta fase dura uns tempos, não dura a vida toda. Não me fico por aí. Nunca fiquei. De uma forma ou de outra, reuni sempre as forças necessárias para inverter a tendência da auto-comiseração. Deixo-me tentar por ela, até me posso permitir não lhe resistir no imediatamente após, mas nunca me permiti ceder-lhe completamente. Sempre gostei de mim o absolutamente necessário para não permitir que tal acontecesse. Tenho-me aguentado – caramba, se tenho! – e saio sempre mais reforçada destes episódios menos bons. Nunca saí mais pequena do que era antes de eles terem acontecido.
É uma inevitabilidade: às vezes, as pessoas magoam-se umas às outras. As feridas rasgam-se. A carne fica ali, exposta, viva, a sangrar. O choro irrompe. Então, há que esperar que a dor acalme, que o choro diminua. Há que enxugar as lágrimas. Há que limpar o pus da ferida e cicatrizá-la. Há que ranger os dentes, espernear, maldizer este mundo e o outro e morder a corda com toda a força que temos enquanto escarafunchamos até que a carne putrefacta saia toda. Depois, há que deixar o tempo agir, esperar que se fechem os lanhos, ainda que permaneçam as cicatrizes. Só assim é que se curam as feridas com a certeza da cura.
Quero chegar ao fim da vida toda retalhada, cheia de cicatrizes, mas não de feridas. Quero chegar com a sensação de que me esfarrapei toda, mas que isso é sinónimo de que me fiz à vida, de que apanhei porrada, mas que dei muita luta. Por isso é que eu posso afirmar convictamente que não sou "banana". É que os "bananas" não dão luta. São muito altruístas e tal, muito cheios de perdão para dar aos outros e a si, principalmente, mas cheios de feridas por curar. Fogem daquele momento da limpeza do pus, o mais doloroso nas feridas físicas, o mais tortuoso nas feridas psicológicas. Acagaçam-se todos perante a ideia de aumentar o sofrimento num momento que é já de dor. Anseiam que a crosta cubra as feridas, mas nem sequer as limpam para não doer. Tolhem-se todos no seu cantinho à espera que a coisa passe, porque há-de passar.
Se sou "banana"? Não, não sou. Posso não ser a mais brava das mulheres, mas não sou propriamente uma cobardolas. A terra tem de ser rompida para que nasça fruto, não é? Então, também é preciso que se abram feridas para expurgar o que não interessa, de modo a tornar a viagem possível, sem excesso de carga que só nos limita e nos faz arrastar os pés. Dói muito, dói, principalmente a quem se sente porque é filho de boa gente, mas a verdadeira cura nunca pode ser indolor. A vida não é indolor.
© [m.m. botelho]
I – Achas que eu sou "banana"?
Falei com os que me são próximos. Pedi-lhes que me dissessem se acham que sou "banana" e porquê. Obtive respostas para todos os gostos: há quem ache que sou completamente "banana"; há quem ache que sou "banana" em determinadas circunstâncias e quando estão envolvidas determinadas pessoas; há quem ache que não sou nada "banana", muito pelo contrário. Os motivos para tão diversas opiniões são variados, como se compreende: são muitos olhos a ver o mesmo, mas cada par deles de uma perspectiva própria.
Durante muito tempo, dei relevo ao que os outros pensavam sobre mim. Não que me fosse essencial que os outros só tecessem boas considerações quando o assunto era eu. Como qualquer outra pessoa, cativei o afecto de uns e granjeei o ódio de outros e sempre fui muito consciente disso. Contudo, a esmagadora maioria das pessoas com quem me cruzei na vida sempre me apreciaram e eu gostava do conforto que o afecto dos outros me dava. Foi esse conforto que me habituei a sentir que fez com que para mim se tornasse importante que as pessoas me considerassem. Era bom, e do que é bom todos gostam.
Esse conforto nunca me foi difícil de alcançar. De facto, não me recordo de ter engolido grandes sapos para agradar fosse a quem fosse. Também é verdade que isso nunca me foi exigido, porque sempre tive muita sorte nos encontros e na retribuição dos afectos: aqueles de quem eu gostei, gostaram sempre muito de mim. Por outro lado, tenho também a felicidade de ter prazer em fazer muitas coisas muito diferentes, mantendo preferências, mas sem que isso implique sacrifícios: posso deleitar-me tanto num concerto de Mahler como num bailarico de S. João, apreciar tornedó em redução de vinho do Porto com chalota e batatas confitadas tanto como uma boa bifana no pão, viajar de avião com o mesmo entusiasmo com que viajo de comboio. Em suma, não me é difícil adaptar a um sem número de ambientes e circunstâncias – e, porque não, de pessoas – , o que é tremendamente facilitador quando se trata de colher a simpatia dos outros. Talvez por isso, por saber que me era fácil, eu gozasse de uma íntima certeza de que, quando uma pessoa me interessasse o suficiente para eu querer incluí-la no meu universo, seria capaz de o fazer. Talvez por isso, por saber que tinha tudo para o conseguir, me incomodasse um pouco quando o não conseguia, ou não conseguia logo, mesmo quando não tinha a menor intenção de manter a pessoa na minha vida. E talvez por isso eu desse tanta importância ao que outros pensavam sobre mim.
Porém, quando me pus a pensar no que ganhava ou perdia com a importância que dava ao facto de as pessoas pensarem que eu poderia ser "banana", percebi que a resposta é «nada». Na realidade, o que me pode importar que os outros achem que eu sou demasiado permissiva, demasiado liberal, demasiado «deixa arder que o meu pai é bombeiro», ou mesmo que eu sou demasiado rígida, demasiado racional, demasiado preocupada? Nada! O que interessa é o modo como eu uso as minhas características para trilhar o meu percurso com vista a ser feliz. Isso não depende do que os outros pensam sobre mim, mas sim do que eu penso sobre mim, porque o modo como eu me vejo é que me permite não desperdiçar nada do que sou, é que me permite investir tudo o que tenho em mim mesma, de modo a poder proporcionar a melhor pessoa possível primeiro a mim e depois aos que me rodeiam e me amam.
Assim, concluí que, em rigor e agora, estou-me nas tintas para o que os outros pensam sobre mim, o que inclui o facto de eu ser ou não ser "banana" na forma como lido com as frustrações, os fracassos e as desolações. Estou-me literalmente nas tintas, porque a verdade é que cada um lida com isto como pode e como sabe. Há quem seja sempre muito seguro de si e passe pelas coisas como cão por vinha vindimada; há quem se deixe tomar pela tristeza e depois se erga estruturado; há quem se deixe afundar e ande anos até conseguir levantar-se, se conseguir. São inúmeras as formas de reagir a isto e de agir depois disto, umas eventualmente mais "banana" do que outras. A minha é tão-somente isso: a minha. O método de cada um aplica-se exclusivamente a esse um. Como em tudo, nestas coisas cada um sabe de si e, para os crentes, Deus sabe de todos. Assim sendo, quero lá bem saber das opiniões alheias sobre o modo como eu – e só eu – posso conduzir a minha existência. Não significa isto que desconsidere as pessoas. Simplesmente, não lhes concedo um papel que só eu é que posso ter na minha vida: o de ditar o modo como eu devo vivê-la.
II – E eu, acho que sou "banana"?
Depois de ponderar sobre a importância que tem o que outros pensam sobre a minha eventual "bananice", questionei se eu mesma penso que padeço de tal maleita. Antes de mais, reflecti sobre variadíssimos acontecimentos da minha vida. Sobretudo, sobre a última década da minha vida. E sucedeu-me tanta coisa, nesta última década! Tive uns vinte muito plenos, incrivelmente plenos, de coisas boas e de coisas más. Foquei-me, essencialmente, no modo como reagi às coisas más, como geri a minha vida imediatamente a seguir a esses acontecimentos, como passei a viver depois de eles terem tido lugar, como passei a encarar-me depois de eles fazerem parte de mim, do meu passado. E cheguei a uma conclusão.
Não, não acho que seja "banana". Seria "banana", porventura, se, de cada vez que a vida me traz um revés, ficasse cheia de auto-comiseração e não saísse desse registo. Seria "banana" se, de cada vez que me sinto magoada por alguém ou por alguma situação, ficasse afundada naquela mágoa, sem reacção, limitando-me a pensar que não teria de estar a sofrer se houvesse um pouco mais de tacto, um pouco mais de consideração, um pouco mais de maturidade, um pouco mais de qualquer outra coisa. Não o faço. Quando levo um abanão, ando uns tempos a ver estrelas, com a cabeça à roda, com a sensação de que o chão me falta sob os pés. Afortunadamente, não tenho qualquer prurido em deixar que a tristeza tome conta de mim, mas só durante o tempo estritamente necessário. Choro. Baba e ranho, mesmo. Sinto-me miserável e até sou capaz de me permitir ter um pouco de pena de mim mesma, «coitadinha de mim, que estou a sofrer tanto!». Mas esta fase dura uns tempos, não dura a vida toda. Não me fico por aí. Nunca fiquei. De uma forma ou de outra, reuni sempre as forças necessárias para inverter a tendência da auto-comiseração. Deixo-me tentar por ela, até me posso permitir não lhe resistir no imediatamente após, mas nunca me permiti ceder-lhe completamente. Sempre gostei de mim o absolutamente necessário para não permitir que tal acontecesse. Tenho-me aguentado – caramba, se tenho! – e saio sempre mais reforçada destes episódios menos bons. Nunca saí mais pequena do que era antes de eles terem acontecido.
É uma inevitabilidade: às vezes, as pessoas magoam-se umas às outras. As feridas rasgam-se. A carne fica ali, exposta, viva, a sangrar. O choro irrompe. Então, há que esperar que a dor acalme, que o choro diminua. Há que enxugar as lágrimas. Há que limpar o pus da ferida e cicatrizá-la. Há que ranger os dentes, espernear, maldizer este mundo e o outro e morder a corda com toda a força que temos enquanto escarafunchamos até que a carne putrefacta saia toda. Depois, há que deixar o tempo agir, esperar que se fechem os lanhos, ainda que permaneçam as cicatrizes. Só assim é que se curam as feridas com a certeza da cura.
Quero chegar ao fim da vida toda retalhada, cheia de cicatrizes, mas não de feridas. Quero chegar com a sensação de que me esfarrapei toda, mas que isso é sinónimo de que me fiz à vida, de que apanhei porrada, mas que dei muita luta. Por isso é que eu posso afirmar convictamente que não sou "banana". É que os "bananas" não dão luta. São muito altruístas e tal, muito cheios de perdão para dar aos outros e a si, principalmente, mas cheios de feridas por curar. Fogem daquele momento da limpeza do pus, o mais doloroso nas feridas físicas, o mais tortuoso nas feridas psicológicas. Acagaçam-se todos perante a ideia de aumentar o sofrimento num momento que é já de dor. Anseiam que a crosta cubra as feridas, mas nem sequer as limpam para não doer. Tolhem-se todos no seu cantinho à espera que a coisa passe, porque há-de passar.
Se sou "banana"? Não, não sou. Posso não ser a mais brava das mulheres, mas não sou propriamente uma cobardolas. A terra tem de ser rompida para que nasça fruto, não é? Então, também é preciso que se abram feridas para expurgar o que não interessa, de modo a tornar a viagem possível, sem excesso de carga que só nos limita e nos faz arrastar os pés. Dói muito, dói, principalmente a quem se sente porque é filho de boa gente, mas a verdadeira cura nunca pode ser indolor. A vida não é indolor.
© [m.m. botelho]