10.2.11

intuições

«O pior cego é o que não quer ver.»
[ditado popular]

Julgo que, pelo menos desde os meus vinte e poucos anos, comecei a aperceber-me de que, às vezes, percepcionava que determinados acontecimentos teriam lugar na minha vida. Não se tratava de quaisquer dotes paranormais, visões ou algo do género. O que me assaltava eram pensamentos de que determinadas coisas estavam a acontecer, coisas não explicitamente reveladas. Não sabia o que eram e abominava a ideia de que eu fosse capaz de ter pressentimentos. Ouvia dizer muitas vezes que as mulheres são muito mais sensíveis a certos aspectos do que os homens. Regra geral, isto era dito como se tal característica fosse negativa, uma reminiscência de tempos idos em que tudo eram apresentado como se só as mulheres fossem feiticeiras, sendo que isso era algo muito mau, expurgável apenas pelo fogo propalado nas pilhas montadas e acesas pela Inquisição. Talvez por isso tenha sedimentado em mim a ideia de que ser intuitivo era mau, algo que deveria contrariar ou, mais do que isso, negar absolutamente.

Assim, neguei sempre as minhas intuições. Quando ouvia falar no assunto, dizia-me completamente desprovida de tal característica feminina. Repetia constantemente para mim mesma que só existe o real realinho, o que é palpável e visível, o cientificamente explicável. Isto acabou por condicionar até o modo como vivia a minha religiosidade. O tema religião interessava-me muito, a tal ponto de ter lido integralmente a Bíblia entre os dezassete e os vinte e três anos, feito que até hoje não conheci quem, não sendo padre, teólogo ou afim tenha cumprido. Li integralmente o Catecismo da Igreja Católica, sei a doutrina de trás para a frente e, quando isso deixou de me bastar, passei a ler livros de História e de Sociologia das religiões e até o Direito Canónico captou de forma especial a minha atenção. Não obstante tudo isto, era incapaz de sentir uma ligação especial às entidades da religião que praticava. Não rezava - raramente rezei em toda a minha vida - e nunca sequer tentei estabelecer a comunhão espiritual que se espera que os católicos tenham com Deus, Cristo, a Virgem Maria e os Santos. Não tinha essa necessidade. Na realidade, nunca encarei a minha religiosidade como um domínio espiritual. Quando me questionava se teria fé, acaba por concluir um pouco apressadamente que sim, que tinha, só porque era suposto que a tivesse, e não me permitia ponderar que talvez eu fechasse deliberadamente o meu íntimo a tal sensação, não fosse isso fazer de mim uma má católica. Refugiava-me no confortável dito de que a fé não se explica e mentalizava-me que a tinha, mesmo que não me permitisse senti-la, sabendo que não me permitia porque não queria. Não me era, nunca me foi importante senti-la e nem sequer nutria admiração por quem era muito fervoroso.

Para mim, era bastante simples e pacífico: eu não era intuitiva e, por isso, também não era espiritual. Era do mundo do lado de cá, da Terra. Apreciava tremendamente a reconfortante ideia da doutrina católica de que não existe reencarnação e de que não existe qualquer comunicação entre vivos e mortos. Encarei sempre com uma calma perturbadora para os demais a morte das pessoas do meu universo. A propósito disto, ocorre-me agora que nunca chorei num funeral. Não chorei sequer quando o meu Avô, que eu amava profundamente, morreu. Vi a minha família, os nossos amigos e os nossos vizinhos chorarem a perda do meu Avô e eu nem no instante em que soube da sua morte fui capaz de o fazer. Não passou um dia em que eu tenha estado com o meu Avô em que não lhe tenha dado um beijo. Nos dias em que estava zangada com ele - tinha com ele uma relação tão sui generis que até me era permitido zangar-me com ele, dizer-lhe coisas que mais ninguém ousava dizer, tratá-lo por "tu" quando nem sequer a minha Mãe o fazia, confrontá-lo com tudo e mais alguma coisa, como se não houvesse entre nós distâncias impostas pela idade, pelo estatuto familiar ou por qualquer outra coisa -, dava-lhe um beijo e dizia-lhe «Não é que tu mereças.» e depois piscava-lhe o olho. Nem eu nem ninguém temos dúvidas de que eu gostava imenso dele. Gostava tanto dele que, mesmo quando estava aborrecida com ele, lhe dava beijos e, no entanto, depois de ele ter morrido, não mais lhe toquei a não ser para lhe beijar rapidamente a testa fria antes de selarem definitivamente a urna. Dizia para mim mesma que o meu Avô já não estava ali, por isso não o chorava, por isso não lhe tocava. Olhava para ele e dizia para mim mesma que ele agora estava noutra dimensão, uma dimensão na qual eu jamais poderia entrar enquanto fosse viva e por isso, porque havia uma separação intransponível entre nós, não valia a pena chorar nem beijar o que, para mim, era apenas o seu cadáver. E senti sempre isto perante todas as mortes: elas eram a passagem para um longe tão longe que não valia de nada aos vivos emocionarem-se por causa disso, porque os vivos eram do lado de cá e os mortos eram do lado de lá e entre um lugar e o outro havia um fosso de incomunicabilidade. A morte não tinha, portanto, nada de espiritual, nada de transcendente, nada de acessível fosse de que forma fosse.

Na verdade, eu tinha pavor em relação ao que não se entende nem se pode entender. Sempre gostei de tudo muito bem explicado e muito bem percebido. Aquilo que eu não percebia e não conseguia explicar não existia. Era por isso que, em mim, não existia a espiritualidade, a reencarnação e a intuição. Não nego que isso torna a minha religiosidade bastante pobre, do mesmo modo que não nego que recusar a existência da minha intuição em determinadas situações da minha vida fez de mim bastante cega. Intuía as coisas, mas como não percebia porque é que as intuía, negava que as intuísse. Quando, depois, as minhas intuições se tornavam o real realinho, ali à vista de toda a gente, eu repetia para mim mesma que tinha sido uma coincidência, que eu não era intuitiva, que o que tinha acontecido tinha sido uma conclusão óbvia do que antecedera e que o facto de tudo se ter passado como eu intuíra que estava a passar-se não era senão um acaso.

Não era. Não é um acaso, não são coincidências, são intuições. Talvez eu as tenha em maior número do que gostaria, mas devo aceitar que as tenho. E mais do que aceitar que as tenho, devo fazer uso delas. Acredito que se, ao longo da minha vida, tivesse feito esse uso, me tivesse poupado a alguns dissabores. Muitas das negações das minhas intuições conduziram a um estado de verdadeira cegueira, mas de uma cegueira perfeitamente consciente, logo, dolorosa.

Só o Peter Pan é que pode dar-se ao luxo de nunca dizer adeus, porque dizer adeus significa ir embora e ir embora significa esquecer. Nós, gente de carne e osso, não podemos dar-nos ao luxo de não dizer o que tem de ser dito, não fazer o que tem de ser feito, não lidar com o que está a acontecer. Por isso, quando intuímos que algo está a acontecer, melhor é que sejamos suficientemente inteligentes para assumirmos que aquilo já faz parte da nossa realidade e que, portanto, mais cedo ou mais tarde haveremos de ter de lidar com ela. As verdadeiras intuições podem não ser explicáveis, mas não é por isso que deixam de existir. Assim, talvez não seja lá muito perspicaz relegá-las para o plano do acaso. Se eu não quero estar alerta, mas algo me desperta, não pode ser por acaso. Não sei por que é, nem isso não interessa. Interessa é que estou desperta, que (pres)sinto e, se puder fazer alguma coisa com o que (pres)sinto, devo fazer. Por mim mesma.

Há sempre, pelo menos, uma coisa que podemos fazer com o que (pres)sentimos: tomar consciência de que o (pres)sentimos, aceitar que o (pres)sentimos e que, se assim é, por algum motivo é, motivo esse que, geralmente, até nem tarda a revelar-se. Só assim conseguiremos evitar que num instantinho, aos nossos próprios olhos, passemos de bestiais a bestas: de bestiais porque tivemos a capacidade de intuir, a bestas porque o negámos absurdamente.

© [m.m. botelho]

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