«A little Consideration, a little
Thought for Others, makes all the diference.»
Thought for Others, makes all the diference.»
De um livro do «Winnie, The Pooh», que dizem que é para crianças.
Hoje, se eu pudesse, se me fosse dado escolher, queria ser como o ouriço-cacheiro, que se enrosca em si mesmo até que o perigo se afaste. Se eu pudesse, gostaria de não ter de lidar com uma série de coisas que, de repente, me invadiram a vida e a viraram de pernas para o ar. Tudo coisas que, por muito sentido que possam fazer para os outros, não fazem qualquer sentido para mim. Tudo coisas que, por mais voltas que dê à minha cabeça, por mais uso que faça da minha reconhecidamente descomunal inteligência (sim, já passei a fase da falsa modéstia há muito) não consigo entender, por mais que atente nas explicações que foram dadas e que ouvi com toda a abertura.
O que sinto, neste momento da minha vida - e isto não é auto-comiseração nenhuma, é uma simples constatação, que as coisas são para serem ditas quando se tem ovários para as dizer - é que fui um dano colateral de uma guerra que nem sequer era minha. O que sinto é que fui arrastada para um lodo que me era absolutamente alheio e que engoliu o que não era suposto ser engolido, porque eu não tinha nada que ver com ele. Podem dizer-me até à exaustão que as pessoas se limitaram a viver as suas vidas, que eu, dentro dos meus (chamem-lhe espartilhantes, que é para o lado que eu durmo melhor) princípios e valores, não consigo aceitar que se vivam vidas destruindo outras vidas. Há sempre, pelo menos, duas maneiras de fazer as coisas: a certa e a errada. E, às vezes, no melhor pano cai a nódoa, que é como quem diz, até o mais esforçado dos seres faz as coisas do pior modo possível.
Sei que cada um de nós é o único responsável pela sua própria felicidade. Sei e concordo, mas também tenho a destreza de ver que cada um de nós pode ser causa de infelicidade para os outros. E, convenhamos, cada um de nós até pode fazer tudo pela sua felicidade, que se outros vierem espalhar cinzano no que foi semeado, não há cá milagres que salvem a colheita.
Ao longo de anos, sempre fui exemplar para com todos os envolvidos nesta guerra da qual sou um dano colateral. Nunca os traí, nunca lhes fui desleal, sempre me empenhei no melhor para eles, sempre lhes tive o maior respeito, consideração e amor. Em suma, sempre fiz tudo o que podia para não ser causa da sua infelicidade. Posso até não ter feito muito pela sua felicidade, mas se há coisa que não fiz foi ser causa da sua infelicidade.
O que tive em troca, contudo, não foi o mesmo. Podem até não ter feito muito pela minha felicidade, mas a dado passo tiveram um papel determinante na minha infelicidade. E isso, ser causa de infelicidade do outro, é uma trampa que não se faz a ninguém, muito menos a quem sempre nos tratou bem, nos deu o melhor que tinha e nos amou.
Ah, se eu pudesse, queria ser como o ouriço-cacheiro, que se fecha em si mesmo e não permite que os outros o magoem! Se eu pudesse, queria ter a possibilidade de não permitir que alguém pudesse causar-me dor. Sucede que não posso, que ninguém pode.
Por muito defendidos que sejamos, por muito leais e amantíssimos que sejamos para não despertar a fúria das energias cósmicas, ninguém pode proteger-se dos outros quando os outros optam mesmo por nos sacrificar no seu altar das oblações ao próprio umbigo. Ninguém consegue comandar a vida dos outros de forma a que as suas escolhas, os seus actos, as suas palavras não sejam para nós causa de infelicidade. E não me venham com a conversa de que as pessoas só nos magoam se nós quisermos, porque isso é uma grandessíssima treta. As pessoas magoam-nos se quiserem magoar-nos - ponto - e é fácil perceber porquê: porque todos nos movimentamos num universo de afectos, já que o que nos une é o amor e o respeito que temos uns pelos outros, nada mais. E sendo que a condição humana é amar para ligar, está criado o cenário para que todos aqueles que amamos possam magoar-nos e para que possamos magoar todos aqueles que nos amam.
Isto não é, portanto, uma questão de "empowerment". Isto é, tão-somente, a vida dos homens, pura e dura, em todo o seu esplendor. Quem não vive isolado, quem cria laços de afecto, deixa de ter a possibilidade de controlar a sua própria dor, porque ela passa a poder ser causada por aqueles com quem esses laços são estabelecidos. Não é possível criar laços sem dar esse flanco. Não é possível evitar que assim seja de maneira nenhuma.
O que sobra, então? Sobra a consciência que cada um tem de ter de que, não sendo necessariamente motivo de felicidade para o outro, pode ser motivo da sua infelicidade. Sobra a crença de que aqueles que amamos e a quem estamos ligados terão a amabilidade de não ser causa da nossa infelicidade. Sobra a nossa dignidade de não querermos ser causa da infelicidade alheia.
Não se trata de diabolizar as pessoas. Trata-se de reconhecer a cada um de nós um poder que tem, de facto, um poder que adquire a partir do momento em que cria laços com o outro. Se pudéssemos ser todos ouriços-cacheiros, estaríamos todos muito tranquilos na nossa protecção espinhosa e aí cada um podia fazer trinta por uma linha porque estávamos todos cada um por si. Mas nós só podemos ser humanos, logo, tremendamente desprotegidos pelos afectos que nós mesmos alimentamos.
Se eu pudesse, se me fosse dado escolher, queria ser um ouriço-cacheiro para que ninguém tivesse o poder de me magoar, para que me bastasse encolher-me para afastar o perigo. É que esta condição de não poder ser ilha e ter de criar laços com os outros, esta condição demasiado humana de ficar sujeito ao impacto que o que os outros fazem tem na nossa vida é tremendamente angustiante e às vezes apetece mesmo fazer uma pausa desta contingência.
Confúcio disse que a vida é simples, nós é que temos a mania de a complicar. Em parte, isto é bem verdade: tudo pode ser simples, se todos estivermos conscientes de que podemos ser causa de infelicidade para os outros e, portanto, devemos a todo o custo evitá-lo. Porém, tudo se complica quando cada um desata a viver a sua própria vida, sem olhar a mais nada e, por arrasto, lixa a vida do outro, que se torna um dano colateral das suas acções. Aí é que tudo fica uma novela mexicana sem ponta por onde se lhe pegue: uns a chorarem para um lado, outros a chorarem para o outro, uns a gritarem «Ai, que sacanice que me fizeram!», outros a dizerem «Realmente, fui um grande sacana, mas eu cá tive as minhas razões.». E depois o enredo da novela ganha vida própria, assume contornos de grande ecrã e história de ficção que contada ninguém acredita, nada volta a entrar nos eixos, por muito que se queira, e fica tudo uma grande embrulhada da qual ninguém sai ileso.
Suponho que, aos ouriços-cacheiros, seja relativamente fácil esquecer. Suponho que, uma vez afastado o perigo, não reste mais nada que atormente, mas aos humanos, depois de passada a tempestade, resta sempre a memória. E a memória reaviva sensações que quando são más são terríveis, nos petrificam e, por muito nobre que seja o nosso coração e muito férrea que seja a nossa vontade, nos impedem de deixar de sentir um aperto na garganta quando elas afloram. Mais um motivo para invejar a sorte dos ouriços-cacheiros.
Às vezes, viver a nossa própria vida tem um impacto brutal na vida dos outros. Às vezes, as nossas opções e actos têm a virtualidade de destruir pedaços importantes das estruturas alheias. Isto não significa que devemos deixar de optar e agir, embora às vezes não fosse mau não fazer tudo o que nos dá na real gana, ainda que tenhamos as nossas íntimas razões que nos reconfortam muito na hora de nos justificarmos. Significa apenas que temos de estar conscientes de que aquele impacto ocorrerá, de que aquela destruição terá lugar. Significa, também, que teremos de passar o resto da vida a deitar a cabeça na almofada com a perfeita noção de que um dia tivemos um papel determinante para que assim fosse, porque, tal como temos memória do que nos fizeram, de bom e de mau, sempre teremos memória do que fizemos, de bom e de mau. E ainda há a história do olhar para o nosso próprio retrato e ver que não difere muito do de Dorian Gray, mas isso é só para os mariquinhas pé-de-salsa como eu, que apreciam romances poéticos e fatalistas.
Pela minha parte, acredito que é possível cada um viver a sua vida sem lixar a vida do parceiro. Acredito nisso porque, aos trinta anos, deito a cabeça na almofada com a satisfação de ainda não o ter feito e não me acho nada de especial por isso: só me acho minimamente decente. E se já me aguentei trinta anos, acalento a esperança de aguentar outros trinta, porque sou muito ciosa do meu carácter e deposito grande esperança em mim.
Porém, mais do que isso, o que eu gostava mesmo era de poder deitar a cabeça na almofada sem esta sensação horrenda que é a de que já houve quem, para viver a sua vida, tenha lixado a minha com estrondo. Gostava de não ter de lidar com esta angústia de ter sido estupidamente magoada por quem menos esperava. Gostava de não ter de lidar com a memória de uma dor que poderia, em grande parte, ter sido evitada. Gostava de não ter de olhar para quem me magoou e, sem nenhum esforço para isso, me recordar que o fez, tenha sido lá pelos motivos que tenha sido. É que, com muita pena minha, quando dói, os motivos de cada um não são analgésico e ainda está por inventar o palavreado que provoque amnésia.
Sei que tudo isto é absolutamente irrealista. Sei que o que estou a dizer é que gostava de não levar abanões, de não "crescer" pela dor, de não me fortalecer pela angústia e pela porradinha da vida. Sei que isto é assumir que o que eu gostava era que tudo fosse simples e tranquilo, maravilhoso e idílico, durante a minha passagem pela Terra. A verdade é que há dias em que gostava mesmo. Gostava mesmo que aqueles com quem criei laços não me obrigassem a sofrer desalmadamente, durante uma data de tempo que leva uma eternidade a passar e me desgasta emocionalmente com custos enormes para mim, só para viverem as suas ricas vidinhas, porque creio piamente que poderíamos ser todos muito felizes sem termos de nos andar a estropiar uns aos outros. Gostava mesmo de só ter de sofrer por causa de pessoas em quem não investi, a quem não me dediquei e a quem não votei afectos. Gostava mesmo que as minhas feridas não tivessem nomes, que fossem todas de gente anónima a quem nunca dei abraços e com quem nunca me sentei à mesa. Gostava, admito, porque seria tudo muito mais bonito de se ver, ninguém ficava mal na fotografia e eu não teria estas tristes historietas mirabolantes para contar aos netinhos quando for muito velha. Gostava, palavra de honra que gostava mesmo que, em dias como o de hoje, me fosse dado escolher ser um ouriço-cacheiro.
Como não é, vou ali fazer-me à vida, que ela continua e eu não quero perder pitada de tudo de bom que ainda está para me acontecer. Porque eu mereço: tenho as contas acertadas por uns bons anos.
© [m.m. botelho]
O que sinto, neste momento da minha vida - e isto não é auto-comiseração nenhuma, é uma simples constatação, que as coisas são para serem ditas quando se tem ovários para as dizer - é que fui um dano colateral de uma guerra que nem sequer era minha. O que sinto é que fui arrastada para um lodo que me era absolutamente alheio e que engoliu o que não era suposto ser engolido, porque eu não tinha nada que ver com ele. Podem dizer-me até à exaustão que as pessoas se limitaram a viver as suas vidas, que eu, dentro dos meus (chamem-lhe espartilhantes, que é para o lado que eu durmo melhor) princípios e valores, não consigo aceitar que se vivam vidas destruindo outras vidas. Há sempre, pelo menos, duas maneiras de fazer as coisas: a certa e a errada. E, às vezes, no melhor pano cai a nódoa, que é como quem diz, até o mais esforçado dos seres faz as coisas do pior modo possível.
Sei que cada um de nós é o único responsável pela sua própria felicidade. Sei e concordo, mas também tenho a destreza de ver que cada um de nós pode ser causa de infelicidade para os outros. E, convenhamos, cada um de nós até pode fazer tudo pela sua felicidade, que se outros vierem espalhar cinzano no que foi semeado, não há cá milagres que salvem a colheita.
Ao longo de anos, sempre fui exemplar para com todos os envolvidos nesta guerra da qual sou um dano colateral. Nunca os traí, nunca lhes fui desleal, sempre me empenhei no melhor para eles, sempre lhes tive o maior respeito, consideração e amor. Em suma, sempre fiz tudo o que podia para não ser causa da sua infelicidade. Posso até não ter feito muito pela sua felicidade, mas se há coisa que não fiz foi ser causa da sua infelicidade.
O que tive em troca, contudo, não foi o mesmo. Podem até não ter feito muito pela minha felicidade, mas a dado passo tiveram um papel determinante na minha infelicidade. E isso, ser causa de infelicidade do outro, é uma trampa que não se faz a ninguém, muito menos a quem sempre nos tratou bem, nos deu o melhor que tinha e nos amou.
Ah, se eu pudesse, queria ser como o ouriço-cacheiro, que se fecha em si mesmo e não permite que os outros o magoem! Se eu pudesse, queria ter a possibilidade de não permitir que alguém pudesse causar-me dor. Sucede que não posso, que ninguém pode.
Por muito defendidos que sejamos, por muito leais e amantíssimos que sejamos para não despertar a fúria das energias cósmicas, ninguém pode proteger-se dos outros quando os outros optam mesmo por nos sacrificar no seu altar das oblações ao próprio umbigo. Ninguém consegue comandar a vida dos outros de forma a que as suas escolhas, os seus actos, as suas palavras não sejam para nós causa de infelicidade. E não me venham com a conversa de que as pessoas só nos magoam se nós quisermos, porque isso é uma grandessíssima treta. As pessoas magoam-nos se quiserem magoar-nos - ponto - e é fácil perceber porquê: porque todos nos movimentamos num universo de afectos, já que o que nos une é o amor e o respeito que temos uns pelos outros, nada mais. E sendo que a condição humana é amar para ligar, está criado o cenário para que todos aqueles que amamos possam magoar-nos e para que possamos magoar todos aqueles que nos amam.
Isto não é, portanto, uma questão de "empowerment". Isto é, tão-somente, a vida dos homens, pura e dura, em todo o seu esplendor. Quem não vive isolado, quem cria laços de afecto, deixa de ter a possibilidade de controlar a sua própria dor, porque ela passa a poder ser causada por aqueles com quem esses laços são estabelecidos. Não é possível criar laços sem dar esse flanco. Não é possível evitar que assim seja de maneira nenhuma.
O que sobra, então? Sobra a consciência que cada um tem de ter de que, não sendo necessariamente motivo de felicidade para o outro, pode ser motivo da sua infelicidade. Sobra a crença de que aqueles que amamos e a quem estamos ligados terão a amabilidade de não ser causa da nossa infelicidade. Sobra a nossa dignidade de não querermos ser causa da infelicidade alheia.
Não se trata de diabolizar as pessoas. Trata-se de reconhecer a cada um de nós um poder que tem, de facto, um poder que adquire a partir do momento em que cria laços com o outro. Se pudéssemos ser todos ouriços-cacheiros, estaríamos todos muito tranquilos na nossa protecção espinhosa e aí cada um podia fazer trinta por uma linha porque estávamos todos cada um por si. Mas nós só podemos ser humanos, logo, tremendamente desprotegidos pelos afectos que nós mesmos alimentamos.
Se eu pudesse, se me fosse dado escolher, queria ser um ouriço-cacheiro para que ninguém tivesse o poder de me magoar, para que me bastasse encolher-me para afastar o perigo. É que esta condição de não poder ser ilha e ter de criar laços com os outros, esta condição demasiado humana de ficar sujeito ao impacto que o que os outros fazem tem na nossa vida é tremendamente angustiante e às vezes apetece mesmo fazer uma pausa desta contingência.
Confúcio disse que a vida é simples, nós é que temos a mania de a complicar. Em parte, isto é bem verdade: tudo pode ser simples, se todos estivermos conscientes de que podemos ser causa de infelicidade para os outros e, portanto, devemos a todo o custo evitá-lo. Porém, tudo se complica quando cada um desata a viver a sua própria vida, sem olhar a mais nada e, por arrasto, lixa a vida do outro, que se torna um dano colateral das suas acções. Aí é que tudo fica uma novela mexicana sem ponta por onde se lhe pegue: uns a chorarem para um lado, outros a chorarem para o outro, uns a gritarem «Ai, que sacanice que me fizeram!», outros a dizerem «Realmente, fui um grande sacana, mas eu cá tive as minhas razões.». E depois o enredo da novela ganha vida própria, assume contornos de grande ecrã e história de ficção que contada ninguém acredita, nada volta a entrar nos eixos, por muito que se queira, e fica tudo uma grande embrulhada da qual ninguém sai ileso.
Suponho que, aos ouriços-cacheiros, seja relativamente fácil esquecer. Suponho que, uma vez afastado o perigo, não reste mais nada que atormente, mas aos humanos, depois de passada a tempestade, resta sempre a memória. E a memória reaviva sensações que quando são más são terríveis, nos petrificam e, por muito nobre que seja o nosso coração e muito férrea que seja a nossa vontade, nos impedem de deixar de sentir um aperto na garganta quando elas afloram. Mais um motivo para invejar a sorte dos ouriços-cacheiros.
Às vezes, viver a nossa própria vida tem um impacto brutal na vida dos outros. Às vezes, as nossas opções e actos têm a virtualidade de destruir pedaços importantes das estruturas alheias. Isto não significa que devemos deixar de optar e agir, embora às vezes não fosse mau não fazer tudo o que nos dá na real gana, ainda que tenhamos as nossas íntimas razões que nos reconfortam muito na hora de nos justificarmos. Significa apenas que temos de estar conscientes de que aquele impacto ocorrerá, de que aquela destruição terá lugar. Significa, também, que teremos de passar o resto da vida a deitar a cabeça na almofada com a perfeita noção de que um dia tivemos um papel determinante para que assim fosse, porque, tal como temos memória do que nos fizeram, de bom e de mau, sempre teremos memória do que fizemos, de bom e de mau. E ainda há a história do olhar para o nosso próprio retrato e ver que não difere muito do de Dorian Gray, mas isso é só para os mariquinhas pé-de-salsa como eu, que apreciam romances poéticos e fatalistas.
Pela minha parte, acredito que é possível cada um viver a sua vida sem lixar a vida do parceiro. Acredito nisso porque, aos trinta anos, deito a cabeça na almofada com a satisfação de ainda não o ter feito e não me acho nada de especial por isso: só me acho minimamente decente. E se já me aguentei trinta anos, acalento a esperança de aguentar outros trinta, porque sou muito ciosa do meu carácter e deposito grande esperança em mim.
Porém, mais do que isso, o que eu gostava mesmo era de poder deitar a cabeça na almofada sem esta sensação horrenda que é a de que já houve quem, para viver a sua vida, tenha lixado a minha com estrondo. Gostava de não ter de lidar com esta angústia de ter sido estupidamente magoada por quem menos esperava. Gostava de não ter de lidar com a memória de uma dor que poderia, em grande parte, ter sido evitada. Gostava de não ter de olhar para quem me magoou e, sem nenhum esforço para isso, me recordar que o fez, tenha sido lá pelos motivos que tenha sido. É que, com muita pena minha, quando dói, os motivos de cada um não são analgésico e ainda está por inventar o palavreado que provoque amnésia.
Sei que tudo isto é absolutamente irrealista. Sei que o que estou a dizer é que gostava de não levar abanões, de não "crescer" pela dor, de não me fortalecer pela angústia e pela porradinha da vida. Sei que isto é assumir que o que eu gostava era que tudo fosse simples e tranquilo, maravilhoso e idílico, durante a minha passagem pela Terra. A verdade é que há dias em que gostava mesmo. Gostava mesmo que aqueles com quem criei laços não me obrigassem a sofrer desalmadamente, durante uma data de tempo que leva uma eternidade a passar e me desgasta emocionalmente com custos enormes para mim, só para viverem as suas ricas vidinhas, porque creio piamente que poderíamos ser todos muito felizes sem termos de nos andar a estropiar uns aos outros. Gostava mesmo de só ter de sofrer por causa de pessoas em quem não investi, a quem não me dediquei e a quem não votei afectos. Gostava mesmo que as minhas feridas não tivessem nomes, que fossem todas de gente anónima a quem nunca dei abraços e com quem nunca me sentei à mesa. Gostava, admito, porque seria tudo muito mais bonito de se ver, ninguém ficava mal na fotografia e eu não teria estas tristes historietas mirabolantes para contar aos netinhos quando for muito velha. Gostava, palavra de honra que gostava mesmo que, em dias como o de hoje, me fosse dado escolher ser um ouriço-cacheiro.
Como não é, vou ali fazer-me à vida, que ela continua e eu não quero perder pitada de tudo de bom que ainda está para me acontecer. Porque eu mereço: tenho as contas acertadas por uns bons anos.
© [m.m. botelho]