Decidi, nos primeiros dias deste mês, cortar os cabelos. Pus-me a fazer contas à vida, à chegada da Primavera, ao tamanho já considerável da autêntica "juba" com que os Céus me presentearam e achei que era o tempo certo para lhe dar umas belas tesouradas. Como "disponibilidade" é algo que não tenho em abundância e não prevejo que venha a ter nos próximos meses, decidi também dar o benefício da dúvida a novas mãos que fizessem o corte, para evitar a deslocação de 60 quilómetros a que obrigaria deixar-me aos cuidados do meu cabeleireiro de eleição há já uns bons anos.
Uma das primeiras coisas em que reparo quando conheço alguém é no aspecto dos cabelos. Não tanto no corte, mas no aprumo, na saúde, na elegância com que caem. Curiosamente, nunca dei grande importância aos meus cabelos. Naturalmente encaracolados, desde que lavados têm sempre bom aspecto. Não preciso de usar champôs ou máscaras especiais, não preciso de lhes votar cuidados intensivos, basta lavá-los e secá-los (mesmo sem espuma ou difusor) para estarem sempre à altura.
Assim, confiante de que se trataria de apenas mais um corte, de apenas mais um acto de manutenção, reservei uma hora após o almoço e lá fui tratar do assunto. Pedi, simplesmente, que cortassem uns bons 10 centímetros, mantendo o corte a direito atrás (único aspecto que vai variando consoante a moda) e escadeado à frente, o qual deveria começar a ser feito no tamanho necessário a que, se eu quisesse, pudesse prender a madeixa da frente atrás da orelha. Raramente prendo os cabelos atrás das orelhas, mas gosto sempre de ter essa possibilidade, não vá ser preciso por algum motivo (sim, tenho a mania de achar que sou previdente). Gosto de saber que tenho essa possibilidade, tal como, quando os cabelos estão mais crescidos, gosto de os apanhar em rabo-de-cavalo com uma madeixa fina que vou buscar à nuca, sem precisar de elásticos.
O corte lá começou. Eu, desconfortável como sempre por estarem a mexer-me nos cabelos, escolhi-me na cadeira e procurei pensar no que teria de fazer a seguir, tentando que o tempo passasse mais depressa. Quando a empreitada foi dada por finda, abri os olhos e tudo me pareceu normal. Mais por insistência alheia do que por minha vontade, saí do cabeleireiro com os cabelos esticados e, uma vez mais, tudo parecia igual ao de sempre.
Uma das primeiras coisas em que reparo quando conheço alguém é no aspecto dos cabelos. Não tanto no corte, mas no aprumo, na saúde, na elegância com que caem. Curiosamente, nunca dei grande importância aos meus cabelos. Naturalmente encaracolados, desde que lavados têm sempre bom aspecto. Não preciso de usar champôs ou máscaras especiais, não preciso de lhes votar cuidados intensivos, basta lavá-los e secá-los (mesmo sem espuma ou difusor) para estarem sempre à altura.
Assim, confiante de que se trataria de apenas mais um corte, de apenas mais um acto de manutenção, reservei uma hora após o almoço e lá fui tratar do assunto. Pedi, simplesmente, que cortassem uns bons 10 centímetros, mantendo o corte a direito atrás (único aspecto que vai variando consoante a moda) e escadeado à frente, o qual deveria começar a ser feito no tamanho necessário a que, se eu quisesse, pudesse prender a madeixa da frente atrás da orelha. Raramente prendo os cabelos atrás das orelhas, mas gosto sempre de ter essa possibilidade, não vá ser preciso por algum motivo (sim, tenho a mania de achar que sou previdente). Gosto de saber que tenho essa possibilidade, tal como, quando os cabelos estão mais crescidos, gosto de os apanhar em rabo-de-cavalo com uma madeixa fina que vou buscar à nuca, sem precisar de elásticos.
O corte lá começou. Eu, desconfortável como sempre por estarem a mexer-me nos cabelos, escolhi-me na cadeira e procurei pensar no que teria de fazer a seguir, tentando que o tempo passasse mais depressa. Quando a empreitada foi dada por finda, abri os olhos e tudo me pareceu normal. Mais por insistência alheia do que por minha vontade, saí do cabeleireiro com os cabelos esticados e, uma vez mais, tudo parecia igual ao de sempre.
© [m.m. botelho]
Porém, no dia seguinte, quando voltei ao look encaracolado, apercebi-me de que o comprimento correspondia ao meu pedido, mas o escadeado tinha começado cedo demais, isto é, não à altura do lóbulo da orelha, mas precisamente acima da orelha. Com os caracóis formados, era impossível prender muitos dos meus cabelos quer atrás da orelha, quer com um entrançado feito com uma madeixa fina de cabelos de cada um dos lados da cabeça, como faço muitas vezes.
Dei por mim muitíssimo incomodada com o facto. Nunca imaginei, confesso, que algo como isto me incomodasse tanto, logo a mim, que nunca dei assim grande importância aos cabelos. Está bom de ver. Nunca dei muita importância aos cabelos, achava eu! Claro que dava, claro que sempre dei! Sucede que sempre tive a sorte de os cortes terem ficado exactamente como eu queria, o que criou em mim a convicção de que eu não me preocupava com o assunto. Porém, na verdade, só não me preocupava porque não tinha por que me preocupar.
Ora, esta conclusão aplica-se (como nós, juristas, gostamos de dizer), mutatis mutandis, a outros domínios da minha vida em relação aos quais eu não me preocupava ou mesmo achava que não tinha de me preocupar. Como durante largo tempo tudo corria como era expectável, como era suposto, como sempre, como dantes, não me passava sequer pela cabeça que fosse necessário readaptar-me a novos cenários, mas a vida lá vem, de mansinho, quando menos esperamos, mostrar-nos que os alicerces são todos eles passíveis de derrocada e que é preciso estar preparado para tudo.
Às vezes, não estamos e, após a derrocada, lá temos nós de tactear por entre os escombros, tentando manter-nos vivos a todo o custo. Durante esse período de autêntica sobrevivência (não encontro melhor designação para lhe dar), podemos encarnar verdadeiros elefantes em lojas de porcelana, sôfregos de protecção, cheios de defesas, temendo nunca sermos capazes de limpar o amontoado de destruição que nos rodeia e que, por isso, o sol nunca mais volte a iluminar-nos e a aquecer-nos. Nessas alturas, nem tudo o que fazemos é bem feito. Às vezes, são vários os elefantes dentro da mesmo loja de porcelana e os estragos são grandes. Graças a nós, porém, graças a cada um de nós, os elefantes vão diminuindo de tamanho e os estragos acabam por diminuir também, ou mesmo cessar.
Conforta-me a ideia de que os meus cabelos haverão de crescer. Sei que chegará o dia em que, ainda que não o faça, terei a possibilidade de, querendo, os prender atrás das orelhas ou os prender com uma fina madeixa colhida de cada um dos lados da cabeça. Até lá, procuro alternativas que surtam o efeito desejado, que é o de que os cabelos não me atrapalhem o dia-a-dia: uma franja mais inclinada, gel de fixação em spray ou mesmo «a nervous tick motion of the head to the left», como canta o Andrew Bird.
Quem sabe se, daqui a uns tempos, eu não estou a apreciar mais este penteado do que o anterior? E quem sabe se as porcelanas quebradas pelos desajeitados elefantes nos seus períodos de sobrevivência não devem mesmo ser substituídas por porcelanas novas, reluzentes, contemporâneas? Daqui a uns meses, pelo menos quanto aos cabelos, eu saberei. E quanto ao resto, logo se verá. Procuro ser lesta em fazer aquilo que depende de mim e que considero essencial e positivo para mim e uma das melhores partes de tudo isto é ouvir, da boca de pessoas várias, que isso «já se nota e é bom». É bom, sim, ter a sabedoria para entender que a vida é longa e, a cada dia que passa, ter cada vez menos pressa de chegar ao seu fim. É isto que «já se nota», provavelmente, quando perante um corte de cabelo que me deixou tão incomodada como este me deixou eu digo, tranquilamente, que ele haverá, a seu tempo, de voltar a crescer.
© [m.m. botelho]
Dei por mim muitíssimo incomodada com o facto. Nunca imaginei, confesso, que algo como isto me incomodasse tanto, logo a mim, que nunca dei assim grande importância aos cabelos. Está bom de ver. Nunca dei muita importância aos cabelos, achava eu! Claro que dava, claro que sempre dei! Sucede que sempre tive a sorte de os cortes terem ficado exactamente como eu queria, o que criou em mim a convicção de que eu não me preocupava com o assunto. Porém, na verdade, só não me preocupava porque não tinha por que me preocupar.
Ora, esta conclusão aplica-se (como nós, juristas, gostamos de dizer), mutatis mutandis, a outros domínios da minha vida em relação aos quais eu não me preocupava ou mesmo achava que não tinha de me preocupar. Como durante largo tempo tudo corria como era expectável, como era suposto, como sempre, como dantes, não me passava sequer pela cabeça que fosse necessário readaptar-me a novos cenários, mas a vida lá vem, de mansinho, quando menos esperamos, mostrar-nos que os alicerces são todos eles passíveis de derrocada e que é preciso estar preparado para tudo.
Às vezes, não estamos e, após a derrocada, lá temos nós de tactear por entre os escombros, tentando manter-nos vivos a todo o custo. Durante esse período de autêntica sobrevivência (não encontro melhor designação para lhe dar), podemos encarnar verdadeiros elefantes em lojas de porcelana, sôfregos de protecção, cheios de defesas, temendo nunca sermos capazes de limpar o amontoado de destruição que nos rodeia e que, por isso, o sol nunca mais volte a iluminar-nos e a aquecer-nos. Nessas alturas, nem tudo o que fazemos é bem feito. Às vezes, são vários os elefantes dentro da mesmo loja de porcelana e os estragos são grandes. Graças a nós, porém, graças a cada um de nós, os elefantes vão diminuindo de tamanho e os estragos acabam por diminuir também, ou mesmo cessar.
Conforta-me a ideia de que os meus cabelos haverão de crescer. Sei que chegará o dia em que, ainda que não o faça, terei a possibilidade de, querendo, os prender atrás das orelhas ou os prender com uma fina madeixa colhida de cada um dos lados da cabeça. Até lá, procuro alternativas que surtam o efeito desejado, que é o de que os cabelos não me atrapalhem o dia-a-dia: uma franja mais inclinada, gel de fixação em spray ou mesmo «a nervous tick motion of the head to the left», como canta o Andrew Bird.
Quem sabe se, daqui a uns tempos, eu não estou a apreciar mais este penteado do que o anterior? E quem sabe se as porcelanas quebradas pelos desajeitados elefantes nos seus períodos de sobrevivência não devem mesmo ser substituídas por porcelanas novas, reluzentes, contemporâneas? Daqui a uns meses, pelo menos quanto aos cabelos, eu saberei. E quanto ao resto, logo se verá. Procuro ser lesta em fazer aquilo que depende de mim e que considero essencial e positivo para mim e uma das melhores partes de tudo isto é ouvir, da boca de pessoas várias, que isso «já se nota e é bom». É bom, sim, ter a sabedoria para entender que a vida é longa e, a cada dia que passa, ter cada vez menos pressa de chegar ao seu fim. É isto que «já se nota», provavelmente, quando perante um corte de cabelo que me deixou tão incomodada como este me deixou eu digo, tranquilamente, que ele haverá, a seu tempo, de voltar a crescer.
© [m.m. botelho]