19.2.12

ele haverá de voltar a crescer

Decidi, nos primeiros dias deste mês, cortar os cabelos. Pus-me a fazer contas à vida, à chegada da Primavera, ao tamanho já considerável da autêntica "juba" com que os Céus me presentearam e achei que era o tempo certo para lhe dar umas belas tesouradas. Como "disponibilidade" é algo que não tenho em abundância e não prevejo que venha a ter nos próximos meses, decidi também dar o benefício da dúvida a novas mãos que fizessem o corte, para evitar a deslocação de 60 quilómetros a que obrigaria deixar-me aos cuidados do meu cabeleireiro de eleição há já uns bons anos.

Uma das primeiras coisas em que reparo quando conheço alguém é no aspecto dos cabelos. Não tanto no corte, mas no aprumo, na saúde, na elegância com que caem. Curiosamente, nunca dei grande importância aos meus cabelos. Naturalmente encaracolados, desde que lavados têm sempre bom aspecto. Não preciso de usar champôs ou máscaras especiais, não preciso de lhes votar cuidados intensivos, basta lavá-los e secá-los (mesmo sem espuma ou difusor) para estarem sempre à altura.

Assim, confiante de que se trataria de apenas mais um corte, de apenas mais um acto de manutenção, reservei uma hora após o almoço e lá fui tratar do assunto. Pedi, simplesmente, que cortassem uns bons 10 centímetros, mantendo o corte a direito atrás (único aspecto que vai variando consoante a moda) e escadeado à frente, o qual deveria começar a ser feito no tamanho necessário a que, se eu quisesse, pudesse prender a madeixa da frente atrás da orelha. Raramente prendo os cabelos atrás das orelhas, mas gosto sempre de ter essa possibilidade, não vá ser preciso por algum motivo (sim, tenho a mania de achar que sou previdente). Gosto de saber que tenho essa possibilidade, tal como, quando os cabelos estão mais crescidos, gosto de os apanhar em rabo-de-cavalo com uma madeixa fina que vou buscar à nuca, sem precisar de elásticos.

O corte lá começou. Eu, desconfortável como sempre por estarem a mexer-me nos cabelos, escolhi-me na cadeira e procurei pensar no que teria de fazer a seguir, tentando que o tempo passasse mais depressa. Quando a empreitada foi dada por finda, abri os olhos e tudo me pareceu normal. Mais por insistência alheia do que por minha vontade, saí do cabeleireiro com os cabelos esticados e, uma vez mais, tudo parecia igual ao de sempre.

© [m.m. botelho]

Porém, no dia seguinte, quando voltei ao look encaracolado, apercebi-me de que o comprimento correspondia ao meu pedido, mas o escadeado tinha começado cedo demais, isto é, não à altura do lóbulo da orelha, mas precisamente acima da orelha. Com os caracóis formados, era impossível prender muitos dos meus cabelos quer atrás da orelha, quer com um entrançado feito com uma madeixa fina de cabelos de cada um dos lados da cabeça, como faço muitas vezes.

Dei por mim muitíssimo incomodada com o facto. Nunca imaginei, confesso, que algo como isto me incomodasse tanto, logo a mim, que nunca dei assim grande importância aos cabelos. Está bom de ver. Nunca dei muita importância aos cabelos, achava eu! Claro que dava, claro que sempre dei! Sucede que sempre tive a sorte de os cortes terem ficado exactamente como eu queria, o que criou em mim a convicção de que eu não me preocupava com o assunto. Porém, na verdade, só não me preocupava porque não tinha por que me preocupar.

Ora, esta conclusão aplica-se (como nós, juristas, gostamos de dizer), mutatis mutandis, a outros domínios da minha vida em relação aos quais eu não me preocupava ou mesmo achava que não tinha de me preocupar. Como durante largo tempo tudo corria como era expectável, como era suposto, como sempre, como dantes, não me passava sequer pela cabeça que fosse necessário readaptar-me a novos cenários, mas a vida lá vem, de mansinho, quando menos esperamos, mostrar-nos que os alicerces são todos eles passíveis de derrocada e que é preciso estar preparado para tudo.

Às vezes, não estamos e, após a derrocada, lá temos nós de tactear por entre os escombros, tentando manter-nos vivos a todo o custo. Durante esse período de autêntica sobrevivência (não encontro melhor designação para lhe dar), podemos encarnar verdadeiros elefantes em lojas de porcelana, sôfregos de protecção, cheios de defesas, temendo nunca sermos capazes de limpar o amontoado de destruição que nos rodeia e que, por isso, o sol nunca mais volte a iluminar-nos e a aquecer-nos. Nessas alturas, nem tudo o que fazemos é bem feito. Às vezes, são vários os elefantes dentro da mesmo loja de porcelana e os estragos são grandes. Graças a nós, porém, graças a cada um de nós, os elefantes vão diminuindo de tamanho e os estragos acabam por diminuir também, ou mesmo cessar.

Conforta-me a ideia de que os meus cabelos haverão de crescer. Sei que chegará o dia em que, ainda que não o faça, terei a possibilidade de, querendo, os prender atrás das orelhas ou os prender com uma fina madeixa colhida de cada um dos lados da cabeça. Até lá, procuro alternativas que surtam o efeito desejado, que é o de que os cabelos não me atrapalhem o dia-a-dia: uma franja mais inclinada, gel de fixação em spray ou mesmo «a nervous tick motion of the head to the left», como canta o Andrew Bird.

Quem sabe se, daqui a uns tempos, eu não estou a apreciar mais este penteado do que o anterior? E quem sabe se as porcelanas quebradas pelos desajeitados elefantes nos seus períodos de sobrevivência não devem mesmo ser substituídas por porcelanas novas, reluzentes, contemporâneas? Daqui a uns meses, pelo menos quanto aos cabelos, eu saberei. E quanto ao resto, logo se verá. Procuro ser lesta em fazer aquilo que depende de mim e que considero essencial e positivo para mim e uma das melhores partes de tudo isto é ouvir, da boca de pessoas várias, que isso «já se nota e é bom». É bom, sim, ter a sabedoria para entender que a vida é longa e, a cada dia que passa, ter cada vez menos pressa de chegar ao seu fim. É isto que «já se nota», provavelmente, quando perante um corte de cabelo que me deixou tão incomodada como este me deixou eu digo, tranquilamente, que ele haverá, a seu tempo, de voltar a crescer.

© [m.m. botelho]

eu

[m.m. botelho] || Marta Madalena Botelho
blogues: viagens interditas [textos] || vermelho.intermitente [textos]
e-mail: viagensinterditas @ gmail . com [remover os espaços]

blogues

os meus refúgios || 2 dedos de conversa || 30 and broke || a causa foi modificada [off] || a cidade dos prodígios || a cidade surpreendente || a curva da estrada || a destreza das dúvidas || a dobra do grito || a livreira anarquista || a mulher que viveu duas vezes || a outra face da cidade surpreendente || a minha vida não é isto || a montanha mágica || a namorada de wittgenstein || a natureza do mal || a tempo e a desmodo || a terceira noite || as folhas ardem || aba da causa || adufe || ágrafo || ainda não começámos a pensar || albergue dos danados || alexandre soares silva [off] || almocreve das petas [off] || animais domésticos || associação josé afonso || ana de amsterdam || antónio sousa homem || atum bisnaga || avatares de um desejo || beira-tejo || blecaute-boi || bibliotecário de babel || blogtailors || blogue do jornal de letras || bolha || bomba inteligente || cadeirão voltaire || café central || casadeosso || causa nossa || ciberescritas || cibertúlia || cine highlife || cinerama || coisas do arco da velha || complexidade e contradição || córtex frontal [off] || crítico musical [off] || dados pessoais || da literatura || devaneios || diário de sombras || dias assim || dias felizes || dias im[perfeitos] || dias úteis || educação irracional || entre estantes || explodingdog > building a world || f, world [guests only] || fogo posto || francisco josé viegas - crónicas || french kissin' || gato vadio [livraria] || guilhermina suggia || guitarra de coimbra 4 [off] || húmus. blogue rascunho.net || il miglior fabbro || imitation of life || indústrias culturais || inércia introversão intusiasmo || insónia || interlúdio || irmão lúcia || jugular || lei e ordem || lei seca [guests only] || leitura partilhada || ler || literatura e arte || little black spot || made in lisbon || maiúsculas [off] || mais actual || medo do medo || menina limão || menino mau || miss pearls || modus vivendi || monsieur|ego || moody swing || morfina || mundo pessoa || noite americana || nuno gomes lopes || nu singular || o amigo do povo || o café dos loucos || o mundo de cláudia || o que cai dos dias || os livros ardem mal || os meus livros || oldies and goldies || orgia literária || ouriquense || paulo pimenta diários || pedro rolo duarte || pequenas viagens || photospathos || pipoco mais salgado || pó dos livros || poesia || poesia & lda. || poetry café || ponto media || poros || porto (.) ponto || postcard blues [off] || post secret || p.q.p. bach || pura coincidência || quadripolaridades || quarta república || quarto interior || quatro caminhos || quintas de leitura || rua da judiaria || saídos da concha || são mamede - cae de guimarães || sem compromisso || semicírculo || sem pénis nem inveja || sem-se-ver || sound + vision || teatro anatómico || the ballad of the broken birdie || the sartorialist || theoria poiesis praxis || theatro circo || there's only 1 alice || torreão sul || ultraperiférico || um amor atrevido || um blog sobre kleist || um voo cego a nada || vida breve || vidro duplo || vodka 7 || vontade indómita || voz do deserto || we'll always have paris || zarp.blog

cultura e lazer

agenda cultural de braga || agenda cultura de évora || agenda cultural de lisboa || agenda cultural do porto || agenda cultural do ministério da cultura || agenda cultural da universidade de coimbra || agenda de concertos - epilepsia emocional || amo.te || biblioteca nacional || CAE figueira da foz || café guarany || café majestic || café teatro real feitorya || caixa de fantasia || casa agrícola || casa das artes de vila nova de famalicão || casa da música || centro cultural de belém || centro nacional de cultura || centro português de fotografia || cinecartaz || cinema 2000 || cinema passos manuel || cinema português || cinemas medeia || cinemateca portuguesa || clube de leituras || clube literário do porto || clube português artes e ideias || coliseu do porto || coliseu dos recreios || companhia nacional de bailado || culturgest || culturgest porto || culturporto [rivoli] || culturweb || delegação regional da cultura do alentejo || delegação regional da cultura do algarve || delegação regional da cultura do centro || delegação regional da cultura do norte || e-cultura || egeac || era uma vez no porto || europarque || fábrica de conteúdos || fonoteca || fundação calouste gulbenkian || fundação de serralves || fundação engenheiro antónio almeida || fundação mário soares || galeria zé dos bois || hard club || instituto das artes || instituto do cinema, audiovisual e multimédia || instituto português da fotografia || instituto português do livro e da biblioteca || maus hábitos || mercado das artes || mercado negro || museu nacional soares dos reis || o porto cool || plano b || porto XXI || rede cultural || santiago alquimista || são mamede - centro de artes e espectáculos de guimarães || sapo cultura || serviço de música da fundação calouste gulbenkian || teatro académico gil vicente || teatro aveirense || teatro do campo alegre || theatro circo || teatro helena sá e costa || teatro municipal da guarda || teatro nacional de são carlos || teatro nacional de são joão || teatropólis || ticketline || trintaeum. café concerto rivoli

leituras e informação

365 [revista] || a cabra - jornal universitário de coimbra || a oficina [centro cultural vila flor - guimarães] || a phala || afrodite [editora] || águas furtadas [revista] || angelus novus [editora] || arquitectura viva || arte capital || assírio & alvim [editora] || associação guilhermina suggia || attitude [revista] || blitz [revista] || bodyspace || book covers || cadernos de tipografia || cosmorama [editora] || courrier international [jornal] || criatura revista] || crí­tica || diário de notícias [jornal] || el paí­s [jornal] || el mundo [jornal] || entre o vivo, o não-vivo e o morto || escaparate || eurozine || expresso [jornal] || frenesi [editora] || goldberg magazine [revista] || granta [revista] || guardian unlimited [jornal] || guimarães editores [editora] || jazz.pt || jornal de negócios [jornal] || jornal de notí­cias [jornal] || jusjornal [jornal] || kapa [revista] || la insignia || le cool [revista] || le monde diplomatique [jornal] || memorandum || minguante [revista] || mondo bizarre || mundo universitário [jornal] || os meus livros || nada || objecto cardí­aco [editora] || pc guia [revista] || pnethomem || pnetmulher || poets [AoAP] || premiere [revista] || prisma.com [revista] || público pt [jornal] || público es [jornal] || revista atlântica de cultura ibero-americana [revista] || rezo.net || rolling stone [revista] || rua larga [revista] || sol [jornal] || storm magazine [revista] || time europe [revista] || trama [editora] || TSF [rádio] || vanity fair [revista] || visão [revista]

direitos de autor dos textos

Os direitos de autor dos textos publicados neste blogue, com excepção das citações com autoria devidamente identificada, pertencem a © 2008-2019 Marta Madalena Botelho. É proibida a sua reprodução, ainda que com referência à autoria. Todos os direitos reservados.

direitos de autor das imagens

Os direitos de autor de todas as imagens publicadas neste blogue cuja autoria ou fonte não sejam identificadas como pertencendo a outras pessoas ou entidades pertencem a © 2008-2019 Marta Madalena Botelho. É proibida a sua reprodução ainda que com referência à autoria. Todos os direitos reservados.

algumas notas importantes sobre os direitos de autor

» O âmbito do direito de autor e os direitos conexos incidem a sua protecção sobre duas realidades: a tutela das obras e o reconhecimento dos respectivos direitos aos seus autores.
» O direito de autor protege as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas.
» Obras originais são as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, qualquer que seja o seu género, forma de expressão, mérito, modo de comunicação ou objecto.
» Uma obra encontra-se protegida, logo que é criada e fixada sob qualquer tipo de forma tangível de modo directo ou com a ajuda de uma máquina.
» A protecção das obras não está sujeita a formalização alguma. O direito de autor constitui-se pelo simples facto da criação, independentemente da sua divulgação, publicação, utilização ou registo.
» O titular da obra é, salvo estipulação em contrário, o seu criador.
» A obra não depende do conhecimento pelo público. Ela existe independente da sua divulgação, publicação, utilização ou exploração, apenas se lhe impondo, para beneficiar de protecção, que seja exteriorizada sob qualquer modo.
» O direito de autor pertence ao criador intelectual da obra, salvo disposição expressa em contrário.