7.12.09

um país barulhento

© explodingdog [02.12.2009]

A propósito do mais do que falado processo «Face Oculta» já se disseram e escreveram coisas que me fizeram rir, chorar, indignar, espantar, aplaudir e até aprender, apesar de todo o ruído, de todo o imenso ruído. Regra geral, o que mais me surpreende é dito ou escrito por pessoas que não dominam o suficiente o aspecto da matéria sobre o qual se pronunciam.
Por se tratar de um processo judicial (ainda que em fase de investigação), uma substancial parte das questões suscitadas dizem respeito ao mundo jurídico. Embora exista a crença, cada vez mais enraizada, de que o jurídico é acessível a qualquer um - «desde que saiba ler a Lei», como se tornou frequente ouvir e ler - a verdade é que cada vez mais se nota a falta de conhecimento das pessoas no que ao Direito respeita, espelhada na comunicação social, na blogosfera, em programas de opinião e demais espaços de expressão.
O caso torna-se mais delicado quando nem sequer se chega a ler a Lei antes de emitir opinião. Aparentemente, é o que terá sucedido com Eduardo Pitta, quando escreveu o seguinte: «Armando Vara foi indiciado por um crime de tráfico de influências. Vai ser obrigado a pagar uma caução de 25 mil euros, estando proibido de contactar quatro dos dezoito arguidos do processo. [...] Caiu por terra a fantasiosa acusação de ter recebido 10 mil euros, ou qualquer outra soma, para intermediar negócios de Manuel Godinho. E agora?».

Para comentar estas palavras de Eduardo Pitta é necessário pensar juridicamente, pois é de Direito que se trata, ou seja, é necessário fazer o raciocínio do jurista, que é constituído por etapas, antes de chegar a conclusões.
Vamos por partes.

I - Quais são os factos sob investigação que indiciam a prática por Armando Vara de um crime de tráfico de influências? São estes (e aqui guio-me pelo que foi veiculado pela comunicação social e pelo próprio arguido Armando Vara, quando negou os factos):
1. Armando Vara terá recebido a quantia de 10 mil euros;
2. a quantia ter-lhe-á sido entregue por Manuel Godinho;
3. o propósito quer da entrega, quer do recebimento da quantia era o de que Vara intercedesse junto das autoridades competentes de modo a assegurar que as empresas de Godinho venceriam concursos públicos para a prestação de serviços.

II - Por sua vez, o que consagra a norma jurídica que prevê a criminalização do tráfico de influências, a saber, o artigo 335.º do Código Penal? Consagra precisamente isto:
1 – Quem, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para abusar da sua influência, real ou suposta, junto de qualquer entidade pública, é punido:
a) Com pena de prisão de seis meses a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal, se o fim for o de obter uma qualquer decisão ilícita favorável;
b) Com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal, se o fim for o de obter uma qualquer decisão lícita favorável.
2 – Quem, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer vantagem patrimonial ou não patrimonial às pessoas referidas no número anterior para os fins previstos na alínea a) é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.


III - Vejamos, então, se os factos são subsumíveis no tipo de crime, ou seja, se existe correspondência entre os factos e aquilo que a norma dispõe (neste caso, interessa-nos apenas o n.º 1 do artigo 335.º do CP):
- se o facto é «Armando Vara terá recebido a quantia de 10 mil euros que lhe terá sido entregue por Manuel Godinho» e a norma dispõe que Quem, por si [...], com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si [...], vantagem patrimonial [...];
- e se o facto é «o propósito quer da entrega, quer do recebimento da quantia era o de que Vara intercedesse junto das autoridades competentes de modo a assegurar que as empresas de Godinho venceriam concursos públicos para a prestação de serviços» e a norma prevê que a vantagem seja solicitada ou recebida [...] para abusar da sua influência, real ou suposta, junto de qualquer entidade pública [...]
- forçoso é concluir que Armando Vara está indiciado pela prática de um crime de tráfico de influência precisamente porque terá aceitado receber de Manuel Godinho uma quantia em dinheiro para exercer influência junto de entidades públicas para favorecer este.
Não se compreende, por isso, como pode Eduardo Pitta ter concluído que «caiu por terra a fantasiosa acusação de ter recebido 10 mil euros, ou qualquer outra soma, para intermediar negócios de Manuel Godinho». Ao invés, a aplicação das medidas de coacção de caução e de proibição de contactos a Armando Vara significa que lhe foi imputada a prática do crime de tráfico de influência, ou seja, que lhe foi imputado o recebimento uma quantia em dinheiro para exercer a sua influência junto de determinadas entidades para favorecer Manuel Godinho. Eduardo Pitta comete, portanto, o lapso de pressupor que o recebimento de uma quantia em dinheiro apenas poderia corresponder ao crime de corrupção, o que se torna óbvio se atendermos ao título do seu postLá se foi a corrupção»).

Por último, uma palavra sobre o adjectivo «fantasiosa», utilizado por Eduardo Pitta para descrever a tese sobre a qual laborou o Ministério Público para desenvolver a investigação (e não a «acusação», como erroneamente refere Pitta, já que essa ainda não foi deduzida) no tocante a Armando Vara. Os escritores, como Pitta, movimentam-se no mundo do fantasioso, da ficção, da imaginação e eu quero acreditar que talvez por isso o termo lhe seja algo caro. Porém, tal não é o que sucede com o Ministério Público. O Ministério Público, os órgãos de polícia criminal e os tribunais não existem para realizar «fantasias» judiciais, mas sim para fazer investigações, tentar apurar a verdade material e realizar a Justiça.
Em suma, dificilmente outro adjectivo seria tão desadequado como «fantasiosa» para classificar uma investigação criminal. Aliás, mais do que desadequado, é um adjectivo verdadeiramente impróprio.

Regressando ao início deste texto, concluo sublinhando que é a observações como as que deixei comentadas que chamo ruído. Infelizmente para mim, Portugal tem estado particularmente barulhento nos últimos tempos...

eu

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