fonte: visto aqui
Está ali, parado, de corda na mão, na linha de partida. Espera que a corrida comece. Sucede que a corrida não pode começar enquanto não vier alguém que agarre na outra ponta da corda. É uma corrida a dois, a corda é o que os liga, é o que lhes permite comunicar, dizer «estou cansado» ou «tenho sede», para que cada um saiba quando é que o outro precisa de abrandar o passo ou de se abeirar de uma fonte para beber. Enquanto a corda permanecer ali, estendida sobre a terra, a corrida não começa, não pode começar.
Sucedem-se as estações. É Inverno, hoje. Faz frio, um vento gelado que lhe percorre o corpo como uma língua húmida. Vestiu grossas camisolas, um casaco espesso, luvas, um gorro, tudo o que se lembrou, tudo o que ajudasse a suportar a espera. De vez em quando, tira as luvas, olha para as mãos e vê os golpes que se foram desenhando, a pele ressequida, a carne roxa sob as unhas. Mexe-se para aquecer, dá pulos, faz malabarismos. As horas passam. Ninguém vem.
Durante todo este tempo, nunca um café que o aquecesse, nunca um raio de sol que diferenciasse os dias, nunca um passo sequer na corrida. A corrida não começou, não podia começar.
Olha em volta, nada acontece. Olha para dentro e sente o frio quase nos ossos, como um berbequim que foi perfurando as roupas. Olha para as horas e sente o desalento. Cada raiar do dia arrancou-lhe um pouco de paciência, um pouco de empenho, um pouco de sentido, um pouco de estima por si mesmo, até um pouco de vontade, se bem que nunca um pouco de intenção.
Sabe-se ridículo, ali naquela espera. Intui-se assim.
Como se tivessem vida própria, as mãos gretadas começam a recusar agarrar a corda. Não tem forças para as fechar, tolhidas que estão pelo longo tempo. «Já esperei tanto», pensa, «não deverei esperar um pouco mais?», mas não se trata já de esperar, antes de aceitar. Aceitar que, por muito que o tivesse desejado, por muito que o tenho dito, por muito que se tenha empenhado, por muito que tenha esperado, ninguém veio pegar na outra ponta da corda, ninguém quis correr, ninguém quis absolutamente nada.
Sabe que, perante isto, tem de escolher entre preservar tudo o que fez e correr o risco de morrer de frio ou deixar tombar a ponta da corda que segura e sobreviver à intempérie. «Eu aguento um pouco mais», repete, mas sabe que não aguenta, sabe que tem limites, sabe que chegou o dia em que não pode mais permitir-se definhar na linha de partida.
Larga a corda. No limite, larga a corda. Já não sente o corpo, mas, pelo menos, está vivo. No limite, mas vivo. Por momentos, não sabe o que fazer. Angustia-se, pergunta-se se terá desistido, chora. Extenuado, senta-se e descansa. Após o repouso, recomeça a sentir os pés, as pernas, o tronco, os braços, as mãos que abre e fecha vigorosamente. Sabe, então, que não desistiu. Sabe que, ao invés, teve a coragem de se fazer escapar a uma mais do que provável morte ao vento gélido. Escolheu salvar-se. Escolheu-se. E, sozinho, começa a caminhar ao longo da linha de partida.
© [m.m. botelho]
Sucedem-se as estações. É Inverno, hoje. Faz frio, um vento gelado que lhe percorre o corpo como uma língua húmida. Vestiu grossas camisolas, um casaco espesso, luvas, um gorro, tudo o que se lembrou, tudo o que ajudasse a suportar a espera. De vez em quando, tira as luvas, olha para as mãos e vê os golpes que se foram desenhando, a pele ressequida, a carne roxa sob as unhas. Mexe-se para aquecer, dá pulos, faz malabarismos. As horas passam. Ninguém vem.
Durante todo este tempo, nunca um café que o aquecesse, nunca um raio de sol que diferenciasse os dias, nunca um passo sequer na corrida. A corrida não começou, não podia começar.
Olha em volta, nada acontece. Olha para dentro e sente o frio quase nos ossos, como um berbequim que foi perfurando as roupas. Olha para as horas e sente o desalento. Cada raiar do dia arrancou-lhe um pouco de paciência, um pouco de empenho, um pouco de sentido, um pouco de estima por si mesmo, até um pouco de vontade, se bem que nunca um pouco de intenção.
Sabe-se ridículo, ali naquela espera. Intui-se assim.
Como se tivessem vida própria, as mãos gretadas começam a recusar agarrar a corda. Não tem forças para as fechar, tolhidas que estão pelo longo tempo. «Já esperei tanto», pensa, «não deverei esperar um pouco mais?», mas não se trata já de esperar, antes de aceitar. Aceitar que, por muito que o tivesse desejado, por muito que o tenho dito, por muito que se tenha empenhado, por muito que tenha esperado, ninguém veio pegar na outra ponta da corda, ninguém quis correr, ninguém quis absolutamente nada.
Sabe que, perante isto, tem de escolher entre preservar tudo o que fez e correr o risco de morrer de frio ou deixar tombar a ponta da corda que segura e sobreviver à intempérie. «Eu aguento um pouco mais», repete, mas sabe que não aguenta, sabe que tem limites, sabe que chegou o dia em que não pode mais permitir-se definhar na linha de partida.
Larga a corda. No limite, larga a corda. Já não sente o corpo, mas, pelo menos, está vivo. No limite, mas vivo. Por momentos, não sabe o que fazer. Angustia-se, pergunta-se se terá desistido, chora. Extenuado, senta-se e descansa. Após o repouso, recomeça a sentir os pés, as pernas, o tronco, os braços, as mãos que abre e fecha vigorosamente. Sabe, então, que não desistiu. Sabe que, ao invés, teve a coragem de se fazer escapar a uma mais do que provável morte ao vento gélido. Escolheu salvar-se. Escolheu-se. E, sozinho, começa a caminhar ao longo da linha de partida.
© [m.m. botelho]