Por vezes, durante algum tempo após determinados acontecimentos terem lugar na nossa vida, continuamos a atribuir às pessoas com eles relacionadas um papel especial e inigualável no nosso percurso e quase forçamos, dentro da nossa maravilhosa e inocente cabecinha, a existência de uma importância para essas pessoas, de um lugar que lhes é devido, de um valor que lhes é inerente, ainda que não saibamos explicar por que razão teriam essa importância, esse lugar ou esse valor. A reboque disto, ficamos presos à ideia de que aquelas pessoas detêm ainda o poder de nos avaliarem e que tudo o que elas pensem ou digam sobre nós tem de assumir grande relevo. Como que lhes concedemos o poder de nos julgarem, de tecerem considerações sobre o que fazemos e, mais grave, sobre o que somos e como somos. Ficamos a cismar sobre isso e achamos que as pessoas têm sempre razão, mesmo quando não têm, e permitimos que as suas opiniões tenham efeito em nós, que nos atormentem, que nos sejam muito caras.
Possivelmente, fazemos isto porque o desligamento, em particular o desligamento absoluto que (porque somos uns tontos idealistas que nem parecemos deste mundo) achamos desnecessário, é tremendamente penoso e tendemos a evitar a dor que daí advirá. Em consequência, oferecemos uma resistência enorme à aceitação de que os desligamentos sejam definitivos, indispensáveis, um facto, uma evidência, uma realidade clarividente, pura e dura para toda a gente de bom-senso, grupo no qual, obviamente, não nos incluímos porque estamos muito ocupados a tentar arranjar justificações para legitimar a nossa resistência.
Porém, em certos casos, mais cedo ou mais tarde, damo-nos conta de que, à tal dor do desligamento que achamos desnecessário, à tal dor que a tanto custo queríamos evitar mas não conseguimos, se juntou outra, porventura mais pungente, com a qual nos confrontamos quando olhamos para o que temos com essas pessoas e percebemos que é apenas a cristalização consequente do facto de nada termos feito ou, então, que é apenas a cristalização consequente do facto de alguém, no pleno exercício dos direitos que lhe assistem, não ter aproveitado todas as possíveis oportunidades que, ainda que de forma mais ou menos desajeitada, foram criadas. Em suma, damo-nos conta de que o que temos com essas pessoas não passa do que nós lhes demos (porque lhe atribuíamos importância, lugar, valor) e do que elas, do alto do poder de que nós mesmos as investimos sem qualquer justificação, avaliam (as mais das vezes, de forma errada), pois do outro lado não houve retorno (nem tinha de haver). E quando nos apercebemos de que não houve, não há nem haverá retorno, vamos dar com os burrinhos na água.
A grande vantagem de dar com os burrinhos na água é que, como não é lá muito agradável, somos obrigados (por nós mesmos) a perguntar (a nós mesmos) qual é, afinal, a razão que justifique a atribuição de tal importância, lugar, valor e poder a essas pessoas. Quando damos com os burrinhos na água temos de os ir lá buscar e o banho obriga-nos a acordar para a realidade e para a necessidade de explicarmos a nós próprios porque raio é que fazemos o que fazemos, o que inclui os motivos pelos quais atribuímos determinado estatuto a alguém. Às vezes, não somos capazes de articular uma resposta, não sabemos porquê, não invocamos uma única razão especial. E percebemos, então, que esse estatuto só existe porque nós o criámos dentro da nossa maravilhosa e inocente cabecinha, porque nem a pessoa o pediu, nem lhe era devido, nem sequer é justificado. E tudo o que era deixa de ter sentido.
Com sorte, no meio da angústia, lá encontramos o norte e encaramos o facto de que temos de iniciar uma nova etapa. Começamos, então, a expurgar da nossa maravilhosa e inocente cabecinha o que não tem sentido que lá esteja (a importância, o lugar, o valor e o poder que erroneamente atribuímos a determinadas pessoas), sob pena de bloquearmos o caminho da nossa própria estratégia de sobrevivência e nos desgastarmos infinitamente em trabalhos em que nos metemos porque queremos e sem os quais passaríamos muito bem.
Percebemos, então, que é tudo uma questão de "empowerment" e que, portanto, essas pessoas, uma vez desprovidas do que lhes atribuímos, não passam de pessoas com as quais nos cruzámos e que, em tempos idos, desempenharam um determinado papel na nossa vida. Percebemos, sem retirar qualquer importância a esse papel, que ele só existiu num determinado contexto e porque nós lho atribuímos e, ainda, que só depende de nós que assim deixe de ser.
Percebemos, finalmente, que, por muito difícil que seja, há que fazer os desligamentos absolutos. Há que cortar as pontas que ficaram soltas, porque já não há nada onde elas se prendam, mas também porque não há teias ilusórias e invisíveis, "empowerment" ou mecanismos de resistência que segurem ou liguem o que as pessoas já não querem que exista, aliás, melhor dizendo, o que não existe mesmo, a não ser na nossa visão idílica das coisas e na nossa obstinação pela manutenção de cenários esgotados. Se assim não fizermos, cairemos numa situação contraproducente à prossecução dos nossos objectivos de crescimento individual. Andaremos a desperdiçar as nossas energias atribuindo importância ao que e a quem a não tem.
Com efeito, nem todas as histórias da nossa vida podem ter o final que nós gostaríamos de lhes dar, mas antes o final possível. Não é o fim do mundo, é só um dos vários desligamentos que teremos de fazer ao longo da nossa vida. Há que aceitar que, nas relações com o outro, nem tudo depende de nós, da nossa vontade, da nossa iniciativa, do nosso desejo, da nossa intenção e que, portanto, não faz sentido alimentar dentro de nós a ilusão da desnecessidade do desligamento quando o outro pensa de modo completamente diferente do nosso em relação a isso, e que muito menos vale a pena continuar a atribuir às pessoas uma dimensão que já não lhes é devida, porque algo mudou no trajecto que vinha sendo cumprido. Do mesmo modo que há que ver que, no que respeita ao modo como nós conduzimos a nossa vida, tudo depende de nós, da nossa vontade, da nossa iniciativa, do nosso desejo, da nossa intenção, que cada um deve a si mesmo o mais e o melhor possível e que isso, definitivamente, não se compadece com o desperdício que é andar atrás dos burrinhos para os tirar da água. Se não percebermos isto, só há uma constatação possível: os burrinhos seremos nós.
[Vês, miúda dos caracóis cada vez mais curtos, como tudo o que tu me dizes faz ressonância cá dentro? É por isso que eu não abdico de te ter na minha vida.
E tu, miúda dos caracóis um pouco mais compridos e mais claros, vês como escuto tudo quanto tu te fartas de repetir? É por isso que te estimo como estimo: muito.
Este texto fica aqui, por escrito, para que eu possa relê-lo de cada vez que me deixar cair na tentação de não questionar certas coisas na minha vida. E também para que vós, minhas queridas, possais poupar o vosso latim a dizer pela enésima vez as mesmas ideias. Da próxima vez (que espero que não exista, mas à cautela...), não me mandeis só beber um copo de água e pensar. Mandai-me também ler isto que eu mesma escrevi, isto que eu mesma concluí. Só me fará bem.]
© [m.m. botelho]
Possivelmente, fazemos isto porque o desligamento, em particular o desligamento absoluto que (porque somos uns tontos idealistas que nem parecemos deste mundo) achamos desnecessário, é tremendamente penoso e tendemos a evitar a dor que daí advirá. Em consequência, oferecemos uma resistência enorme à aceitação de que os desligamentos sejam definitivos, indispensáveis, um facto, uma evidência, uma realidade clarividente, pura e dura para toda a gente de bom-senso, grupo no qual, obviamente, não nos incluímos porque estamos muito ocupados a tentar arranjar justificações para legitimar a nossa resistência.
Porém, em certos casos, mais cedo ou mais tarde, damo-nos conta de que, à tal dor do desligamento que achamos desnecessário, à tal dor que a tanto custo queríamos evitar mas não conseguimos, se juntou outra, porventura mais pungente, com a qual nos confrontamos quando olhamos para o que temos com essas pessoas e percebemos que é apenas a cristalização consequente do facto de nada termos feito ou, então, que é apenas a cristalização consequente do facto de alguém, no pleno exercício dos direitos que lhe assistem, não ter aproveitado todas as possíveis oportunidades que, ainda que de forma mais ou menos desajeitada, foram criadas. Em suma, damo-nos conta de que o que temos com essas pessoas não passa do que nós lhes demos (porque lhe atribuíamos importância, lugar, valor) e do que elas, do alto do poder de que nós mesmos as investimos sem qualquer justificação, avaliam (as mais das vezes, de forma errada), pois do outro lado não houve retorno (nem tinha de haver). E quando nos apercebemos de que não houve, não há nem haverá retorno, vamos dar com os burrinhos na água.
A grande vantagem de dar com os burrinhos na água é que, como não é lá muito agradável, somos obrigados (por nós mesmos) a perguntar (a nós mesmos) qual é, afinal, a razão que justifique a atribuição de tal importância, lugar, valor e poder a essas pessoas. Quando damos com os burrinhos na água temos de os ir lá buscar e o banho obriga-nos a acordar para a realidade e para a necessidade de explicarmos a nós próprios porque raio é que fazemos o que fazemos, o que inclui os motivos pelos quais atribuímos determinado estatuto a alguém. Às vezes, não somos capazes de articular uma resposta, não sabemos porquê, não invocamos uma única razão especial. E percebemos, então, que esse estatuto só existe porque nós o criámos dentro da nossa maravilhosa e inocente cabecinha, porque nem a pessoa o pediu, nem lhe era devido, nem sequer é justificado. E tudo o que era deixa de ter sentido.
Com sorte, no meio da angústia, lá encontramos o norte e encaramos o facto de que temos de iniciar uma nova etapa. Começamos, então, a expurgar da nossa maravilhosa e inocente cabecinha o que não tem sentido que lá esteja (a importância, o lugar, o valor e o poder que erroneamente atribuímos a determinadas pessoas), sob pena de bloquearmos o caminho da nossa própria estratégia de sobrevivência e nos desgastarmos infinitamente em trabalhos em que nos metemos porque queremos e sem os quais passaríamos muito bem.
Percebemos, então, que é tudo uma questão de "empowerment" e que, portanto, essas pessoas, uma vez desprovidas do que lhes atribuímos, não passam de pessoas com as quais nos cruzámos e que, em tempos idos, desempenharam um determinado papel na nossa vida. Percebemos, sem retirar qualquer importância a esse papel, que ele só existiu num determinado contexto e porque nós lho atribuímos e, ainda, que só depende de nós que assim deixe de ser.
Percebemos, finalmente, que, por muito difícil que seja, há que fazer os desligamentos absolutos. Há que cortar as pontas que ficaram soltas, porque já não há nada onde elas se prendam, mas também porque não há teias ilusórias e invisíveis, "empowerment" ou mecanismos de resistência que segurem ou liguem o que as pessoas já não querem que exista, aliás, melhor dizendo, o que não existe mesmo, a não ser na nossa visão idílica das coisas e na nossa obstinação pela manutenção de cenários esgotados. Se assim não fizermos, cairemos numa situação contraproducente à prossecução dos nossos objectivos de crescimento individual. Andaremos a desperdiçar as nossas energias atribuindo importância ao que e a quem a não tem.
Com efeito, nem todas as histórias da nossa vida podem ter o final que nós gostaríamos de lhes dar, mas antes o final possível. Não é o fim do mundo, é só um dos vários desligamentos que teremos de fazer ao longo da nossa vida. Há que aceitar que, nas relações com o outro, nem tudo depende de nós, da nossa vontade, da nossa iniciativa, do nosso desejo, da nossa intenção e que, portanto, não faz sentido alimentar dentro de nós a ilusão da desnecessidade do desligamento quando o outro pensa de modo completamente diferente do nosso em relação a isso, e que muito menos vale a pena continuar a atribuir às pessoas uma dimensão que já não lhes é devida, porque algo mudou no trajecto que vinha sendo cumprido. Do mesmo modo que há que ver que, no que respeita ao modo como nós conduzimos a nossa vida, tudo depende de nós, da nossa vontade, da nossa iniciativa, do nosso desejo, da nossa intenção, que cada um deve a si mesmo o mais e o melhor possível e que isso, definitivamente, não se compadece com o desperdício que é andar atrás dos burrinhos para os tirar da água. Se não percebermos isto, só há uma constatação possível: os burrinhos seremos nós.
[Vês, miúda dos caracóis cada vez mais curtos, como tudo o que tu me dizes faz ressonância cá dentro? É por isso que eu não abdico de te ter na minha vida.
E tu, miúda dos caracóis um pouco mais compridos e mais claros, vês como escuto tudo quanto tu te fartas de repetir? É por isso que te estimo como estimo: muito.
Este texto fica aqui, por escrito, para que eu possa relê-lo de cada vez que me deixar cair na tentação de não questionar certas coisas na minha vida. E também para que vós, minhas queridas, possais poupar o vosso latim a dizer pela enésima vez as mesmas ideias. Da próxima vez (que espero que não exista, mas à cautela...), não me mandeis só beber um copo de água e pensar. Mandai-me também ler isto que eu mesma escrevi, isto que eu mesma concluí. Só me fará bem.]
© [m.m. botelho]