23.11.11

isto não parece, mas também é um texto sobre moda

Embora isto me custe horrores a admitir, consta que eu e o Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa teremos, alegadamente, alguns pontos em comum: somos ambos juristas, somos adeptos do Sporting de Braga, dormimos poucas horas por noite, dizemos bastantes disparates quando nos pomos a falar sobre Direito Penal, lemos bastante e gostamos de usar gravatas azuis.

Agora que o quadro ficou profundamente negro, posso desmentir os factos enunciados em segundo, quarto e sexto lugares, visto que eu nem sei muito bem o que é ser adepta de um clube mas gosto muito do Sporting Clube de Portugal, digo bastante menos tolices do que o Professor Marcelo quando falo de Direito Penal (sigo a regra básica de não falar do que não domino) e não gosto nem uso gravata, seja de que cor for, até porque não assenta bem no meu estilo de rapariga jovem e urbana "hype", "cool", "fashion", "whatever you want to call it because I don't give a damn", como facilmente se compreenderá.

Isto tudo para dizer que durmo pouco e, consequentemente, como não consigo estar mais do que dois ou três minutos parada e na mesma posição a não ser que esteja a dormir (Freud que explique que eu agora não tenho tempo), tenho bastante tendência para ocupar as horas em que o Senhor Morfeu não me quer por sua conta a ler, a estudar, a investigar e a fazer o que me dá na real gana, visto que só há uma TV em minha casa, só tem quatro canais e eu não tenho pachorra para estar sentada ou deitada a olhar para ela (geralmente, quando a tenho ligada, estou também a ler ou no computador) e evito ligá-la depois da meia-noite e meia, a não ser ao sábado, se algum filme da «Sessão Dupla» da RTP2 me interessar e eu estiver por casa (isto eu explico, não é preciso Freud: chama-se "autodisciplina", que é uma coisa que custa imenso, mas tem de ser).

Assim sendo, em algumas dessas horas em que não estou a dormir, passo os olhos por uma variedade enorme de tipos de escrita, entre as quais blogues, claro, e não cesso de me espantar com uma relativamente recente tipologia - vou chamar-lhe assim - de blogues que surgiu e que são os das "dicas para a poupança e para a organização das casas e dos locais de trabalho", tudo com vista a combater a crise e a ter mais uns trocos no bolso, por poucos que sejam, no final do mês.

E não cesso de me espantar com a quantidade de aparentes "novidades" que por ali vejo serem referidas, como grandes descobertas de poupança, em pleno século XXI, como se ainda fosse possível descobrir alguma coisa no século XXI, ainda para mais relacionada com a economia e o capitalismo e afins, mas está bem. Passo a exemplificar:
- comprar garrafões de água e reencher em casa as garrafas que se levam para o trabalho ou se usam nas malas fica mais barato do que comprar garrafas pequenas de água;
- comprar pão e fazer sanduíches em casa para o lanche fica mais barato do que ir lanchar ao café, do que comprar o lanche nas máquinas ou do que comer "barritas", bolachas e outros produtos pré-embalados que se compram no supermercado;
- usar os transportes públicos ou andar de bicicleta fica mais barato do que usar o carro;
- usar esferográficas de recarga fica mais barato do que usar canetas não recarregáveis;
e por aí fora, que o rol de exemplos poderia nunca mais ter fim, desde juntar uma caneca de água ao detergente líquido da máquina de lavar roupa para o fazer render até beber um enorme copo de água antes das refeições para ter menos fome, logo, comer menos, logo, poupar dinheiro na comida.

Todas estas "sugestões" me espantam, por dois motivos: ou porque são coisas que eu já faço há anos e que me foram incutidas desde sempre e não porque "veio a crise"; ou porque são coisas simplesmente absurdas e que não revelam intuito de poupança, mas uma avidez cega de não gastar dinheiro, seja a que custo for.

Acho graça (estou a ser irónica, claro) ao facto de haver tantos artigos em revistas, jornais e blogues com ideias que certamente jamais me ocorreriam (e eu sou muito imaginativa!) sobre "poupança". É que a maior parte dessas ideias são as chamadas ideias do "8", porque são impulsionadas pela crise, já que no resto do tempo, o português gosta de viver no "80", ou seja, como se nunca fosse existir um período menos farto na economia (eu devo ter sido a única alma que estudou Economia e Finanças neste país, eu, que nem sequer sou economista, e por isso devo ser a única que sabe que estes períodos são... cíclicos!). Ora, como a vida do português é vivida sempre no "80", quando chega a necessidade, é preciso ir para o "8", isto é, tomar medidas drásticas, "adicionar água ao detergente da máquina de lavar a roupa" (!) e disparates do género.

Pessoas que foram educadas como eu fui educada, sempre viveram com tudo o que precisaram, mas apenas com o que precisaram. Isto significa que sempre tiveram tudo, mas apenas na exacta medida das suas necessidades, tendo-lhes sido incutida a ideia de que o que não era necessário não deveria ser comprado e o dinheiro teria de ser poupado para alturas em que as coisas viessem a ser necessárias, mas não houvesse liquidez para as comprar. É por isso que uns têm de alterar radicalmente os seus hábitos de vida por causa da crise e outros não. E eu, felizmente, sou das que não tem de os alterar por aí além.

Continuo a comprar o que me é preciso, mas só o que me é preciso. Não poupo mais por estar em crise, poupo exactamente o mesmo que poupava, simplesmente porque eu sempre poupei o máximo que podia poupar (após feitos os gastos exclusivamente necessários aos meus confortos e às minhas necessidades).

Não posso dizer que não sinto os efeitos da crise. É óbvio que sinto, já que consigo poupar menos do que o que poupava e que, porque na minha profissão, dependo da procura e, simplificando a coisa, sou uma prestadora de serviços que, em muitas situações, não são serviços essenciais, a procura diminuiu, afectando os meus dividendos. Todavia, não precisei de alterar comportamentos meus por causa da crise, apenas tive de me adaptar à alteração de factores externos que escapam ao meu controle. Adaptar, que é como quem diz, aceitar, e ponderar e passar a desempenhar outras tarefas que me proporcionem outras fontes de rendimento.

Admito que me choca ler os comentários de pessoas dizendo que ideias como as que citei acima são óptimas e que vão já po-las em prática. Só me ocorre perguntar-lhes se a massa cerebral com que foram presenteadas lhes serve para alguma coisa, se nem para concluir que é mais barato reencher garrafas de água com água do garrafão do que comprar garrafas pequenas lhes serviu até que veio um iluminado e o escreveu num blogue. Imagino a alegria daquela gente quando vier o derradeiro messias anunciar-lhes que se reencherem as garrafas com água da torneira (que é potável!) fica ainda mais barato. Se calhar, nesse dia não comentam: têm uma apoplexia causada pela descoberta e finam-se logo ali. Espero é que se tenham informado previamente sobre o preço dos féretros. É que dizem por aí que até a corriqueira madeira de pinho está pela hora da morte. O melhor, mesmo, é começar a usar a técnica de reenchimento também para os esquifes. Usa-se só para o ofício fúnebre e depois, pelo sim, pelo não, enterra-se só o cadáver e guarda-se a urna em casa, não vá morrer mais alguém e ter-se outra despesa em que, literalmente, "se vai enterrar dinheiro sem retorno". Ah! Se eu comentasse nos blogues de poupança é que era!

Enfim, tudo isto para dizer que a maioria dos portugueses tem características nas quais não me revejo nada, nadinha e que me entristecem muito quando sou confrontada com elas e que a forma como os portugueses lidam com o dinheiro é uma delas pois, como já dizia a minha sábia bisavó Teodosa, «o dinheiro não tem ciência ganhá-lo, mas gastá-lo» e «o dinheiro não é de quem o ganha, mas de quem o poupa».

[Isto não é um post, é um lençol de palavreado. E pensar que tudo começou com uma comparação com o Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa. Me-do.]

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